Críticas de Sábato Magaldi publicadas no 'Jornal da Tarde' são reunidas em livro


Volume traz críticas teatrais feitas entre 1966 e 1988 por umas das principais testemunhas - e figura-chave - da história do teatro

Por Maria Fernanda Rodrigues

Em um único ano, recorda a escritora e dramaturga Edla Van Steen, ela e o marido Sábato Magaldi, hoje com 87 anos, foram ao teatro nada menos do que 156 vezes. Quase dia sim, dia não. Por mais de duas décadas, esta foi a rotina do crítico do Jornal da Tarde – função assumida após passagem pelo Suplemento Literário, também do Grupo Estado, e que cumpria mais por prazer do que por obrigação. “Ir ao teatro ou assistir a espetáculos, fossem de que ordem fossem, nunca foi profissão. Sempre foi satisfação. Ele se sentia um privilegiado de sair de casa todas as noites e ver alguma coisa”, conta Edla.

Ele via, anotava suas impressões em caderninhos quando chegava em casa, deixava o assunto descansar. No dia seguinte, sentava-se à máquina e registrava, criticamente, claro, o que tinha visto. Pelas contas de Edla, foram publicadas centenas de artigos longos e colunas no Suplemento Literário a partir de 1956, que devem ser objeto de um livro no futuro, e mais de 3 mil críticas no Jornal da Tarde entre 1966 e 1989 – universo sobre o qual Edla se debruçou em 2011 para organizar Amor ao Teatro: Sábato Magaldi, que começa a ser vendido nos próximos dias. Um lançamento deve ser marcado para o fim de fevereiro ou início de março.

Imortal. No livro, críticas de espetáculos montados por Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa, Flávio Rangel e outros Foto: Wilton Junior/Estadão
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Ficaram de fora do volume os textos sobre peças estrangeiras, espetáculos de dança e aqueles assinados por S. M. e M. S. E, mesmo assim, ele ficou com 1.224 páginas. A organização é cronológica – vai de 1966 a 1988. A ideia da organizadora, que contou com a assessoria do dramaturgo e professor aposentado da USP José Eduardo Vendramini, era incluir fotos. “Sábato se opôs. O teatro tinha uns 50 atores e atrizes que deveriam estar presentes e nós não poderíamos privilegiar só alguns”, diz. 

Da plateia, Sábato acompanhou o surgimento de diversas gerações de autores, atores, diretores e sempre foi um grande incentivador desses profissionais. Lendo (ou relendo) suas críticas agora assistimos ao desenrolar da história do teatro brasileiro: os altos e baixos das produções, os novos espaços cênicos, as experimentações, as tendências, as grandes atuações, os fracassos memoráveis. Vemos em cena nomes que estão no nosso imaginário – alguns ainda hoje nos palcos ou nas telas. Assistimos junto a montagem de 1980 de Calabar, a peça de Ruy Guerra e Chico Buarque impedida de estrear em 1973 pela censura, e também o recomeço de Augusto Boal depois do exílio, com Como de Costume, também em 1980. Aliás, o texto O Nosso Teatro em Busca de um Novo Tempo e a Censura, de 1986, foi incluído na obra.

Trata-se de um rico registro dessa cena teatral – uma grande contribuição para a historiografia da cultura brasileira e valiosa fonte de pesquisa para estudantes e pesquisadores. Mas não só. Os textos são verdadeiras aulas do fazer jornalístico crítico, e um prazer literário.

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Magaldi nasceu em Belo Horizonte em 1927, um pouco depois dos integrantes da famosa geração de mineiros que faria história na literatura e na imprensa – entre eles, Hélio Pellegrino, primo do crítico. Um ano depois da formatura, em 1950, Sábato refazia os passos de seus conterrâneos e começava a trabalhar no Diário Carioca. O setorista de teatro era Paulo Mendes Campos – que não era lá muito ligado à área, como Magaldi chegou a comentar em entrevista. Ele, sim, já era – aos 23 anos – um apaixonado e não perdia uma montagem. O colega ofereceu seu posto e ele aceitou de bom grado. 

Era o início de sua carreira de crítico. Entre 1952 e 1953, ele foi estudar Estética na Sorbonne, mas não deixou de escrever para o veículo. Na volta da temporada parisiense, seguiu para São Paulo a convite de Alfredo Mesquita para dar aulas na Escola de Arte Dramática e não parou mais. Ao longo de sua carreira, além das inúmeras críticas, publicou 18 livros, como Panorama do Teatro Brasileiro (Global) e Cem Anos de Teatro em São Paulo (Senac) – originalmente um especial produzido em parceria com Maria Thereza Vargas (ela assina texto na página ao lado) para o centenário do Estado, em 1975, e que foi publicado em suplementos no jornal. “Acho que ele é o crítico que mais contribuiu com títulos para a biblioteca teatral no Brasil”, comenta Edla Van Steen, mulher de Sábato Magaldi há 35 anos.

reference
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O volume que ela lança agora é aberto com a crítica de O Outro André, que começa assim: “Nydia Licia procurava uma comédia que ajudasse sua companhia a atravessar os meses de verão, depois do insucesso financeiro de O Crime da Cabra. Chegou a dizer que faria um espetáculo com olho somente no público, e nem convidaria a crítica. (...) Essa falta de pretensão deve ter-lhe feito bem.” 

Outras cerca de 800 críticas – além de balanços anuais – vêm na sequência: Pequenos Burgueses (José Celso Martinez Corrêa), Black-Out (Antunes Filho), Deus lhe Pague (Procópio Ferreira, A Virgem Psicodélica (Dercy Gonçalves), Esperando Godot (Flávio Rangel), Fala Baixo, Senão eu Grito (Clóvis Bueno), Hair (Ademar Guerra), Todos Amam um Homem Gordo (Jô Soares), Macbeth (Fauzi Arap), Quando as Máquinas Param (Jonas Bloch), Uma Noite com Chico Anysio (Oswaldo Loureiro), Hoje é Dia de Rock (Emilio di Biasi), Bonitinha, Mas Ordinária (Antunes Filho), Romance (Dzi Croquettes), Ópera do Malandro (Luiz Antônio Martinez Corrêa), entre tantas outras de peças de que gostou ou não, que agradaram ou chatearam os envolvidos.

A organizadora prefere deixar no passado as “polêmicas infelizes e agressões ridículas que ele sofreu por parte de diretores vaidosos e prepotentes”. Ela conta que Sábato tinha 200 páginas escritas sobre um deles quando foi agredido “bestamente” e desistiu do trabalho. “Mas ele não dava atenção no geral”, ela explica.

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O crítico voltava atrás quando achava que tinha errado. Há um exemplo interessante no livro. Em 1984, ele viu As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e criticou escolhas feitas pelo diretor Celso Nunes, um ex-aluno. Três meses depois, ele assistiu ao filme de Fassbinder e escreveu novo texto: “Não há sentido em mencionar arbitrariedade do encenador, se ele utilizou como fonte o cineasta, que afinal é o próprio dramaturgo. Assim, a polêmica deixa de ser com Celso Nunes, transferindo-se para o responsável pela obra, que é Fassbinder”.

Erudito ou popular, profissional, experimental, amador ou estudantil. Para adultos, estudantes ou crianças. Tudo estava no radar do crítico que chegou a ir até a um espetáculo do Holiday On Ice acompanhando a mulher e alguns sobrinhos de passagem por São Paulo. Ele, no entanto, nunca foi dado a estreias, diz Edla. “Ele sempre preferia ver as peças dias depois alegando que os atores já estavam menos nervosos ou ansiosos, a iluminação tinha sido ajustada e os problemas resolvidos. Ele tinha toda razão.”

Edla conta que, para Sábato, a função do crítico vai além do jornalismo profissional. “Ele lia peças dos dramaturgos – Osman Lins, Jorge Andrade, Plínio Marcos, para citar só alguns –, discutia com eles, sugeria mudanças e cortes (Maria Adelaide Amaral comenta essa questão na página ao lado). Escrevia prefácios, também de graça. Participava de leituras, via ensaios, escrevia cartas de recomendação para viagens de espetáculos, dirigia – e ainda dirige – coleções teatrais em várias editoras, participava de comissões de premiação. Sábato sempre foi cúmplice do teatro, essa é a sua contribuição.”

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Há dois anos, Sábato Magaldi não escreve mais em seus caderninhos. E, desde que quebrou o fêmur e colocou uma prótese, e que perdeu a visão de um dos olhos, as idas ao teatro diminuíram. “A idade pesa. Muita gente pensa que ele tem Alzheimer, mas o neurologista diz que ele está apenas senil”, explica Edla.

Não há nenhuma esperança de ver os “48 ou 49 cadernos com 400 páginas manuscritas cada um” reunidos em livro. “Ele vai proibir a publicação. São anotações absolutamente pessoais”, afirma. O material já está prometido para a Academia Brasileira de Letras, que elegeu o crítico como imortal em 1994. Mas ela tem planos para outros livros. “Se eu tiver saúde, o próximo livro será composto dos artigos, perfis, críticas de montagens não aproveitadas neste volume. É surpreendente que ele tenha achado ruins montagens da Comédie Française, por exemplo, e falado bem das mesmas montagens feitas no Brasil”, comenta a escritora de 78 anos. Outro desejo é doar a biblioteca. “Ela é testemunho do que ele estudou a vida toda. Ele preparava cada aula com cuidado, anotava dados, consultava livros. Quero doar essa biblioteca para uma entidade que permita a consulta de estudantes, pois não acredito que exista outra por aí tão completa sobre o tema”, anuncia.

AMOR AO TEATRO: SÁBATO MAGALDIOrg.: Edla Van Steen Editora: Sesc (1.224 págs.; R$ 154)

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Em um único ano, recorda a escritora e dramaturga Edla Van Steen, ela e o marido Sábato Magaldi, hoje com 87 anos, foram ao teatro nada menos do que 156 vezes. Quase dia sim, dia não. Por mais de duas décadas, esta foi a rotina do crítico do Jornal da Tarde – função assumida após passagem pelo Suplemento Literário, também do Grupo Estado, e que cumpria mais por prazer do que por obrigação. “Ir ao teatro ou assistir a espetáculos, fossem de que ordem fossem, nunca foi profissão. Sempre foi satisfação. Ele se sentia um privilegiado de sair de casa todas as noites e ver alguma coisa”, conta Edla.

Ele via, anotava suas impressões em caderninhos quando chegava em casa, deixava o assunto descansar. No dia seguinte, sentava-se à máquina e registrava, criticamente, claro, o que tinha visto. Pelas contas de Edla, foram publicadas centenas de artigos longos e colunas no Suplemento Literário a partir de 1956, que devem ser objeto de um livro no futuro, e mais de 3 mil críticas no Jornal da Tarde entre 1966 e 1989 – universo sobre o qual Edla se debruçou em 2011 para organizar Amor ao Teatro: Sábato Magaldi, que começa a ser vendido nos próximos dias. Um lançamento deve ser marcado para o fim de fevereiro ou início de março.

Imortal. No livro, críticas de espetáculos montados por Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa, Flávio Rangel e outros Foto: Wilton Junior/Estadão

Ficaram de fora do volume os textos sobre peças estrangeiras, espetáculos de dança e aqueles assinados por S. M. e M. S. E, mesmo assim, ele ficou com 1.224 páginas. A organização é cronológica – vai de 1966 a 1988. A ideia da organizadora, que contou com a assessoria do dramaturgo e professor aposentado da USP José Eduardo Vendramini, era incluir fotos. “Sábato se opôs. O teatro tinha uns 50 atores e atrizes que deveriam estar presentes e nós não poderíamos privilegiar só alguns”, diz. 

Da plateia, Sábato acompanhou o surgimento de diversas gerações de autores, atores, diretores e sempre foi um grande incentivador desses profissionais. Lendo (ou relendo) suas críticas agora assistimos ao desenrolar da história do teatro brasileiro: os altos e baixos das produções, os novos espaços cênicos, as experimentações, as tendências, as grandes atuações, os fracassos memoráveis. Vemos em cena nomes que estão no nosso imaginário – alguns ainda hoje nos palcos ou nas telas. Assistimos junto a montagem de 1980 de Calabar, a peça de Ruy Guerra e Chico Buarque impedida de estrear em 1973 pela censura, e também o recomeço de Augusto Boal depois do exílio, com Como de Costume, também em 1980. Aliás, o texto O Nosso Teatro em Busca de um Novo Tempo e a Censura, de 1986, foi incluído na obra.

Trata-se de um rico registro dessa cena teatral – uma grande contribuição para a historiografia da cultura brasileira e valiosa fonte de pesquisa para estudantes e pesquisadores. Mas não só. Os textos são verdadeiras aulas do fazer jornalístico crítico, e um prazer literário.

Magaldi nasceu em Belo Horizonte em 1927, um pouco depois dos integrantes da famosa geração de mineiros que faria história na literatura e na imprensa – entre eles, Hélio Pellegrino, primo do crítico. Um ano depois da formatura, em 1950, Sábato refazia os passos de seus conterrâneos e começava a trabalhar no Diário Carioca. O setorista de teatro era Paulo Mendes Campos – que não era lá muito ligado à área, como Magaldi chegou a comentar em entrevista. Ele, sim, já era – aos 23 anos – um apaixonado e não perdia uma montagem. O colega ofereceu seu posto e ele aceitou de bom grado. 

Era o início de sua carreira de crítico. Entre 1952 e 1953, ele foi estudar Estética na Sorbonne, mas não deixou de escrever para o veículo. Na volta da temporada parisiense, seguiu para São Paulo a convite de Alfredo Mesquita para dar aulas na Escola de Arte Dramática e não parou mais. Ao longo de sua carreira, além das inúmeras críticas, publicou 18 livros, como Panorama do Teatro Brasileiro (Global) e Cem Anos de Teatro em São Paulo (Senac) – originalmente um especial produzido em parceria com Maria Thereza Vargas (ela assina texto na página ao lado) para o centenário do Estado, em 1975, e que foi publicado em suplementos no jornal. “Acho que ele é o crítico que mais contribuiu com títulos para a biblioteca teatral no Brasil”, comenta Edla Van Steen, mulher de Sábato Magaldi há 35 anos.

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O volume que ela lança agora é aberto com a crítica de O Outro André, que começa assim: “Nydia Licia procurava uma comédia que ajudasse sua companhia a atravessar os meses de verão, depois do insucesso financeiro de O Crime da Cabra. Chegou a dizer que faria um espetáculo com olho somente no público, e nem convidaria a crítica. (...) Essa falta de pretensão deve ter-lhe feito bem.” 

Outras cerca de 800 críticas – além de balanços anuais – vêm na sequência: Pequenos Burgueses (José Celso Martinez Corrêa), Black-Out (Antunes Filho), Deus lhe Pague (Procópio Ferreira, A Virgem Psicodélica (Dercy Gonçalves), Esperando Godot (Flávio Rangel), Fala Baixo, Senão eu Grito (Clóvis Bueno), Hair (Ademar Guerra), Todos Amam um Homem Gordo (Jô Soares), Macbeth (Fauzi Arap), Quando as Máquinas Param (Jonas Bloch), Uma Noite com Chico Anysio (Oswaldo Loureiro), Hoje é Dia de Rock (Emilio di Biasi), Bonitinha, Mas Ordinária (Antunes Filho), Romance (Dzi Croquettes), Ópera do Malandro (Luiz Antônio Martinez Corrêa), entre tantas outras de peças de que gostou ou não, que agradaram ou chatearam os envolvidos.

A organizadora prefere deixar no passado as “polêmicas infelizes e agressões ridículas que ele sofreu por parte de diretores vaidosos e prepotentes”. Ela conta que Sábato tinha 200 páginas escritas sobre um deles quando foi agredido “bestamente” e desistiu do trabalho. “Mas ele não dava atenção no geral”, ela explica.

O crítico voltava atrás quando achava que tinha errado. Há um exemplo interessante no livro. Em 1984, ele viu As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e criticou escolhas feitas pelo diretor Celso Nunes, um ex-aluno. Três meses depois, ele assistiu ao filme de Fassbinder e escreveu novo texto: “Não há sentido em mencionar arbitrariedade do encenador, se ele utilizou como fonte o cineasta, que afinal é o próprio dramaturgo. Assim, a polêmica deixa de ser com Celso Nunes, transferindo-se para o responsável pela obra, que é Fassbinder”.

Erudito ou popular, profissional, experimental, amador ou estudantil. Para adultos, estudantes ou crianças. Tudo estava no radar do crítico que chegou a ir até a um espetáculo do Holiday On Ice acompanhando a mulher e alguns sobrinhos de passagem por São Paulo. Ele, no entanto, nunca foi dado a estreias, diz Edla. “Ele sempre preferia ver as peças dias depois alegando que os atores já estavam menos nervosos ou ansiosos, a iluminação tinha sido ajustada e os problemas resolvidos. Ele tinha toda razão.”

Edla conta que, para Sábato, a função do crítico vai além do jornalismo profissional. “Ele lia peças dos dramaturgos – Osman Lins, Jorge Andrade, Plínio Marcos, para citar só alguns –, discutia com eles, sugeria mudanças e cortes (Maria Adelaide Amaral comenta essa questão na página ao lado). Escrevia prefácios, também de graça. Participava de leituras, via ensaios, escrevia cartas de recomendação para viagens de espetáculos, dirigia – e ainda dirige – coleções teatrais em várias editoras, participava de comissões de premiação. Sábato sempre foi cúmplice do teatro, essa é a sua contribuição.”

Há dois anos, Sábato Magaldi não escreve mais em seus caderninhos. E, desde que quebrou o fêmur e colocou uma prótese, e que perdeu a visão de um dos olhos, as idas ao teatro diminuíram. “A idade pesa. Muita gente pensa que ele tem Alzheimer, mas o neurologista diz que ele está apenas senil”, explica Edla.

Não há nenhuma esperança de ver os “48 ou 49 cadernos com 400 páginas manuscritas cada um” reunidos em livro. “Ele vai proibir a publicação. São anotações absolutamente pessoais”, afirma. O material já está prometido para a Academia Brasileira de Letras, que elegeu o crítico como imortal em 1994. Mas ela tem planos para outros livros. “Se eu tiver saúde, o próximo livro será composto dos artigos, perfis, críticas de montagens não aproveitadas neste volume. É surpreendente que ele tenha achado ruins montagens da Comédie Française, por exemplo, e falado bem das mesmas montagens feitas no Brasil”, comenta a escritora de 78 anos. Outro desejo é doar a biblioteca. “Ela é testemunho do que ele estudou a vida toda. Ele preparava cada aula com cuidado, anotava dados, consultava livros. Quero doar essa biblioteca para uma entidade que permita a consulta de estudantes, pois não acredito que exista outra por aí tão completa sobre o tema”, anuncia.

AMOR AO TEATRO: SÁBATO MAGALDIOrg.: Edla Van Steen Editora: Sesc (1.224 págs.; R$ 154)

Em um único ano, recorda a escritora e dramaturga Edla Van Steen, ela e o marido Sábato Magaldi, hoje com 87 anos, foram ao teatro nada menos do que 156 vezes. Quase dia sim, dia não. Por mais de duas décadas, esta foi a rotina do crítico do Jornal da Tarde – função assumida após passagem pelo Suplemento Literário, também do Grupo Estado, e que cumpria mais por prazer do que por obrigação. “Ir ao teatro ou assistir a espetáculos, fossem de que ordem fossem, nunca foi profissão. Sempre foi satisfação. Ele se sentia um privilegiado de sair de casa todas as noites e ver alguma coisa”, conta Edla.

Ele via, anotava suas impressões em caderninhos quando chegava em casa, deixava o assunto descansar. No dia seguinte, sentava-se à máquina e registrava, criticamente, claro, o que tinha visto. Pelas contas de Edla, foram publicadas centenas de artigos longos e colunas no Suplemento Literário a partir de 1956, que devem ser objeto de um livro no futuro, e mais de 3 mil críticas no Jornal da Tarde entre 1966 e 1989 – universo sobre o qual Edla se debruçou em 2011 para organizar Amor ao Teatro: Sábato Magaldi, que começa a ser vendido nos próximos dias. Um lançamento deve ser marcado para o fim de fevereiro ou início de março.

Imortal. No livro, críticas de espetáculos montados por Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa, Flávio Rangel e outros Foto: Wilton Junior/Estadão

Ficaram de fora do volume os textos sobre peças estrangeiras, espetáculos de dança e aqueles assinados por S. M. e M. S. E, mesmo assim, ele ficou com 1.224 páginas. A organização é cronológica – vai de 1966 a 1988. A ideia da organizadora, que contou com a assessoria do dramaturgo e professor aposentado da USP José Eduardo Vendramini, era incluir fotos. “Sábato se opôs. O teatro tinha uns 50 atores e atrizes que deveriam estar presentes e nós não poderíamos privilegiar só alguns”, diz. 

Da plateia, Sábato acompanhou o surgimento de diversas gerações de autores, atores, diretores e sempre foi um grande incentivador desses profissionais. Lendo (ou relendo) suas críticas agora assistimos ao desenrolar da história do teatro brasileiro: os altos e baixos das produções, os novos espaços cênicos, as experimentações, as tendências, as grandes atuações, os fracassos memoráveis. Vemos em cena nomes que estão no nosso imaginário – alguns ainda hoje nos palcos ou nas telas. Assistimos junto a montagem de 1980 de Calabar, a peça de Ruy Guerra e Chico Buarque impedida de estrear em 1973 pela censura, e também o recomeço de Augusto Boal depois do exílio, com Como de Costume, também em 1980. Aliás, o texto O Nosso Teatro em Busca de um Novo Tempo e a Censura, de 1986, foi incluído na obra.

Trata-se de um rico registro dessa cena teatral – uma grande contribuição para a historiografia da cultura brasileira e valiosa fonte de pesquisa para estudantes e pesquisadores. Mas não só. Os textos são verdadeiras aulas do fazer jornalístico crítico, e um prazer literário.

Magaldi nasceu em Belo Horizonte em 1927, um pouco depois dos integrantes da famosa geração de mineiros que faria história na literatura e na imprensa – entre eles, Hélio Pellegrino, primo do crítico. Um ano depois da formatura, em 1950, Sábato refazia os passos de seus conterrâneos e começava a trabalhar no Diário Carioca. O setorista de teatro era Paulo Mendes Campos – que não era lá muito ligado à área, como Magaldi chegou a comentar em entrevista. Ele, sim, já era – aos 23 anos – um apaixonado e não perdia uma montagem. O colega ofereceu seu posto e ele aceitou de bom grado. 

Era o início de sua carreira de crítico. Entre 1952 e 1953, ele foi estudar Estética na Sorbonne, mas não deixou de escrever para o veículo. Na volta da temporada parisiense, seguiu para São Paulo a convite de Alfredo Mesquita para dar aulas na Escola de Arte Dramática e não parou mais. Ao longo de sua carreira, além das inúmeras críticas, publicou 18 livros, como Panorama do Teatro Brasileiro (Global) e Cem Anos de Teatro em São Paulo (Senac) – originalmente um especial produzido em parceria com Maria Thereza Vargas (ela assina texto na página ao lado) para o centenário do Estado, em 1975, e que foi publicado em suplementos no jornal. “Acho que ele é o crítico que mais contribuiu com títulos para a biblioteca teatral no Brasil”, comenta Edla Van Steen, mulher de Sábato Magaldi há 35 anos.

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O volume que ela lança agora é aberto com a crítica de O Outro André, que começa assim: “Nydia Licia procurava uma comédia que ajudasse sua companhia a atravessar os meses de verão, depois do insucesso financeiro de O Crime da Cabra. Chegou a dizer que faria um espetáculo com olho somente no público, e nem convidaria a crítica. (...) Essa falta de pretensão deve ter-lhe feito bem.” 

Outras cerca de 800 críticas – além de balanços anuais – vêm na sequência: Pequenos Burgueses (José Celso Martinez Corrêa), Black-Out (Antunes Filho), Deus lhe Pague (Procópio Ferreira, A Virgem Psicodélica (Dercy Gonçalves), Esperando Godot (Flávio Rangel), Fala Baixo, Senão eu Grito (Clóvis Bueno), Hair (Ademar Guerra), Todos Amam um Homem Gordo (Jô Soares), Macbeth (Fauzi Arap), Quando as Máquinas Param (Jonas Bloch), Uma Noite com Chico Anysio (Oswaldo Loureiro), Hoje é Dia de Rock (Emilio di Biasi), Bonitinha, Mas Ordinária (Antunes Filho), Romance (Dzi Croquettes), Ópera do Malandro (Luiz Antônio Martinez Corrêa), entre tantas outras de peças de que gostou ou não, que agradaram ou chatearam os envolvidos.

A organizadora prefere deixar no passado as “polêmicas infelizes e agressões ridículas que ele sofreu por parte de diretores vaidosos e prepotentes”. Ela conta que Sábato tinha 200 páginas escritas sobre um deles quando foi agredido “bestamente” e desistiu do trabalho. “Mas ele não dava atenção no geral”, ela explica.

O crítico voltava atrás quando achava que tinha errado. Há um exemplo interessante no livro. Em 1984, ele viu As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e criticou escolhas feitas pelo diretor Celso Nunes, um ex-aluno. Três meses depois, ele assistiu ao filme de Fassbinder e escreveu novo texto: “Não há sentido em mencionar arbitrariedade do encenador, se ele utilizou como fonte o cineasta, que afinal é o próprio dramaturgo. Assim, a polêmica deixa de ser com Celso Nunes, transferindo-se para o responsável pela obra, que é Fassbinder”.

Erudito ou popular, profissional, experimental, amador ou estudantil. Para adultos, estudantes ou crianças. Tudo estava no radar do crítico que chegou a ir até a um espetáculo do Holiday On Ice acompanhando a mulher e alguns sobrinhos de passagem por São Paulo. Ele, no entanto, nunca foi dado a estreias, diz Edla. “Ele sempre preferia ver as peças dias depois alegando que os atores já estavam menos nervosos ou ansiosos, a iluminação tinha sido ajustada e os problemas resolvidos. Ele tinha toda razão.”

Edla conta que, para Sábato, a função do crítico vai além do jornalismo profissional. “Ele lia peças dos dramaturgos – Osman Lins, Jorge Andrade, Plínio Marcos, para citar só alguns –, discutia com eles, sugeria mudanças e cortes (Maria Adelaide Amaral comenta essa questão na página ao lado). Escrevia prefácios, também de graça. Participava de leituras, via ensaios, escrevia cartas de recomendação para viagens de espetáculos, dirigia – e ainda dirige – coleções teatrais em várias editoras, participava de comissões de premiação. Sábato sempre foi cúmplice do teatro, essa é a sua contribuição.”

Há dois anos, Sábato Magaldi não escreve mais em seus caderninhos. E, desde que quebrou o fêmur e colocou uma prótese, e que perdeu a visão de um dos olhos, as idas ao teatro diminuíram. “A idade pesa. Muita gente pensa que ele tem Alzheimer, mas o neurologista diz que ele está apenas senil”, explica Edla.

Não há nenhuma esperança de ver os “48 ou 49 cadernos com 400 páginas manuscritas cada um” reunidos em livro. “Ele vai proibir a publicação. São anotações absolutamente pessoais”, afirma. O material já está prometido para a Academia Brasileira de Letras, que elegeu o crítico como imortal em 1994. Mas ela tem planos para outros livros. “Se eu tiver saúde, o próximo livro será composto dos artigos, perfis, críticas de montagens não aproveitadas neste volume. É surpreendente que ele tenha achado ruins montagens da Comédie Française, por exemplo, e falado bem das mesmas montagens feitas no Brasil”, comenta a escritora de 78 anos. Outro desejo é doar a biblioteca. “Ela é testemunho do que ele estudou a vida toda. Ele preparava cada aula com cuidado, anotava dados, consultava livros. Quero doar essa biblioteca para uma entidade que permita a consulta de estudantes, pois não acredito que exista outra por aí tão completa sobre o tema”, anuncia.

AMOR AO TEATRO: SÁBATO MAGALDIOrg.: Edla Van Steen Editora: Sesc (1.224 págs.; R$ 154)

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