David Grossman, um dos principais autores israelenses, lança livro sobre a adolescência


Publicado originalmente em 1991, 'O Livro da Gramática Interior' é situado em Jerusalém, às vésperas da Guerra dos Seis Dias

Por Maria Fernanda Rodrigues

Quando começamos a acompanhar Aharon, o protagonista de O Livro da Gramática Interior, ele tem 12 anos, bons amigos e uma certa popularidade na escola. É criativo e divertido, faz truques de mágica, toca violão, ajuda a mãe a descascar batatas, lê os jornais para a avó. Aos poucos, porém, o garoto vai se encolhendo - ou, como diz o seu criador, o escritor israelense David Grossman, ele entra no túnel da adolescência. Ao sair de lá, aos 17 ou 18 anos, será totalmente diferente, novo para ele mesmo. “É nesse período que descobrimos nossa sexualidade, o outro sexo, o prazeroso e dolorido jogo entre meninos e meninas, a estrutura profunda do amor e da família”, diz o autor em entrevista ao Estado por telefone. 

Não sabemos como e se Aharon sairá do buraco. Presenciamos o início da sua adolescência, passamos por seu bar mitzvah, quando, por ordem da mãe, ele aparece entre os convidados usando um sapato com saltos. Enquanto os primos e amigos espichavam e viam suas vozes engrossarem, o protagonista não conseguia se livrar do dente de leite, os pelos não cresciam e as pernas permaneciam curtas e finas.

Obra se passa no final dos anos 1960 eacompanha Aharon, que não se desenvolve como os amigos Foto: Michael Lionstar/Divulgação
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O livro lançado agora no País foi escrito entre 1990 e 1991. Grossman, então pai de dois garotos que logo chegariam à puberdade, queria ser a voz do patriarca, mas no processo se reencontrou com o menino que foi, filho de uma família de refugiados poloneses vivendo num apertado apartamento popular de Jerusalém. Ele guarda todos os detalhes na memória e diz que sente que tem uma espécie de livre acesso à sua infância e adolescência. “Lembro-me tão bem da casa, dos cheiros, do vale que ficava na frente. Nós, as crianças dessa vizinhança meio pobre, não podíamos ficar em casa de tão pequenas e populosas que elas eram. Encontrávamos conforto fora, na rua. Sinto como se estivesse lá, agora. A forma que eu via meus pais, a minha luta por individualidade, a rebeldia diante deles. Essa é uma fotografia vívida e vital dentro de mim.” Esse é, também, o retrato do personagem.

Aos 61, Grossman conta que este livro continua muito vivo nele, que a experiência de escrevê-lo foi intensa e descreve sua adolescência - e de todos - como um período frágil, de se abrir para o mundo, decodificar a família, o comportamento e a linguagem. “Estamos inseguros com relação à vida, ao corpo e ao que pensam de nós. É um tempo intenso. Nesse sentido, não tenho certeza de que já ultrapassei essa fase, apesar da idade”, brinca. 

Narrado em terceira pessoa, O Livro da Gramática Interior pode ser lido como a história de um garoto em sofrimento, que tenta encontrar um lugar na sua família - e entre os fantasmas dessa família - e que está desesperado por respeito e por um pouco de atenção. Um garoto que não quer crescer tão rapidamente, mas que deseja sair, o menos traumatizado possível, daquele ambiente claustrofóbico e cruel que algumas famílias sabem proporcionar - para se ter uma ideia, a irmã mais velha de Aharon, desobedecendo aos pais, troca o uniforme da escola pelo do exército. 

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Ao mesmo tempo, há um tanto de loucura, bagunça, estruturas abaladas, ruínas, destruição. A presença da avó muda e inerte a observar. A vizinha a provocar. O mal sempre à espreita. E a mochila de reservista do pai, pronta à espera do chamado - que em Israel sempre vem. A história se passa em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, mas se o cenário fosse transportado para o tempo presente ela seria a mesma.

“De uma certa forma, este é um livro sobre um artista enquanto garoto e sobre como, às vezes, alguém se torna um artista apenas para ter um lugar só para si, de privacidade e intimidade, mesmo pertencendo a uma família tão intrusa e obsessiva”, conta o autor. Mesmo vivendo num país em conflito. Para ele, Ahron percebe, intuitivamente, que a única forma de continuar sendo ele mesmo é inventando esse lugar - no seu caso, a linguagem. “Ele cria para ele um hospital para palavras doentes. As palavras usadas por outros, poluídas, são purificadas numa cerimônia íntima”, explica. Este foi o jeito que encontrou de ter seu lugar no mundo. Um espaço livre, sem interrupção - embora nada possa ser tão íntimo com a mãe que ele tem. “Ela é cruel, politicamente incorreta, como muitos israelenses eram no período retratado no livro, e incapaz de se distinguir do filho. Ela acusa o menino de não estar crescendo o suficiente, e isso é terrível de se dizer. É como se a vergonha dele doesse nela”, diz o autor, que trata logo de avisar que embora sua família seja muito parecida com a da história, ainda assim ela é diferente.

Há um certo mistério envolvendo o pai e a avó paterna de Aharon, impedidos pela mãe autoritária de falar a língua original, o polonês, em casa. O passado dos dois é contado discretamente aqui e ali, e também aqui e ali faz lembrar as raízes do autor. Ele conta a sensação de ser refugiado foi o que mais marcou os membros de sua família. “Três anos depois que o meu pai fugiu da Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais da minha mãe também vieram de lá. A geração dos meus pais foi muito frágil, e não muito certa com relação à sua existência, procurando solidez de uma forma muito desesperada. Comida era quase sagrada. Fico pensando em como pessoas que vieram do inferno conseguiram ter alegria de viver, acolhimento, esperança. Em como, vindo das cinzas, eles conseguiram construir uma nação. É um mistério e uma sensação de que essas pessoas tão pequenininhas eram também gigantes.”

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Uma curiosidade que teria aliviado alguns dramas juvenis de Grossman. Gui’don, amigo descolado de Aharon, é inspirado num de seus colegas de adolescência. Quando terminou o livro, pediu que ele lesse e sua identificação foi com o encolhido protagonista. “Nem sempre reconhecemos a pessoa que está ao nosso lado como solitária e isolada, insegura e desesperada por nossa aprovação. Pensamos que somos mais frágeis, mais sozinhos. Quando lemos o livro, ele nos lê e traz muitas lembranças à superfície. Esse amigo viu sua vida interior vir à tona. A obra deu palavras a sentimentos negados por 20, 25 anos. Foi uma reação bonita. Se ele tivesse me dito isso há 25 anos, quando eu desesperadamente precisava saber que ele também se sentia solitário, minha vida teria sido diferente.”

Uma nova edição da obra está saindo em Israel 24 anos depois do lançamento. Há dois anos, David Grossman foi convidado a visitar a escola em que estudou quando tinha a idade de Arharon. “Foi muito especial ouvir de várias crianças que elas eram o Aharon.” O que mudou, comenta, é que agora elas querem dizer claramente que se sentem sozinhas, que não são compreendidas em sua individualidade. E é assim com crianças em todos os países onde ele foi traduzido. Isso me deixa muito feliz porque o livro faz com que não nos sintamos tão solitários.” 

Israel. Grossman se diz um provinciano - sempre morou em Jerusalém. “Hoje vivemos no subúrbio, e isso traz muitos benefícios. Vemos a beleza da cidade estando longe dela e não sofremos de todo o extremismo e fanatismo que há lá. Trata-se de um lugar muito bonito, mas insustentável politicamente. Os nervos estão muito expostos. É o coração do conflito entre Israel e Palestina. Sentimos isso ao entrar na cidade, onde até os grafites são violentos.” 

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Com isso tudo, e mesmo tendo perdido um filho a dois dias do cessar-fogo da guerra do Líbano e a três meses do término de seu serviço militar, ele nunca pensou em sair. “Aqui é a minha casa. Há tanta coisa que me amedronta e que é difícil de engolir, mas posso entender o comportamento das pessoas, sei por que elas cometem os erros que cometem. Posso entender seus medos - muitos dos quais são meus também. E posso entender como o medo pode impor um comportamento. Mas a vida é terrivelmente curta e quero vivê-la no único lugar que é relevante para mim.”

O escritor diz que não pode se dar o luxo de se desesperar diante do cenário, da alternância de catástrofes, mas considera que se a paz tivesse chegado ontem ela teria chegado tarde demais para todos. “Algumas características como brutalidade, ódio e racismo estão dos dois lados. Se vivemos nossa vida em guerra, e estamos em guerra há mais de 100 anos, é natural que haja efeitos terríveis no nosso comportamento - mesmo em casa. A violência foi formulada tão profundamente para você que ela aparece em muitos aspectos da sua vida.” A paz é um sonho irreal, ele diz, e mais importante do que resolver conflitos e disputas entre israelenses e palestinos, questões como segurança, ocupação, terrorismo e formas de dividir a terra é, como diz, sentir que a existência não corre risco. “Paz, para mim, é chance de recuperação e é liberdade. Países que vivem em liberdade por muito tempo acabam se esquecendo o que ela significa. Quando você deve estar o tempo todo em alerta para identificar imediatamente qualquer perigo, ameaça ou inimigo, você não é um indivíduo livre e esta não é uma sociedade livre. Ter paz vai nos permitir ser livres, coisa que não somos há milhares de anos. E é difícil desistir disso.”

Em Israel, os escritores de maior destaque e respeito são aqueles com alguma militância política e aqueles que levam essas questões para a obra. Para o autor, na literatura séria há sempre uma camada política. “Ela afeta a vida do escritor e dos que vivem essa realidade. Alguns autores viram as costas à essa realidade, nem todos escrevem de uma forma mais política como Amos Oz, A. B. Yehoshua ou eu. Negar isso não deixa de ser um ato político, mas é preciso se esforçar muito para negar a realidade de Israel e da Palestina”, explica. Ele diz, no entanto, que há diferentes formas de se tratar a questão. “Quando escrevo um artigo, tenho uma opinião e quero convencer o outro. Quando faço literatura, tenho dúvidas e perguntas. Vou tentar mostrar como a situação é cheia de contradições. O que a literatura deveria fazer é lembrar o leitor da complexidade da situação num jeito que o envolva mesmo quando você escreve sobre o inimigo do leitor.”

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Confira trechos da obra: “Ele jurou que mesmo quando for adulto e crescido e cabeludo, com a pele grossa e dura como seu pai, como todos acabarão sendo, ele se lembrará do menino que é agora, vai gravá-lo profundamente na memória, porque talvez haja coisas que se esquecem nesse processo de se tornar adulto, difícil dizer exatamente o que, mas com certeza existe algo que faz com que todos os adultos se pareçam um pouco, não no rosto, é claro, nem no caráter, mas numa coisa que existe em todos, uma coisa à qual todos eles pertencem, e à qual até obedecem, e quando Aharon for assim, crescido como eles, vai sussurrar para si mesmo pelo menos uma vez por dia I am go-ing; I am play-ing; I am Aharoning; e assim se lembrará de que ele também é um pouco esse Aharon particular, por baixo de todas essas coisas gerais. (...) Lentamente ele passa os olhos pelas fileiras. É com isso que terá um dia de construir suas lembranças?”

“Olhe bem, Aharon fica admirado: cada um parece centrado em si mesmo, mergulhado em pensamentos e calado, até mesmo triste, e no entanto nosso grupo é como um todo barulhento e parece alegre”

“Aharon se espantou porque a mãe está proibida de gritar com Iochi, já faz quase dois anos que está proibida, porque isso provoca assobios no ouvido dela.”

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“No jantar o silêncio foi total. Todos se concentraram em seus pratos. Junto à porta estava uma mochila preparada para o serviço de reservistas do exército, e Aharon pensou como ia ser se o pai também tivesse de ir e ele ficasse sozinho com a mãe.”

O LIVRO DA GRAMÁTICA INTERIORAutor: David Grossman Trad.: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (535 págs.; R$ 59,90; R$ 39,90 o e-book)

Quando começamos a acompanhar Aharon, o protagonista de O Livro da Gramática Interior, ele tem 12 anos, bons amigos e uma certa popularidade na escola. É criativo e divertido, faz truques de mágica, toca violão, ajuda a mãe a descascar batatas, lê os jornais para a avó. Aos poucos, porém, o garoto vai se encolhendo - ou, como diz o seu criador, o escritor israelense David Grossman, ele entra no túnel da adolescência. Ao sair de lá, aos 17 ou 18 anos, será totalmente diferente, novo para ele mesmo. “É nesse período que descobrimos nossa sexualidade, o outro sexo, o prazeroso e dolorido jogo entre meninos e meninas, a estrutura profunda do amor e da família”, diz o autor em entrevista ao Estado por telefone. 

Não sabemos como e se Aharon sairá do buraco. Presenciamos o início da sua adolescência, passamos por seu bar mitzvah, quando, por ordem da mãe, ele aparece entre os convidados usando um sapato com saltos. Enquanto os primos e amigos espichavam e viam suas vozes engrossarem, o protagonista não conseguia se livrar do dente de leite, os pelos não cresciam e as pernas permaneciam curtas e finas.

Obra se passa no final dos anos 1960 eacompanha Aharon, que não se desenvolve como os amigos Foto: Michael Lionstar/Divulgação

O livro lançado agora no País foi escrito entre 1990 e 1991. Grossman, então pai de dois garotos que logo chegariam à puberdade, queria ser a voz do patriarca, mas no processo se reencontrou com o menino que foi, filho de uma família de refugiados poloneses vivendo num apertado apartamento popular de Jerusalém. Ele guarda todos os detalhes na memória e diz que sente que tem uma espécie de livre acesso à sua infância e adolescência. “Lembro-me tão bem da casa, dos cheiros, do vale que ficava na frente. Nós, as crianças dessa vizinhança meio pobre, não podíamos ficar em casa de tão pequenas e populosas que elas eram. Encontrávamos conforto fora, na rua. Sinto como se estivesse lá, agora. A forma que eu via meus pais, a minha luta por individualidade, a rebeldia diante deles. Essa é uma fotografia vívida e vital dentro de mim.” Esse é, também, o retrato do personagem.

Aos 61, Grossman conta que este livro continua muito vivo nele, que a experiência de escrevê-lo foi intensa e descreve sua adolescência - e de todos - como um período frágil, de se abrir para o mundo, decodificar a família, o comportamento e a linguagem. “Estamos inseguros com relação à vida, ao corpo e ao que pensam de nós. É um tempo intenso. Nesse sentido, não tenho certeza de que já ultrapassei essa fase, apesar da idade”, brinca. 

Narrado em terceira pessoa, O Livro da Gramática Interior pode ser lido como a história de um garoto em sofrimento, que tenta encontrar um lugar na sua família - e entre os fantasmas dessa família - e que está desesperado por respeito e por um pouco de atenção. Um garoto que não quer crescer tão rapidamente, mas que deseja sair, o menos traumatizado possível, daquele ambiente claustrofóbico e cruel que algumas famílias sabem proporcionar - para se ter uma ideia, a irmã mais velha de Aharon, desobedecendo aos pais, troca o uniforme da escola pelo do exército. 

Ao mesmo tempo, há um tanto de loucura, bagunça, estruturas abaladas, ruínas, destruição. A presença da avó muda e inerte a observar. A vizinha a provocar. O mal sempre à espreita. E a mochila de reservista do pai, pronta à espera do chamado - que em Israel sempre vem. A história se passa em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, mas se o cenário fosse transportado para o tempo presente ela seria a mesma.

“De uma certa forma, este é um livro sobre um artista enquanto garoto e sobre como, às vezes, alguém se torna um artista apenas para ter um lugar só para si, de privacidade e intimidade, mesmo pertencendo a uma família tão intrusa e obsessiva”, conta o autor. Mesmo vivendo num país em conflito. Para ele, Ahron percebe, intuitivamente, que a única forma de continuar sendo ele mesmo é inventando esse lugar - no seu caso, a linguagem. “Ele cria para ele um hospital para palavras doentes. As palavras usadas por outros, poluídas, são purificadas numa cerimônia íntima”, explica. Este foi o jeito que encontrou de ter seu lugar no mundo. Um espaço livre, sem interrupção - embora nada possa ser tão íntimo com a mãe que ele tem. “Ela é cruel, politicamente incorreta, como muitos israelenses eram no período retratado no livro, e incapaz de se distinguir do filho. Ela acusa o menino de não estar crescendo o suficiente, e isso é terrível de se dizer. É como se a vergonha dele doesse nela”, diz o autor, que trata logo de avisar que embora sua família seja muito parecida com a da história, ainda assim ela é diferente.

Há um certo mistério envolvendo o pai e a avó paterna de Aharon, impedidos pela mãe autoritária de falar a língua original, o polonês, em casa. O passado dos dois é contado discretamente aqui e ali, e também aqui e ali faz lembrar as raízes do autor. Ele conta a sensação de ser refugiado foi o que mais marcou os membros de sua família. “Três anos depois que o meu pai fugiu da Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais da minha mãe também vieram de lá. A geração dos meus pais foi muito frágil, e não muito certa com relação à sua existência, procurando solidez de uma forma muito desesperada. Comida era quase sagrada. Fico pensando em como pessoas que vieram do inferno conseguiram ter alegria de viver, acolhimento, esperança. Em como, vindo das cinzas, eles conseguiram construir uma nação. É um mistério e uma sensação de que essas pessoas tão pequenininhas eram também gigantes.”

Uma curiosidade que teria aliviado alguns dramas juvenis de Grossman. Gui’don, amigo descolado de Aharon, é inspirado num de seus colegas de adolescência. Quando terminou o livro, pediu que ele lesse e sua identificação foi com o encolhido protagonista. “Nem sempre reconhecemos a pessoa que está ao nosso lado como solitária e isolada, insegura e desesperada por nossa aprovação. Pensamos que somos mais frágeis, mais sozinhos. Quando lemos o livro, ele nos lê e traz muitas lembranças à superfície. Esse amigo viu sua vida interior vir à tona. A obra deu palavras a sentimentos negados por 20, 25 anos. Foi uma reação bonita. Se ele tivesse me dito isso há 25 anos, quando eu desesperadamente precisava saber que ele também se sentia solitário, minha vida teria sido diferente.”

Uma nova edição da obra está saindo em Israel 24 anos depois do lançamento. Há dois anos, David Grossman foi convidado a visitar a escola em que estudou quando tinha a idade de Arharon. “Foi muito especial ouvir de várias crianças que elas eram o Aharon.” O que mudou, comenta, é que agora elas querem dizer claramente que se sentem sozinhas, que não são compreendidas em sua individualidade. E é assim com crianças em todos os países onde ele foi traduzido. Isso me deixa muito feliz porque o livro faz com que não nos sintamos tão solitários.” 

Israel. Grossman se diz um provinciano - sempre morou em Jerusalém. “Hoje vivemos no subúrbio, e isso traz muitos benefícios. Vemos a beleza da cidade estando longe dela e não sofremos de todo o extremismo e fanatismo que há lá. Trata-se de um lugar muito bonito, mas insustentável politicamente. Os nervos estão muito expostos. É o coração do conflito entre Israel e Palestina. Sentimos isso ao entrar na cidade, onde até os grafites são violentos.” 

Com isso tudo, e mesmo tendo perdido um filho a dois dias do cessar-fogo da guerra do Líbano e a três meses do término de seu serviço militar, ele nunca pensou em sair. “Aqui é a minha casa. Há tanta coisa que me amedronta e que é difícil de engolir, mas posso entender o comportamento das pessoas, sei por que elas cometem os erros que cometem. Posso entender seus medos - muitos dos quais são meus também. E posso entender como o medo pode impor um comportamento. Mas a vida é terrivelmente curta e quero vivê-la no único lugar que é relevante para mim.”

O escritor diz que não pode se dar o luxo de se desesperar diante do cenário, da alternância de catástrofes, mas considera que se a paz tivesse chegado ontem ela teria chegado tarde demais para todos. “Algumas características como brutalidade, ódio e racismo estão dos dois lados. Se vivemos nossa vida em guerra, e estamos em guerra há mais de 100 anos, é natural que haja efeitos terríveis no nosso comportamento - mesmo em casa. A violência foi formulada tão profundamente para você que ela aparece em muitos aspectos da sua vida.” A paz é um sonho irreal, ele diz, e mais importante do que resolver conflitos e disputas entre israelenses e palestinos, questões como segurança, ocupação, terrorismo e formas de dividir a terra é, como diz, sentir que a existência não corre risco. “Paz, para mim, é chance de recuperação e é liberdade. Países que vivem em liberdade por muito tempo acabam se esquecendo o que ela significa. Quando você deve estar o tempo todo em alerta para identificar imediatamente qualquer perigo, ameaça ou inimigo, você não é um indivíduo livre e esta não é uma sociedade livre. Ter paz vai nos permitir ser livres, coisa que não somos há milhares de anos. E é difícil desistir disso.”

Em Israel, os escritores de maior destaque e respeito são aqueles com alguma militância política e aqueles que levam essas questões para a obra. Para o autor, na literatura séria há sempre uma camada política. “Ela afeta a vida do escritor e dos que vivem essa realidade. Alguns autores viram as costas à essa realidade, nem todos escrevem de uma forma mais política como Amos Oz, A. B. Yehoshua ou eu. Negar isso não deixa de ser um ato político, mas é preciso se esforçar muito para negar a realidade de Israel e da Palestina”, explica. Ele diz, no entanto, que há diferentes formas de se tratar a questão. “Quando escrevo um artigo, tenho uma opinião e quero convencer o outro. Quando faço literatura, tenho dúvidas e perguntas. Vou tentar mostrar como a situação é cheia de contradições. O que a literatura deveria fazer é lembrar o leitor da complexidade da situação num jeito que o envolva mesmo quando você escreve sobre o inimigo do leitor.”

Confira trechos da obra: “Ele jurou que mesmo quando for adulto e crescido e cabeludo, com a pele grossa e dura como seu pai, como todos acabarão sendo, ele se lembrará do menino que é agora, vai gravá-lo profundamente na memória, porque talvez haja coisas que se esquecem nesse processo de se tornar adulto, difícil dizer exatamente o que, mas com certeza existe algo que faz com que todos os adultos se pareçam um pouco, não no rosto, é claro, nem no caráter, mas numa coisa que existe em todos, uma coisa à qual todos eles pertencem, e à qual até obedecem, e quando Aharon for assim, crescido como eles, vai sussurrar para si mesmo pelo menos uma vez por dia I am go-ing; I am play-ing; I am Aharoning; e assim se lembrará de que ele também é um pouco esse Aharon particular, por baixo de todas essas coisas gerais. (...) Lentamente ele passa os olhos pelas fileiras. É com isso que terá um dia de construir suas lembranças?”

“Olhe bem, Aharon fica admirado: cada um parece centrado em si mesmo, mergulhado em pensamentos e calado, até mesmo triste, e no entanto nosso grupo é como um todo barulhento e parece alegre”

“Aharon se espantou porque a mãe está proibida de gritar com Iochi, já faz quase dois anos que está proibida, porque isso provoca assobios no ouvido dela.”

“No jantar o silêncio foi total. Todos se concentraram em seus pratos. Junto à porta estava uma mochila preparada para o serviço de reservistas do exército, e Aharon pensou como ia ser se o pai também tivesse de ir e ele ficasse sozinho com a mãe.”

O LIVRO DA GRAMÁTICA INTERIORAutor: David Grossman Trad.: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (535 págs.; R$ 59,90; R$ 39,90 o e-book)

Quando começamos a acompanhar Aharon, o protagonista de O Livro da Gramática Interior, ele tem 12 anos, bons amigos e uma certa popularidade na escola. É criativo e divertido, faz truques de mágica, toca violão, ajuda a mãe a descascar batatas, lê os jornais para a avó. Aos poucos, porém, o garoto vai se encolhendo - ou, como diz o seu criador, o escritor israelense David Grossman, ele entra no túnel da adolescência. Ao sair de lá, aos 17 ou 18 anos, será totalmente diferente, novo para ele mesmo. “É nesse período que descobrimos nossa sexualidade, o outro sexo, o prazeroso e dolorido jogo entre meninos e meninas, a estrutura profunda do amor e da família”, diz o autor em entrevista ao Estado por telefone. 

Não sabemos como e se Aharon sairá do buraco. Presenciamos o início da sua adolescência, passamos por seu bar mitzvah, quando, por ordem da mãe, ele aparece entre os convidados usando um sapato com saltos. Enquanto os primos e amigos espichavam e viam suas vozes engrossarem, o protagonista não conseguia se livrar do dente de leite, os pelos não cresciam e as pernas permaneciam curtas e finas.

Obra se passa no final dos anos 1960 eacompanha Aharon, que não se desenvolve como os amigos Foto: Michael Lionstar/Divulgação

O livro lançado agora no País foi escrito entre 1990 e 1991. Grossman, então pai de dois garotos que logo chegariam à puberdade, queria ser a voz do patriarca, mas no processo se reencontrou com o menino que foi, filho de uma família de refugiados poloneses vivendo num apertado apartamento popular de Jerusalém. Ele guarda todos os detalhes na memória e diz que sente que tem uma espécie de livre acesso à sua infância e adolescência. “Lembro-me tão bem da casa, dos cheiros, do vale que ficava na frente. Nós, as crianças dessa vizinhança meio pobre, não podíamos ficar em casa de tão pequenas e populosas que elas eram. Encontrávamos conforto fora, na rua. Sinto como se estivesse lá, agora. A forma que eu via meus pais, a minha luta por individualidade, a rebeldia diante deles. Essa é uma fotografia vívida e vital dentro de mim.” Esse é, também, o retrato do personagem.

Aos 61, Grossman conta que este livro continua muito vivo nele, que a experiência de escrevê-lo foi intensa e descreve sua adolescência - e de todos - como um período frágil, de se abrir para o mundo, decodificar a família, o comportamento e a linguagem. “Estamos inseguros com relação à vida, ao corpo e ao que pensam de nós. É um tempo intenso. Nesse sentido, não tenho certeza de que já ultrapassei essa fase, apesar da idade”, brinca. 

Narrado em terceira pessoa, O Livro da Gramática Interior pode ser lido como a história de um garoto em sofrimento, que tenta encontrar um lugar na sua família - e entre os fantasmas dessa família - e que está desesperado por respeito e por um pouco de atenção. Um garoto que não quer crescer tão rapidamente, mas que deseja sair, o menos traumatizado possível, daquele ambiente claustrofóbico e cruel que algumas famílias sabem proporcionar - para se ter uma ideia, a irmã mais velha de Aharon, desobedecendo aos pais, troca o uniforme da escola pelo do exército. 

Ao mesmo tempo, há um tanto de loucura, bagunça, estruturas abaladas, ruínas, destruição. A presença da avó muda e inerte a observar. A vizinha a provocar. O mal sempre à espreita. E a mochila de reservista do pai, pronta à espera do chamado - que em Israel sempre vem. A história se passa em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, mas se o cenário fosse transportado para o tempo presente ela seria a mesma.

“De uma certa forma, este é um livro sobre um artista enquanto garoto e sobre como, às vezes, alguém se torna um artista apenas para ter um lugar só para si, de privacidade e intimidade, mesmo pertencendo a uma família tão intrusa e obsessiva”, conta o autor. Mesmo vivendo num país em conflito. Para ele, Ahron percebe, intuitivamente, que a única forma de continuar sendo ele mesmo é inventando esse lugar - no seu caso, a linguagem. “Ele cria para ele um hospital para palavras doentes. As palavras usadas por outros, poluídas, são purificadas numa cerimônia íntima”, explica. Este foi o jeito que encontrou de ter seu lugar no mundo. Um espaço livre, sem interrupção - embora nada possa ser tão íntimo com a mãe que ele tem. “Ela é cruel, politicamente incorreta, como muitos israelenses eram no período retratado no livro, e incapaz de se distinguir do filho. Ela acusa o menino de não estar crescendo o suficiente, e isso é terrível de se dizer. É como se a vergonha dele doesse nela”, diz o autor, que trata logo de avisar que embora sua família seja muito parecida com a da história, ainda assim ela é diferente.

Há um certo mistério envolvendo o pai e a avó paterna de Aharon, impedidos pela mãe autoritária de falar a língua original, o polonês, em casa. O passado dos dois é contado discretamente aqui e ali, e também aqui e ali faz lembrar as raízes do autor. Ele conta a sensação de ser refugiado foi o que mais marcou os membros de sua família. “Três anos depois que o meu pai fugiu da Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais da minha mãe também vieram de lá. A geração dos meus pais foi muito frágil, e não muito certa com relação à sua existência, procurando solidez de uma forma muito desesperada. Comida era quase sagrada. Fico pensando em como pessoas que vieram do inferno conseguiram ter alegria de viver, acolhimento, esperança. Em como, vindo das cinzas, eles conseguiram construir uma nação. É um mistério e uma sensação de que essas pessoas tão pequenininhas eram também gigantes.”

Uma curiosidade que teria aliviado alguns dramas juvenis de Grossman. Gui’don, amigo descolado de Aharon, é inspirado num de seus colegas de adolescência. Quando terminou o livro, pediu que ele lesse e sua identificação foi com o encolhido protagonista. “Nem sempre reconhecemos a pessoa que está ao nosso lado como solitária e isolada, insegura e desesperada por nossa aprovação. Pensamos que somos mais frágeis, mais sozinhos. Quando lemos o livro, ele nos lê e traz muitas lembranças à superfície. Esse amigo viu sua vida interior vir à tona. A obra deu palavras a sentimentos negados por 20, 25 anos. Foi uma reação bonita. Se ele tivesse me dito isso há 25 anos, quando eu desesperadamente precisava saber que ele também se sentia solitário, minha vida teria sido diferente.”

Uma nova edição da obra está saindo em Israel 24 anos depois do lançamento. Há dois anos, David Grossman foi convidado a visitar a escola em que estudou quando tinha a idade de Arharon. “Foi muito especial ouvir de várias crianças que elas eram o Aharon.” O que mudou, comenta, é que agora elas querem dizer claramente que se sentem sozinhas, que não são compreendidas em sua individualidade. E é assim com crianças em todos os países onde ele foi traduzido. Isso me deixa muito feliz porque o livro faz com que não nos sintamos tão solitários.” 

Israel. Grossman se diz um provinciano - sempre morou em Jerusalém. “Hoje vivemos no subúrbio, e isso traz muitos benefícios. Vemos a beleza da cidade estando longe dela e não sofremos de todo o extremismo e fanatismo que há lá. Trata-se de um lugar muito bonito, mas insustentável politicamente. Os nervos estão muito expostos. É o coração do conflito entre Israel e Palestina. Sentimos isso ao entrar na cidade, onde até os grafites são violentos.” 

Com isso tudo, e mesmo tendo perdido um filho a dois dias do cessar-fogo da guerra do Líbano e a três meses do término de seu serviço militar, ele nunca pensou em sair. “Aqui é a minha casa. Há tanta coisa que me amedronta e que é difícil de engolir, mas posso entender o comportamento das pessoas, sei por que elas cometem os erros que cometem. Posso entender seus medos - muitos dos quais são meus também. E posso entender como o medo pode impor um comportamento. Mas a vida é terrivelmente curta e quero vivê-la no único lugar que é relevante para mim.”

O escritor diz que não pode se dar o luxo de se desesperar diante do cenário, da alternância de catástrofes, mas considera que se a paz tivesse chegado ontem ela teria chegado tarde demais para todos. “Algumas características como brutalidade, ódio e racismo estão dos dois lados. Se vivemos nossa vida em guerra, e estamos em guerra há mais de 100 anos, é natural que haja efeitos terríveis no nosso comportamento - mesmo em casa. A violência foi formulada tão profundamente para você que ela aparece em muitos aspectos da sua vida.” A paz é um sonho irreal, ele diz, e mais importante do que resolver conflitos e disputas entre israelenses e palestinos, questões como segurança, ocupação, terrorismo e formas de dividir a terra é, como diz, sentir que a existência não corre risco. “Paz, para mim, é chance de recuperação e é liberdade. Países que vivem em liberdade por muito tempo acabam se esquecendo o que ela significa. Quando você deve estar o tempo todo em alerta para identificar imediatamente qualquer perigo, ameaça ou inimigo, você não é um indivíduo livre e esta não é uma sociedade livre. Ter paz vai nos permitir ser livres, coisa que não somos há milhares de anos. E é difícil desistir disso.”

Em Israel, os escritores de maior destaque e respeito são aqueles com alguma militância política e aqueles que levam essas questões para a obra. Para o autor, na literatura séria há sempre uma camada política. “Ela afeta a vida do escritor e dos que vivem essa realidade. Alguns autores viram as costas à essa realidade, nem todos escrevem de uma forma mais política como Amos Oz, A. B. Yehoshua ou eu. Negar isso não deixa de ser um ato político, mas é preciso se esforçar muito para negar a realidade de Israel e da Palestina”, explica. Ele diz, no entanto, que há diferentes formas de se tratar a questão. “Quando escrevo um artigo, tenho uma opinião e quero convencer o outro. Quando faço literatura, tenho dúvidas e perguntas. Vou tentar mostrar como a situação é cheia de contradições. O que a literatura deveria fazer é lembrar o leitor da complexidade da situação num jeito que o envolva mesmo quando você escreve sobre o inimigo do leitor.”

Confira trechos da obra: “Ele jurou que mesmo quando for adulto e crescido e cabeludo, com a pele grossa e dura como seu pai, como todos acabarão sendo, ele se lembrará do menino que é agora, vai gravá-lo profundamente na memória, porque talvez haja coisas que se esquecem nesse processo de se tornar adulto, difícil dizer exatamente o que, mas com certeza existe algo que faz com que todos os adultos se pareçam um pouco, não no rosto, é claro, nem no caráter, mas numa coisa que existe em todos, uma coisa à qual todos eles pertencem, e à qual até obedecem, e quando Aharon for assim, crescido como eles, vai sussurrar para si mesmo pelo menos uma vez por dia I am go-ing; I am play-ing; I am Aharoning; e assim se lembrará de que ele também é um pouco esse Aharon particular, por baixo de todas essas coisas gerais. (...) Lentamente ele passa os olhos pelas fileiras. É com isso que terá um dia de construir suas lembranças?”

“Olhe bem, Aharon fica admirado: cada um parece centrado em si mesmo, mergulhado em pensamentos e calado, até mesmo triste, e no entanto nosso grupo é como um todo barulhento e parece alegre”

“Aharon se espantou porque a mãe está proibida de gritar com Iochi, já faz quase dois anos que está proibida, porque isso provoca assobios no ouvido dela.”

“No jantar o silêncio foi total. Todos se concentraram em seus pratos. Junto à porta estava uma mochila preparada para o serviço de reservistas do exército, e Aharon pensou como ia ser se o pai também tivesse de ir e ele ficasse sozinho com a mãe.”

O LIVRO DA GRAMÁTICA INTERIORAutor: David Grossman Trad.: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (535 págs.; R$ 59,90; R$ 39,90 o e-book)

Quando começamos a acompanhar Aharon, o protagonista de O Livro da Gramática Interior, ele tem 12 anos, bons amigos e uma certa popularidade na escola. É criativo e divertido, faz truques de mágica, toca violão, ajuda a mãe a descascar batatas, lê os jornais para a avó. Aos poucos, porém, o garoto vai se encolhendo - ou, como diz o seu criador, o escritor israelense David Grossman, ele entra no túnel da adolescência. Ao sair de lá, aos 17 ou 18 anos, será totalmente diferente, novo para ele mesmo. “É nesse período que descobrimos nossa sexualidade, o outro sexo, o prazeroso e dolorido jogo entre meninos e meninas, a estrutura profunda do amor e da família”, diz o autor em entrevista ao Estado por telefone. 

Não sabemos como e se Aharon sairá do buraco. Presenciamos o início da sua adolescência, passamos por seu bar mitzvah, quando, por ordem da mãe, ele aparece entre os convidados usando um sapato com saltos. Enquanto os primos e amigos espichavam e viam suas vozes engrossarem, o protagonista não conseguia se livrar do dente de leite, os pelos não cresciam e as pernas permaneciam curtas e finas.

Obra se passa no final dos anos 1960 eacompanha Aharon, que não se desenvolve como os amigos Foto: Michael Lionstar/Divulgação

O livro lançado agora no País foi escrito entre 1990 e 1991. Grossman, então pai de dois garotos que logo chegariam à puberdade, queria ser a voz do patriarca, mas no processo se reencontrou com o menino que foi, filho de uma família de refugiados poloneses vivendo num apertado apartamento popular de Jerusalém. Ele guarda todos os detalhes na memória e diz que sente que tem uma espécie de livre acesso à sua infância e adolescência. “Lembro-me tão bem da casa, dos cheiros, do vale que ficava na frente. Nós, as crianças dessa vizinhança meio pobre, não podíamos ficar em casa de tão pequenas e populosas que elas eram. Encontrávamos conforto fora, na rua. Sinto como se estivesse lá, agora. A forma que eu via meus pais, a minha luta por individualidade, a rebeldia diante deles. Essa é uma fotografia vívida e vital dentro de mim.” Esse é, também, o retrato do personagem.

Aos 61, Grossman conta que este livro continua muito vivo nele, que a experiência de escrevê-lo foi intensa e descreve sua adolescência - e de todos - como um período frágil, de se abrir para o mundo, decodificar a família, o comportamento e a linguagem. “Estamos inseguros com relação à vida, ao corpo e ao que pensam de nós. É um tempo intenso. Nesse sentido, não tenho certeza de que já ultrapassei essa fase, apesar da idade”, brinca. 

Narrado em terceira pessoa, O Livro da Gramática Interior pode ser lido como a história de um garoto em sofrimento, que tenta encontrar um lugar na sua família - e entre os fantasmas dessa família - e que está desesperado por respeito e por um pouco de atenção. Um garoto que não quer crescer tão rapidamente, mas que deseja sair, o menos traumatizado possível, daquele ambiente claustrofóbico e cruel que algumas famílias sabem proporcionar - para se ter uma ideia, a irmã mais velha de Aharon, desobedecendo aos pais, troca o uniforme da escola pelo do exército. 

Ao mesmo tempo, há um tanto de loucura, bagunça, estruturas abaladas, ruínas, destruição. A presença da avó muda e inerte a observar. A vizinha a provocar. O mal sempre à espreita. E a mochila de reservista do pai, pronta à espera do chamado - que em Israel sempre vem. A história se passa em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, mas se o cenário fosse transportado para o tempo presente ela seria a mesma.

“De uma certa forma, este é um livro sobre um artista enquanto garoto e sobre como, às vezes, alguém se torna um artista apenas para ter um lugar só para si, de privacidade e intimidade, mesmo pertencendo a uma família tão intrusa e obsessiva”, conta o autor. Mesmo vivendo num país em conflito. Para ele, Ahron percebe, intuitivamente, que a única forma de continuar sendo ele mesmo é inventando esse lugar - no seu caso, a linguagem. “Ele cria para ele um hospital para palavras doentes. As palavras usadas por outros, poluídas, são purificadas numa cerimônia íntima”, explica. Este foi o jeito que encontrou de ter seu lugar no mundo. Um espaço livre, sem interrupção - embora nada possa ser tão íntimo com a mãe que ele tem. “Ela é cruel, politicamente incorreta, como muitos israelenses eram no período retratado no livro, e incapaz de se distinguir do filho. Ela acusa o menino de não estar crescendo o suficiente, e isso é terrível de se dizer. É como se a vergonha dele doesse nela”, diz o autor, que trata logo de avisar que embora sua família seja muito parecida com a da história, ainda assim ela é diferente.

Há um certo mistério envolvendo o pai e a avó paterna de Aharon, impedidos pela mãe autoritária de falar a língua original, o polonês, em casa. O passado dos dois é contado discretamente aqui e ali, e também aqui e ali faz lembrar as raízes do autor. Ele conta a sensação de ser refugiado foi o que mais marcou os membros de sua família. “Três anos depois que o meu pai fugiu da Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais da minha mãe também vieram de lá. A geração dos meus pais foi muito frágil, e não muito certa com relação à sua existência, procurando solidez de uma forma muito desesperada. Comida era quase sagrada. Fico pensando em como pessoas que vieram do inferno conseguiram ter alegria de viver, acolhimento, esperança. Em como, vindo das cinzas, eles conseguiram construir uma nação. É um mistério e uma sensação de que essas pessoas tão pequenininhas eram também gigantes.”

Uma curiosidade que teria aliviado alguns dramas juvenis de Grossman. Gui’don, amigo descolado de Aharon, é inspirado num de seus colegas de adolescência. Quando terminou o livro, pediu que ele lesse e sua identificação foi com o encolhido protagonista. “Nem sempre reconhecemos a pessoa que está ao nosso lado como solitária e isolada, insegura e desesperada por nossa aprovação. Pensamos que somos mais frágeis, mais sozinhos. Quando lemos o livro, ele nos lê e traz muitas lembranças à superfície. Esse amigo viu sua vida interior vir à tona. A obra deu palavras a sentimentos negados por 20, 25 anos. Foi uma reação bonita. Se ele tivesse me dito isso há 25 anos, quando eu desesperadamente precisava saber que ele também se sentia solitário, minha vida teria sido diferente.”

Uma nova edição da obra está saindo em Israel 24 anos depois do lançamento. Há dois anos, David Grossman foi convidado a visitar a escola em que estudou quando tinha a idade de Arharon. “Foi muito especial ouvir de várias crianças que elas eram o Aharon.” O que mudou, comenta, é que agora elas querem dizer claramente que se sentem sozinhas, que não são compreendidas em sua individualidade. E é assim com crianças em todos os países onde ele foi traduzido. Isso me deixa muito feliz porque o livro faz com que não nos sintamos tão solitários.” 

Israel. Grossman se diz um provinciano - sempre morou em Jerusalém. “Hoje vivemos no subúrbio, e isso traz muitos benefícios. Vemos a beleza da cidade estando longe dela e não sofremos de todo o extremismo e fanatismo que há lá. Trata-se de um lugar muito bonito, mas insustentável politicamente. Os nervos estão muito expostos. É o coração do conflito entre Israel e Palestina. Sentimos isso ao entrar na cidade, onde até os grafites são violentos.” 

Com isso tudo, e mesmo tendo perdido um filho a dois dias do cessar-fogo da guerra do Líbano e a três meses do término de seu serviço militar, ele nunca pensou em sair. “Aqui é a minha casa. Há tanta coisa que me amedronta e que é difícil de engolir, mas posso entender o comportamento das pessoas, sei por que elas cometem os erros que cometem. Posso entender seus medos - muitos dos quais são meus também. E posso entender como o medo pode impor um comportamento. Mas a vida é terrivelmente curta e quero vivê-la no único lugar que é relevante para mim.”

O escritor diz que não pode se dar o luxo de se desesperar diante do cenário, da alternância de catástrofes, mas considera que se a paz tivesse chegado ontem ela teria chegado tarde demais para todos. “Algumas características como brutalidade, ódio e racismo estão dos dois lados. Se vivemos nossa vida em guerra, e estamos em guerra há mais de 100 anos, é natural que haja efeitos terríveis no nosso comportamento - mesmo em casa. A violência foi formulada tão profundamente para você que ela aparece em muitos aspectos da sua vida.” A paz é um sonho irreal, ele diz, e mais importante do que resolver conflitos e disputas entre israelenses e palestinos, questões como segurança, ocupação, terrorismo e formas de dividir a terra é, como diz, sentir que a existência não corre risco. “Paz, para mim, é chance de recuperação e é liberdade. Países que vivem em liberdade por muito tempo acabam se esquecendo o que ela significa. Quando você deve estar o tempo todo em alerta para identificar imediatamente qualquer perigo, ameaça ou inimigo, você não é um indivíduo livre e esta não é uma sociedade livre. Ter paz vai nos permitir ser livres, coisa que não somos há milhares de anos. E é difícil desistir disso.”

Em Israel, os escritores de maior destaque e respeito são aqueles com alguma militância política e aqueles que levam essas questões para a obra. Para o autor, na literatura séria há sempre uma camada política. “Ela afeta a vida do escritor e dos que vivem essa realidade. Alguns autores viram as costas à essa realidade, nem todos escrevem de uma forma mais política como Amos Oz, A. B. Yehoshua ou eu. Negar isso não deixa de ser um ato político, mas é preciso se esforçar muito para negar a realidade de Israel e da Palestina”, explica. Ele diz, no entanto, que há diferentes formas de se tratar a questão. “Quando escrevo um artigo, tenho uma opinião e quero convencer o outro. Quando faço literatura, tenho dúvidas e perguntas. Vou tentar mostrar como a situação é cheia de contradições. O que a literatura deveria fazer é lembrar o leitor da complexidade da situação num jeito que o envolva mesmo quando você escreve sobre o inimigo do leitor.”

Confira trechos da obra: “Ele jurou que mesmo quando for adulto e crescido e cabeludo, com a pele grossa e dura como seu pai, como todos acabarão sendo, ele se lembrará do menino que é agora, vai gravá-lo profundamente na memória, porque talvez haja coisas que se esquecem nesse processo de se tornar adulto, difícil dizer exatamente o que, mas com certeza existe algo que faz com que todos os adultos se pareçam um pouco, não no rosto, é claro, nem no caráter, mas numa coisa que existe em todos, uma coisa à qual todos eles pertencem, e à qual até obedecem, e quando Aharon for assim, crescido como eles, vai sussurrar para si mesmo pelo menos uma vez por dia I am go-ing; I am play-ing; I am Aharoning; e assim se lembrará de que ele também é um pouco esse Aharon particular, por baixo de todas essas coisas gerais. (...) Lentamente ele passa os olhos pelas fileiras. É com isso que terá um dia de construir suas lembranças?”

“Olhe bem, Aharon fica admirado: cada um parece centrado em si mesmo, mergulhado em pensamentos e calado, até mesmo triste, e no entanto nosso grupo é como um todo barulhento e parece alegre”

“Aharon se espantou porque a mãe está proibida de gritar com Iochi, já faz quase dois anos que está proibida, porque isso provoca assobios no ouvido dela.”

“No jantar o silêncio foi total. Todos se concentraram em seus pratos. Junto à porta estava uma mochila preparada para o serviço de reservistas do exército, e Aharon pensou como ia ser se o pai também tivesse de ir e ele ficasse sozinho com a mãe.”

O LIVRO DA GRAMÁTICA INTERIORAutor: David Grossman Trad.: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (535 págs.; R$ 59,90; R$ 39,90 o e-book)

Quando começamos a acompanhar Aharon, o protagonista de O Livro da Gramática Interior, ele tem 12 anos, bons amigos e uma certa popularidade na escola. É criativo e divertido, faz truques de mágica, toca violão, ajuda a mãe a descascar batatas, lê os jornais para a avó. Aos poucos, porém, o garoto vai se encolhendo - ou, como diz o seu criador, o escritor israelense David Grossman, ele entra no túnel da adolescência. Ao sair de lá, aos 17 ou 18 anos, será totalmente diferente, novo para ele mesmo. “É nesse período que descobrimos nossa sexualidade, o outro sexo, o prazeroso e dolorido jogo entre meninos e meninas, a estrutura profunda do amor e da família”, diz o autor em entrevista ao Estado por telefone. 

Não sabemos como e se Aharon sairá do buraco. Presenciamos o início da sua adolescência, passamos por seu bar mitzvah, quando, por ordem da mãe, ele aparece entre os convidados usando um sapato com saltos. Enquanto os primos e amigos espichavam e viam suas vozes engrossarem, o protagonista não conseguia se livrar do dente de leite, os pelos não cresciam e as pernas permaneciam curtas e finas.

Obra se passa no final dos anos 1960 eacompanha Aharon, que não se desenvolve como os amigos Foto: Michael Lionstar/Divulgação

O livro lançado agora no País foi escrito entre 1990 e 1991. Grossman, então pai de dois garotos que logo chegariam à puberdade, queria ser a voz do patriarca, mas no processo se reencontrou com o menino que foi, filho de uma família de refugiados poloneses vivendo num apertado apartamento popular de Jerusalém. Ele guarda todos os detalhes na memória e diz que sente que tem uma espécie de livre acesso à sua infância e adolescência. “Lembro-me tão bem da casa, dos cheiros, do vale que ficava na frente. Nós, as crianças dessa vizinhança meio pobre, não podíamos ficar em casa de tão pequenas e populosas que elas eram. Encontrávamos conforto fora, na rua. Sinto como se estivesse lá, agora. A forma que eu via meus pais, a minha luta por individualidade, a rebeldia diante deles. Essa é uma fotografia vívida e vital dentro de mim.” Esse é, também, o retrato do personagem.

Aos 61, Grossman conta que este livro continua muito vivo nele, que a experiência de escrevê-lo foi intensa e descreve sua adolescência - e de todos - como um período frágil, de se abrir para o mundo, decodificar a família, o comportamento e a linguagem. “Estamos inseguros com relação à vida, ao corpo e ao que pensam de nós. É um tempo intenso. Nesse sentido, não tenho certeza de que já ultrapassei essa fase, apesar da idade”, brinca. 

Narrado em terceira pessoa, O Livro da Gramática Interior pode ser lido como a história de um garoto em sofrimento, que tenta encontrar um lugar na sua família - e entre os fantasmas dessa família - e que está desesperado por respeito e por um pouco de atenção. Um garoto que não quer crescer tão rapidamente, mas que deseja sair, o menos traumatizado possível, daquele ambiente claustrofóbico e cruel que algumas famílias sabem proporcionar - para se ter uma ideia, a irmã mais velha de Aharon, desobedecendo aos pais, troca o uniforme da escola pelo do exército. 

Ao mesmo tempo, há um tanto de loucura, bagunça, estruturas abaladas, ruínas, destruição. A presença da avó muda e inerte a observar. A vizinha a provocar. O mal sempre à espreita. E a mochila de reservista do pai, pronta à espera do chamado - que em Israel sempre vem. A história se passa em 1967, às vésperas da Guerra dos Seis Dias, mas se o cenário fosse transportado para o tempo presente ela seria a mesma.

“De uma certa forma, este é um livro sobre um artista enquanto garoto e sobre como, às vezes, alguém se torna um artista apenas para ter um lugar só para si, de privacidade e intimidade, mesmo pertencendo a uma família tão intrusa e obsessiva”, conta o autor. Mesmo vivendo num país em conflito. Para ele, Ahron percebe, intuitivamente, que a única forma de continuar sendo ele mesmo é inventando esse lugar - no seu caso, a linguagem. “Ele cria para ele um hospital para palavras doentes. As palavras usadas por outros, poluídas, são purificadas numa cerimônia íntima”, explica. Este foi o jeito que encontrou de ter seu lugar no mundo. Um espaço livre, sem interrupção - embora nada possa ser tão íntimo com a mãe que ele tem. “Ela é cruel, politicamente incorreta, como muitos israelenses eram no período retratado no livro, e incapaz de se distinguir do filho. Ela acusa o menino de não estar crescendo o suficiente, e isso é terrível de se dizer. É como se a vergonha dele doesse nela”, diz o autor, que trata logo de avisar que embora sua família seja muito parecida com a da história, ainda assim ela é diferente.

Há um certo mistério envolvendo o pai e a avó paterna de Aharon, impedidos pela mãe autoritária de falar a língua original, o polonês, em casa. O passado dos dois é contado discretamente aqui e ali, e também aqui e ali faz lembrar as raízes do autor. Ele conta a sensação de ser refugiado foi o que mais marcou os membros de sua família. “Três anos depois que o meu pai fugiu da Polônia, começou a Segunda Guerra Mundial. Os pais da minha mãe também vieram de lá. A geração dos meus pais foi muito frágil, e não muito certa com relação à sua existência, procurando solidez de uma forma muito desesperada. Comida era quase sagrada. Fico pensando em como pessoas que vieram do inferno conseguiram ter alegria de viver, acolhimento, esperança. Em como, vindo das cinzas, eles conseguiram construir uma nação. É um mistério e uma sensação de que essas pessoas tão pequenininhas eram também gigantes.”

Uma curiosidade que teria aliviado alguns dramas juvenis de Grossman. Gui’don, amigo descolado de Aharon, é inspirado num de seus colegas de adolescência. Quando terminou o livro, pediu que ele lesse e sua identificação foi com o encolhido protagonista. “Nem sempre reconhecemos a pessoa que está ao nosso lado como solitária e isolada, insegura e desesperada por nossa aprovação. Pensamos que somos mais frágeis, mais sozinhos. Quando lemos o livro, ele nos lê e traz muitas lembranças à superfície. Esse amigo viu sua vida interior vir à tona. A obra deu palavras a sentimentos negados por 20, 25 anos. Foi uma reação bonita. Se ele tivesse me dito isso há 25 anos, quando eu desesperadamente precisava saber que ele também se sentia solitário, minha vida teria sido diferente.”

Uma nova edição da obra está saindo em Israel 24 anos depois do lançamento. Há dois anos, David Grossman foi convidado a visitar a escola em que estudou quando tinha a idade de Arharon. “Foi muito especial ouvir de várias crianças que elas eram o Aharon.” O que mudou, comenta, é que agora elas querem dizer claramente que se sentem sozinhas, que não são compreendidas em sua individualidade. E é assim com crianças em todos os países onde ele foi traduzido. Isso me deixa muito feliz porque o livro faz com que não nos sintamos tão solitários.” 

Israel. Grossman se diz um provinciano - sempre morou em Jerusalém. “Hoje vivemos no subúrbio, e isso traz muitos benefícios. Vemos a beleza da cidade estando longe dela e não sofremos de todo o extremismo e fanatismo que há lá. Trata-se de um lugar muito bonito, mas insustentável politicamente. Os nervos estão muito expostos. É o coração do conflito entre Israel e Palestina. Sentimos isso ao entrar na cidade, onde até os grafites são violentos.” 

Com isso tudo, e mesmo tendo perdido um filho a dois dias do cessar-fogo da guerra do Líbano e a três meses do término de seu serviço militar, ele nunca pensou em sair. “Aqui é a minha casa. Há tanta coisa que me amedronta e que é difícil de engolir, mas posso entender o comportamento das pessoas, sei por que elas cometem os erros que cometem. Posso entender seus medos - muitos dos quais são meus também. E posso entender como o medo pode impor um comportamento. Mas a vida é terrivelmente curta e quero vivê-la no único lugar que é relevante para mim.”

O escritor diz que não pode se dar o luxo de se desesperar diante do cenário, da alternância de catástrofes, mas considera que se a paz tivesse chegado ontem ela teria chegado tarde demais para todos. “Algumas características como brutalidade, ódio e racismo estão dos dois lados. Se vivemos nossa vida em guerra, e estamos em guerra há mais de 100 anos, é natural que haja efeitos terríveis no nosso comportamento - mesmo em casa. A violência foi formulada tão profundamente para você que ela aparece em muitos aspectos da sua vida.” A paz é um sonho irreal, ele diz, e mais importante do que resolver conflitos e disputas entre israelenses e palestinos, questões como segurança, ocupação, terrorismo e formas de dividir a terra é, como diz, sentir que a existência não corre risco. “Paz, para mim, é chance de recuperação e é liberdade. Países que vivem em liberdade por muito tempo acabam se esquecendo o que ela significa. Quando você deve estar o tempo todo em alerta para identificar imediatamente qualquer perigo, ameaça ou inimigo, você não é um indivíduo livre e esta não é uma sociedade livre. Ter paz vai nos permitir ser livres, coisa que não somos há milhares de anos. E é difícil desistir disso.”

Em Israel, os escritores de maior destaque e respeito são aqueles com alguma militância política e aqueles que levam essas questões para a obra. Para o autor, na literatura séria há sempre uma camada política. “Ela afeta a vida do escritor e dos que vivem essa realidade. Alguns autores viram as costas à essa realidade, nem todos escrevem de uma forma mais política como Amos Oz, A. B. Yehoshua ou eu. Negar isso não deixa de ser um ato político, mas é preciso se esforçar muito para negar a realidade de Israel e da Palestina”, explica. Ele diz, no entanto, que há diferentes formas de se tratar a questão. “Quando escrevo um artigo, tenho uma opinião e quero convencer o outro. Quando faço literatura, tenho dúvidas e perguntas. Vou tentar mostrar como a situação é cheia de contradições. O que a literatura deveria fazer é lembrar o leitor da complexidade da situação num jeito que o envolva mesmo quando você escreve sobre o inimigo do leitor.”

Confira trechos da obra: “Ele jurou que mesmo quando for adulto e crescido e cabeludo, com a pele grossa e dura como seu pai, como todos acabarão sendo, ele se lembrará do menino que é agora, vai gravá-lo profundamente na memória, porque talvez haja coisas que se esquecem nesse processo de se tornar adulto, difícil dizer exatamente o que, mas com certeza existe algo que faz com que todos os adultos se pareçam um pouco, não no rosto, é claro, nem no caráter, mas numa coisa que existe em todos, uma coisa à qual todos eles pertencem, e à qual até obedecem, e quando Aharon for assim, crescido como eles, vai sussurrar para si mesmo pelo menos uma vez por dia I am go-ing; I am play-ing; I am Aharoning; e assim se lembrará de que ele também é um pouco esse Aharon particular, por baixo de todas essas coisas gerais. (...) Lentamente ele passa os olhos pelas fileiras. É com isso que terá um dia de construir suas lembranças?”

“Olhe bem, Aharon fica admirado: cada um parece centrado em si mesmo, mergulhado em pensamentos e calado, até mesmo triste, e no entanto nosso grupo é como um todo barulhento e parece alegre”

“Aharon se espantou porque a mãe está proibida de gritar com Iochi, já faz quase dois anos que está proibida, porque isso provoca assobios no ouvido dela.”

“No jantar o silêncio foi total. Todos se concentraram em seus pratos. Junto à porta estava uma mochila preparada para o serviço de reservistas do exército, e Aharon pensou como ia ser se o pai também tivesse de ir e ele ficasse sozinho com a mãe.”

O LIVRO DA GRAMÁTICA INTERIORAutor: David Grossman Trad.: Paulo Geiger Editora: Companhia das Letras (535 págs.; R$ 59,90; R$ 39,90 o e-book)

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