O traço minimalista de Jack Kirby - quadrinhos que contavam histórias de outras perspectivas, inovação nos ângulos e a capacidade de dar emoção aos heróis tão “super” e distantes da humanidade - deu ao artista o título de realeza naquilo que faz, coisa que poucos já receberam. Michael Jackson é o Rei do Pop e Kirby é o Rei dos Quadrinhos. E, se hoje o traço dele, para os não iniciados no mundo das HQs, parece ultrapassado, é preciso voltar no tempo para perceber como a passagem de Kirby pelos quadrinhos revolucionou a forma como as histórias eram contadas até então. Foi logo à primeira vista que a obra de Kirby arrebatou Hugo Canuto, também quadrinista, de 30 anos, quando entrava na adolescência e passava a se interessar pelas histórias dos super-heróis. Não era uma boa época para os jovens se interessarem por quadrinhos, contudo. Aqueles anos 1990 foram devastadores, uma década conhecida por trazer uma das piores estéticas já vistas, com personagens masculinos extremamente disformes com seus músculos exageradamente grandes e heroínas desprovidas de roupas e sexualizadas ao extremo.
Canuto foi salvo por um amigo da família que, sem filhos, doutrinou o guri. Levou-o para o mundo dos heróis das décadas anteriores com HQs encadernadas e bem conservadas. Apresentou Canuto às artes assinadas por nomes como John Buscema (famoso pelo trabalho com a Marvel e Conan) e, claro, Kirby.
Assim nasce o embrião da história da HQ Contos de Òrun Àiyé, cujo lançamento será em agosto, idealizada por Canuto. A influência de Kirby está ali, no traço limpo de Canuto, que, segundo o próprio, está se afinando cada vez mais. Foi em 2016, quando o desenhista norte-americano completaria 99 anos (ele morreu em 1994), que o artista brasileiro, nascido na Bahia, decidiu homenagear o mestre e criar uma versão de uma icônica capa de Os Vingadores, de Kirby, com personagens da cultura africana, abraçada pelo Brasil. Em vez de Thor, havia Xangô, no lugar de Capitão América, Ogum, e o Homem de Ferro seria substituído por Oxaguiã.
Nas redes sociais, a imagem dos The Orixas (escrito sem acento agudo, propositalmente) criada por Canuto viralizou. Foi o suficiente para dar corda no projeto que o artista tinha há alguns anos, no qual aqueles personagens ganhariam vida nas páginas internas de uma graphic novel. Inscreveu o projeto em um site de crowdfunding (ou “vaquinha virtual”, para os não iniciados no termo) e pediu R$ 12 mil para viabilizar a HQ. O valor arrecadado ultrapassou a meta em mais de 300%. Com R$ 40 mil, o projeto está sendo realizado e, em breve, será anunciado o preço de capa. A ideia de Canuto é que tudo da HQ em formato americano (16 cm x 26 cm) e 90 páginas seja realizado de forma independente, sem o auxílio de outras editoras. As vendas, por enquanto, serão realizadas pela internet - para se manter atualizado, é bom seguir a página da HQ no Facebook.
A ideia de criar uma história baseada na cultura iorubá já é antiga para Canuto. O artista não é um novato no ofício de transportar personagens de culturas e mitologias para o formato dos quadrinhos, tampouco. É dele A Canção de Mayrube, lançada em 2015, uma HQ que buscou informações nas crenças e lendas das culturas latina, como maia e inca, para criar uma narrativa épica. Em 2014, quando trabalhava como arquiteto em uma empresa baiana de desenvolvimento urbano, tratou da proteção ao monumento Pedra de Xangô, na periferia de Salvador. Percebeu, conta, como parte da cultura iorubá era vista com olhos tortos. “E é uma influência tão grande para a nossa cultura”, avalia Canuto. “Ver pedaços dessa cultura serem tratados de uma maneira como aquela, destratados e desrespeitados, mexeu comigo.”
Canuto conhece de perto a cultura iorubá. Conta ter lido o livro Lendas Africanas dos Orixás, de Pierre Verger e com desenhos de Caribé, quando tinha 10 anos. Enquanto fazia as pesquisas para A Canção de Mayrube, mesmo que não fosse o foco principal, se aprofundou na cultura dos povos nigerianos que chegou ao Brasil com os navios negreiros. Com o bom resultado daquela capa da fictícia HQ The Orixas, entendeu que existia interesse em ver as aventuras dos orixás transportadas para o universo dos quadrinhos. Pela relação com o tema, a liberdade narrativa que encontrou em A Canção de Mayrube não foi a mesma. “Na HQ anterior, criei um universo, fui unindo as culturas. Foi um processo diferente do atual”, explica o autor, que está finalizando o roteiro da nova história, que deve ficar pronto até o fim do próximo mês. “No caso dos orixás, é preciso respeitar a cultura que está viva. É claro que vamos buscar uma estética diferente, um viés artístico, mas é preciso ter cuidado.”
O Thor que se conhece nos quadrinhos, exemplifica Canuto, é um “resquício da mitologia nórdica”, ao passo que a contraparte da cultura iorubá que o artista pretende levar para as páginas do quadrinho, o Xangô, deverá seguir mais fielmente a sua história. “Não se trata de um livro religioso”, ele explica. “Mas é uma narrativa que mexe com o arquétipo dos orixás.” Na mitologia, Xangô, que é o protagonista da primeira HQ de Contos de Òrun Àiyé, foi o quarto rei do reino de Oyo, um orixá guerreiro, vingativo, mas também justo. Ele representa o fogo, o sol, as tempestades e os trovões. Em vez de um martelo, como Thor, ele se arma de um machado de dois gumes. Diante da comparação, numa batalha entre os Vingadores da Marvel contra os Orixás, é aconselhável apostar as fichas no segundo grupo de heróis.