Desvendando a identidade rarefeita de Roberto Bolaño; conheça o escritor chileno e sua obra


Autor do monumental ‘2666′, e que morreu precocemente na fila por um transplante de fígado, tem o último livro que ele planejou publicar, ‘O Gaúcho Insofrível’, lançado agora no Brasil

Por Paulo Nogueira

O Gaúcho Insofrível, reunindo cinco ficções e duas conferências, é o último livro que o Roberto Bolaño (1953-2003) deixou para ser publicado. O escritor se preparava para um transplante de fígado e acreditava que este livro, quando lançado, poderia ajudá-lo financeiramente durante sua recuperação. Os textos foram entregues num disquete à sua editora, mas naquela mesma madrugada de 2003 ele foi internado. Duas semanas depois, morreu.

Hoje, pouco mais de 20 anos após a sua morte, é uma boa oportunidade para se avaliar o pedigree do autor no cânone – seja chileno, hispânico ou mesmo universal.

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A vida de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas. Nasceu em Santiago, filho de um caminhoneiro (pugilista nas horas vagas) e uma professora: músculos + miolos. Puxou só à mãe: magrelo, disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do cosmos.

Estava no Chile quando Pinochet deu o golpe em 1973, foi detido e sobreviveu por um triz (como relata no conto Cartão de Dança). Na Cidade do México, viveu com os pais imigrantes e ainda quase imberbe pertenceu a uma confraria literária tão impertinente que interrompia as leituras públicas de Octávio Paz (Nobel de Literatura em 1990) .

Aos 24 anos, Bolaño se manda para a Europa, residindo na cidadezinha catalã de Blanes. Foi pau para toda obra (incluindo romances, contos e poemas): lavador de pratos, lixeiro, vendedor de bijuterias, empregado de um camping. O nascimento do filho tornou-o “responsável”: “O meu único país é a minha família”. Morreu em 2003, aos 50 anos, na fila para um transplante hepático num hospital de Barcelona (o fígado dele estava pior que o de Prometeu).

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O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003. Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner / Divulgação

Ralando a maior parte da carreira numa obscuridade quase de eclipse, ganhando concursos provincianos de conto e poesia, o próprio Bolaño deve ter ficado embasbacado ao despontar como o primeiro grande fenômeno literário do século 21.

Nos últimos sete anos de vida, não só granjeou aclamação mundial como atingiu vendas de best-sellers plastificados, e não de gemas vanguardistas. Converteu em apóstolos missionários escritores badalados de vários países: Cecilia Manzoni (Argentina), Ignacio Echevarría (Chile), Jorge Volpi (México) e Enrique Vila Matas (Espanha), entre outros.

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E deixou um robusto conjunto de títulos inéditos (mais de 14 mil páginas), quase como a mítica arca de Fernando Pessoa. Como ele confessou: “Passei direto de reserva na Segunda Divisão para titular na Champions League”.

Chile: país de poetas?

Será o Chile sobretudo um país de poetas, como alega Alejandro Zambra, cujo romance mais recente se intitula O Poeta Chileno? Afinal, Vicente Huidobro e Pablo Neruda (hoje em foco por eventualmente ter sido assassinado por Pinochet e por ser cancelado como porco-chauvinista) foram candidatos à presidência do Chile.

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E Gabriela Mistral foi o primeiro autor latino-americano a receber o Nobel de Literatura – e até hoje a única mulher da região a realizar tal proeza. Mas também é relevante a dimensão lírica de Bolaño, como reconheceu outro grande poeta chileno, Nicanor Parra, ao saber da morte do seu par: “A humanidade ficou devendo um fígado a Bolaño”.

Talvez a identidade rarefeita de Bolaño seja mais latino-americana, ou mesmo hispânica, do que nacional. Descrevia-se não como um expatriado como Cortázar ou Vargas Llosa, porém como um “apátrida”. Em suas obras pulsam dois polos: a metanarrativa (que faz das engrenagens literárias seu assunto) e a autoficção. Com ambos abordou quer a interação do ficcionista com os meios acadêmicos e editoriais, quer as promíscuas relações entre o intelectual e o poder.

Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019. Foto: Companhia das Letras/Divulgação
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No primeiro caso avulta A Literatura Nazista na América, paródia das enciclopédias que tanto encantavam Borges. Nela, Bolaño conjuga fantasia e história latino-americana. Como a inefável poeta argentina Luz Mendiluce, que Hitler pegou no colo quando ela era criança. Momento registrado numa foto, que a poeta evocou no poema Com Hitler Fui Feliz (“sua respiração cálida e seus braços fortes”).

No âmbito autoficcional aflora o alter-ego Arturo Belano, que povoa (como o Nick Adams de Hemingway ou o Nathan Zucker de Philip Roh) vários títulos de Bolaño, inclusive o romance Detetives Selvagens, definido pelo autor como “uma carta de despedida à minha geração”. A saga de uma trupe punk-surrealista de poetas imbuídos do espírito de Rimbaud (daí Artur, e a viagem suicida de Belano à África).

O inacabado e gorgolejante 2666 (1.030 páginas, projetado como cinco romances diferentes), editado um ano depois de morte de Bolaño, também combina autoficção e metalinguagem. Esta última aplicando a verve sardônica como vacina contra o cabotinismo, como na passagem sob lapsos hilários de escritores, como o do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.

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Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

E no esfíngico protagonista, o escritor alemão Benno von Archimboldi, um personagem/autor em busca dos seus quatro autores/críticos – e que ao longo de 792 das 1.300 páginas ninguém nunca viu mais gordo, seja em carne e osso, seja em fotografias, entrevistas ou biografias, quase como um Thomas Pynchon europeu e ainda mais espectral. Ou seja, durante 70% da extensão do romance, o autor é apenas a sua obra.

Viúva moveu ações judiciais

Em 2008, a viúva de Bolaño, Carolina López, espantou o establishment literário de Barcelona ao transferir o patrimônio do marido da agência mais famosa em língua espanhola, a de Carmen Balcells, para a do titã global Andrew Wylie. Depois, López rompeu com a editora de Bolaño, a Anagrama. E se desentendeu com o amigo íntimo do marido, o crítico Ignacio Echevarría, que conduziu o manuscrito de 2666 à publicação.

Para alguns, a viúva assumiu um aspecto camaleônico: ora uma espécie de Maria Kodama, ora uma Yoko Ono. Carolina manteve o arquivo de Bolaño fechado e restringiu os direitos de citação de material não publicado. Justificou-se: “Esse legado não é só uma questão literária, mas um doloroso assunto de família.”

A viúva moveu ações judiciais por “violação da intimidade e da honra” aos que afirmaram que Bolaño era viciado em heroína e que mentira sobre sua presença no Chile durante o golpe de Pinochet. Um dos processados é Echevarría (as ações ainda estão tramitando no moroso sistema judiciário espanhol). Tais vicissitudes ajudam a explicar por que ainda não há - contrastando com miríades de exegeses literárias - uma biografia referencial de Roberto Bolaño.

Após o fulgor do “boom Bolaño” (especialmente com a publicação póstuma de 2666 em inglês, em 2008), nos últimos anos a visibilidade do autor cult esmoreceu um tanto – como costuma acontecer com os caprichos das modas mais mercadológicas que literárias. Certos críticos já têm o topete de resmungar que Bolaño foi superestimado.

A cornucópia de obras dele editadas depois da sua morte pode ter provocado uma saturação nos entusiastas – e confundido os leitores que chegam agora o universo literário interconectado de Bolaño, e, com tantos meandros labirínticos, não sabem bem por onde começar. Mesmo assim, seus livros continuam vendendo em 35 idiomas.

O Gaúcho Insofrido

O providencial O Gaúcho Insofrido ajuda a pôr os pingos nos is e contém uma obra-prima, precisamente o conto epônimo. O protagonista é Hector Pereda, um advogado argentino que, no ocaso solitário e amargurado da vida, se muda de Buenos Aires para o pampa.

A figura do gaúcho (ou “pampero”), ente etnográfico e tropo literário que fascinou Borges (que o entronizou como o relicário da alma portenha no conto O Sul), confirma a amplitude continental do chileno Bolaño.

E suas texturas metanarrativas: Pereda menciona explicitamente o personagem do conto icônico de Borges (“Por um instante pensou que seu destino, seu fodido destino americano, seria semelhante ao de Dalhmann”). E batiza seu cavalo de José Bianco, escritor argentino que durante 20 anos foi secretário da influente revista Sur.

'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro. Foto: Companhia das Letras/Divulgação.

Porém, o pampa hodierno de Bolaño, ao contrário do homérico de Borges, já não tem cavalos nem sequer vacas, embora esteja infestados de coelhos – um símbolo da praga incontinente. E a fazenda que Pereda tenta resgatar da ruína – chamada Álamo Negro, versão lúgubre do Álamo texano, da expansionista gesta norte-americana – se transfigura na metáfora da Argentina eternamente em crise (“Uma casa sem centro, uma árvore enorme e ameaçadora e um celeiro onde se moviam sombras que talvez fossem ratos”) e até da América Latina, com suas quimeras obsoletas e seus autoritarismos espasmódicos.

No fundo, como o próprio Borges formulara em seu poema Os Gaúchos: “Viveram seu destino como em sonhos/Sem saber quem eram nem o que eram./Talvez o mesmo se passe conosco”.

Se na idolatria a Bolaño reinou talvez certo modismo e necrofilia, 20 anos depois da sua morte podemos avaliá-lo sem romantismos mórbidos nem a auréola de “mártir da literatura” – uma platitude kitsch que ele seria o primeiro a ridicularizar.

Quanto a continuar confiando o veredito à posteridade, pode parecer uma decisão sensata – mas Bolaño perguntaria o que é que a posteridade já fez por nós.

O melhor é lê-lo, o tributo a que os grandes autores anseiam. Mesmo que começando pelo fim, pelo Gaúcho Insofrível, que refuta a sofrência idílica que alguns quiseram impingir ao autor.

O Gaúcho Insofrível

  • Autor: Roberto Bolaño
  • Tradução: Joca Reiners Terron
  • Editora: Companhia das Letras (152 págs.; R$ 69,90/ R$ 37,90 o e-book)

O Gaúcho Insofrível, reunindo cinco ficções e duas conferências, é o último livro que o Roberto Bolaño (1953-2003) deixou para ser publicado. O escritor se preparava para um transplante de fígado e acreditava que este livro, quando lançado, poderia ajudá-lo financeiramente durante sua recuperação. Os textos foram entregues num disquete à sua editora, mas naquela mesma madrugada de 2003 ele foi internado. Duas semanas depois, morreu.

Hoje, pouco mais de 20 anos após a sua morte, é uma boa oportunidade para se avaliar o pedigree do autor no cânone – seja chileno, hispânico ou mesmo universal.

A vida de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas. Nasceu em Santiago, filho de um caminhoneiro (pugilista nas horas vagas) e uma professora: músculos + miolos. Puxou só à mãe: magrelo, disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do cosmos.

Estava no Chile quando Pinochet deu o golpe em 1973, foi detido e sobreviveu por um triz (como relata no conto Cartão de Dança). Na Cidade do México, viveu com os pais imigrantes e ainda quase imberbe pertenceu a uma confraria literária tão impertinente que interrompia as leituras públicas de Octávio Paz (Nobel de Literatura em 1990) .

Aos 24 anos, Bolaño se manda para a Europa, residindo na cidadezinha catalã de Blanes. Foi pau para toda obra (incluindo romances, contos e poemas): lavador de pratos, lixeiro, vendedor de bijuterias, empregado de um camping. O nascimento do filho tornou-o “responsável”: “O meu único país é a minha família”. Morreu em 2003, aos 50 anos, na fila para um transplante hepático num hospital de Barcelona (o fígado dele estava pior que o de Prometeu).

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003. Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner / Divulgação

Ralando a maior parte da carreira numa obscuridade quase de eclipse, ganhando concursos provincianos de conto e poesia, o próprio Bolaño deve ter ficado embasbacado ao despontar como o primeiro grande fenômeno literário do século 21.

Nos últimos sete anos de vida, não só granjeou aclamação mundial como atingiu vendas de best-sellers plastificados, e não de gemas vanguardistas. Converteu em apóstolos missionários escritores badalados de vários países: Cecilia Manzoni (Argentina), Ignacio Echevarría (Chile), Jorge Volpi (México) e Enrique Vila Matas (Espanha), entre outros.

E deixou um robusto conjunto de títulos inéditos (mais de 14 mil páginas), quase como a mítica arca de Fernando Pessoa. Como ele confessou: “Passei direto de reserva na Segunda Divisão para titular na Champions League”.

Chile: país de poetas?

Será o Chile sobretudo um país de poetas, como alega Alejandro Zambra, cujo romance mais recente se intitula O Poeta Chileno? Afinal, Vicente Huidobro e Pablo Neruda (hoje em foco por eventualmente ter sido assassinado por Pinochet e por ser cancelado como porco-chauvinista) foram candidatos à presidência do Chile.

E Gabriela Mistral foi o primeiro autor latino-americano a receber o Nobel de Literatura – e até hoje a única mulher da região a realizar tal proeza. Mas também é relevante a dimensão lírica de Bolaño, como reconheceu outro grande poeta chileno, Nicanor Parra, ao saber da morte do seu par: “A humanidade ficou devendo um fígado a Bolaño”.

Talvez a identidade rarefeita de Bolaño seja mais latino-americana, ou mesmo hispânica, do que nacional. Descrevia-se não como um expatriado como Cortázar ou Vargas Llosa, porém como um “apátrida”. Em suas obras pulsam dois polos: a metanarrativa (que faz das engrenagens literárias seu assunto) e a autoficção. Com ambos abordou quer a interação do ficcionista com os meios acadêmicos e editoriais, quer as promíscuas relações entre o intelectual e o poder.

Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

No primeiro caso avulta A Literatura Nazista na América, paródia das enciclopédias que tanto encantavam Borges. Nela, Bolaño conjuga fantasia e história latino-americana. Como a inefável poeta argentina Luz Mendiluce, que Hitler pegou no colo quando ela era criança. Momento registrado numa foto, que a poeta evocou no poema Com Hitler Fui Feliz (“sua respiração cálida e seus braços fortes”).

No âmbito autoficcional aflora o alter-ego Arturo Belano, que povoa (como o Nick Adams de Hemingway ou o Nathan Zucker de Philip Roh) vários títulos de Bolaño, inclusive o romance Detetives Selvagens, definido pelo autor como “uma carta de despedida à minha geração”. A saga de uma trupe punk-surrealista de poetas imbuídos do espírito de Rimbaud (daí Artur, e a viagem suicida de Belano à África).

O inacabado e gorgolejante 2666 (1.030 páginas, projetado como cinco romances diferentes), editado um ano depois de morte de Bolaño, também combina autoficção e metalinguagem. Esta última aplicando a verve sardônica como vacina contra o cabotinismo, como na passagem sob lapsos hilários de escritores, como o do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.

Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

E no esfíngico protagonista, o escritor alemão Benno von Archimboldi, um personagem/autor em busca dos seus quatro autores/críticos – e que ao longo de 792 das 1.300 páginas ninguém nunca viu mais gordo, seja em carne e osso, seja em fotografias, entrevistas ou biografias, quase como um Thomas Pynchon europeu e ainda mais espectral. Ou seja, durante 70% da extensão do romance, o autor é apenas a sua obra.

Viúva moveu ações judiciais

Em 2008, a viúva de Bolaño, Carolina López, espantou o establishment literário de Barcelona ao transferir o patrimônio do marido da agência mais famosa em língua espanhola, a de Carmen Balcells, para a do titã global Andrew Wylie. Depois, López rompeu com a editora de Bolaño, a Anagrama. E se desentendeu com o amigo íntimo do marido, o crítico Ignacio Echevarría, que conduziu o manuscrito de 2666 à publicação.

Para alguns, a viúva assumiu um aspecto camaleônico: ora uma espécie de Maria Kodama, ora uma Yoko Ono. Carolina manteve o arquivo de Bolaño fechado e restringiu os direitos de citação de material não publicado. Justificou-se: “Esse legado não é só uma questão literária, mas um doloroso assunto de família.”

A viúva moveu ações judiciais por “violação da intimidade e da honra” aos que afirmaram que Bolaño era viciado em heroína e que mentira sobre sua presença no Chile durante o golpe de Pinochet. Um dos processados é Echevarría (as ações ainda estão tramitando no moroso sistema judiciário espanhol). Tais vicissitudes ajudam a explicar por que ainda não há - contrastando com miríades de exegeses literárias - uma biografia referencial de Roberto Bolaño.

Após o fulgor do “boom Bolaño” (especialmente com a publicação póstuma de 2666 em inglês, em 2008), nos últimos anos a visibilidade do autor cult esmoreceu um tanto – como costuma acontecer com os caprichos das modas mais mercadológicas que literárias. Certos críticos já têm o topete de resmungar que Bolaño foi superestimado.

A cornucópia de obras dele editadas depois da sua morte pode ter provocado uma saturação nos entusiastas – e confundido os leitores que chegam agora o universo literário interconectado de Bolaño, e, com tantos meandros labirínticos, não sabem bem por onde começar. Mesmo assim, seus livros continuam vendendo em 35 idiomas.

O Gaúcho Insofrido

O providencial O Gaúcho Insofrido ajuda a pôr os pingos nos is e contém uma obra-prima, precisamente o conto epônimo. O protagonista é Hector Pereda, um advogado argentino que, no ocaso solitário e amargurado da vida, se muda de Buenos Aires para o pampa.

A figura do gaúcho (ou “pampero”), ente etnográfico e tropo literário que fascinou Borges (que o entronizou como o relicário da alma portenha no conto O Sul), confirma a amplitude continental do chileno Bolaño.

E suas texturas metanarrativas: Pereda menciona explicitamente o personagem do conto icônico de Borges (“Por um instante pensou que seu destino, seu fodido destino americano, seria semelhante ao de Dalhmann”). E batiza seu cavalo de José Bianco, escritor argentino que durante 20 anos foi secretário da influente revista Sur.

'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro. Foto: Companhia das Letras/Divulgação.

Porém, o pampa hodierno de Bolaño, ao contrário do homérico de Borges, já não tem cavalos nem sequer vacas, embora esteja infestados de coelhos – um símbolo da praga incontinente. E a fazenda que Pereda tenta resgatar da ruína – chamada Álamo Negro, versão lúgubre do Álamo texano, da expansionista gesta norte-americana – se transfigura na metáfora da Argentina eternamente em crise (“Uma casa sem centro, uma árvore enorme e ameaçadora e um celeiro onde se moviam sombras que talvez fossem ratos”) e até da América Latina, com suas quimeras obsoletas e seus autoritarismos espasmódicos.

No fundo, como o próprio Borges formulara em seu poema Os Gaúchos: “Viveram seu destino como em sonhos/Sem saber quem eram nem o que eram./Talvez o mesmo se passe conosco”.

Se na idolatria a Bolaño reinou talvez certo modismo e necrofilia, 20 anos depois da sua morte podemos avaliá-lo sem romantismos mórbidos nem a auréola de “mártir da literatura” – uma platitude kitsch que ele seria o primeiro a ridicularizar.

Quanto a continuar confiando o veredito à posteridade, pode parecer uma decisão sensata – mas Bolaño perguntaria o que é que a posteridade já fez por nós.

O melhor é lê-lo, o tributo a que os grandes autores anseiam. Mesmo que começando pelo fim, pelo Gaúcho Insofrível, que refuta a sofrência idílica que alguns quiseram impingir ao autor.

O Gaúcho Insofrível

  • Autor: Roberto Bolaño
  • Tradução: Joca Reiners Terron
  • Editora: Companhia das Letras (152 págs.; R$ 69,90/ R$ 37,90 o e-book)

O Gaúcho Insofrível, reunindo cinco ficções e duas conferências, é o último livro que o Roberto Bolaño (1953-2003) deixou para ser publicado. O escritor se preparava para um transplante de fígado e acreditava que este livro, quando lançado, poderia ajudá-lo financeiramente durante sua recuperação. Os textos foram entregues num disquete à sua editora, mas naquela mesma madrugada de 2003 ele foi internado. Duas semanas depois, morreu.

Hoje, pouco mais de 20 anos após a sua morte, é uma boa oportunidade para se avaliar o pedigree do autor no cânone – seja chileno, hispânico ou mesmo universal.

A vida de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas. Nasceu em Santiago, filho de um caminhoneiro (pugilista nas horas vagas) e uma professora: músculos + miolos. Puxou só à mãe: magrelo, disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do cosmos.

Estava no Chile quando Pinochet deu o golpe em 1973, foi detido e sobreviveu por um triz (como relata no conto Cartão de Dança). Na Cidade do México, viveu com os pais imigrantes e ainda quase imberbe pertenceu a uma confraria literária tão impertinente que interrompia as leituras públicas de Octávio Paz (Nobel de Literatura em 1990) .

Aos 24 anos, Bolaño se manda para a Europa, residindo na cidadezinha catalã de Blanes. Foi pau para toda obra (incluindo romances, contos e poemas): lavador de pratos, lixeiro, vendedor de bijuterias, empregado de um camping. O nascimento do filho tornou-o “responsável”: “O meu único país é a minha família”. Morreu em 2003, aos 50 anos, na fila para um transplante hepático num hospital de Barcelona (o fígado dele estava pior que o de Prometeu).

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003. Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner / Divulgação

Ralando a maior parte da carreira numa obscuridade quase de eclipse, ganhando concursos provincianos de conto e poesia, o próprio Bolaño deve ter ficado embasbacado ao despontar como o primeiro grande fenômeno literário do século 21.

Nos últimos sete anos de vida, não só granjeou aclamação mundial como atingiu vendas de best-sellers plastificados, e não de gemas vanguardistas. Converteu em apóstolos missionários escritores badalados de vários países: Cecilia Manzoni (Argentina), Ignacio Echevarría (Chile), Jorge Volpi (México) e Enrique Vila Matas (Espanha), entre outros.

E deixou um robusto conjunto de títulos inéditos (mais de 14 mil páginas), quase como a mítica arca de Fernando Pessoa. Como ele confessou: “Passei direto de reserva na Segunda Divisão para titular na Champions League”.

Chile: país de poetas?

Será o Chile sobretudo um país de poetas, como alega Alejandro Zambra, cujo romance mais recente se intitula O Poeta Chileno? Afinal, Vicente Huidobro e Pablo Neruda (hoje em foco por eventualmente ter sido assassinado por Pinochet e por ser cancelado como porco-chauvinista) foram candidatos à presidência do Chile.

E Gabriela Mistral foi o primeiro autor latino-americano a receber o Nobel de Literatura – e até hoje a única mulher da região a realizar tal proeza. Mas também é relevante a dimensão lírica de Bolaño, como reconheceu outro grande poeta chileno, Nicanor Parra, ao saber da morte do seu par: “A humanidade ficou devendo um fígado a Bolaño”.

Talvez a identidade rarefeita de Bolaño seja mais latino-americana, ou mesmo hispânica, do que nacional. Descrevia-se não como um expatriado como Cortázar ou Vargas Llosa, porém como um “apátrida”. Em suas obras pulsam dois polos: a metanarrativa (que faz das engrenagens literárias seu assunto) e a autoficção. Com ambos abordou quer a interação do ficcionista com os meios acadêmicos e editoriais, quer as promíscuas relações entre o intelectual e o poder.

Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

No primeiro caso avulta A Literatura Nazista na América, paródia das enciclopédias que tanto encantavam Borges. Nela, Bolaño conjuga fantasia e história latino-americana. Como a inefável poeta argentina Luz Mendiluce, que Hitler pegou no colo quando ela era criança. Momento registrado numa foto, que a poeta evocou no poema Com Hitler Fui Feliz (“sua respiração cálida e seus braços fortes”).

No âmbito autoficcional aflora o alter-ego Arturo Belano, que povoa (como o Nick Adams de Hemingway ou o Nathan Zucker de Philip Roh) vários títulos de Bolaño, inclusive o romance Detetives Selvagens, definido pelo autor como “uma carta de despedida à minha geração”. A saga de uma trupe punk-surrealista de poetas imbuídos do espírito de Rimbaud (daí Artur, e a viagem suicida de Belano à África).

O inacabado e gorgolejante 2666 (1.030 páginas, projetado como cinco romances diferentes), editado um ano depois de morte de Bolaño, também combina autoficção e metalinguagem. Esta última aplicando a verve sardônica como vacina contra o cabotinismo, como na passagem sob lapsos hilários de escritores, como o do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.

Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

E no esfíngico protagonista, o escritor alemão Benno von Archimboldi, um personagem/autor em busca dos seus quatro autores/críticos – e que ao longo de 792 das 1.300 páginas ninguém nunca viu mais gordo, seja em carne e osso, seja em fotografias, entrevistas ou biografias, quase como um Thomas Pynchon europeu e ainda mais espectral. Ou seja, durante 70% da extensão do romance, o autor é apenas a sua obra.

Viúva moveu ações judiciais

Em 2008, a viúva de Bolaño, Carolina López, espantou o establishment literário de Barcelona ao transferir o patrimônio do marido da agência mais famosa em língua espanhola, a de Carmen Balcells, para a do titã global Andrew Wylie. Depois, López rompeu com a editora de Bolaño, a Anagrama. E se desentendeu com o amigo íntimo do marido, o crítico Ignacio Echevarría, que conduziu o manuscrito de 2666 à publicação.

Para alguns, a viúva assumiu um aspecto camaleônico: ora uma espécie de Maria Kodama, ora uma Yoko Ono. Carolina manteve o arquivo de Bolaño fechado e restringiu os direitos de citação de material não publicado. Justificou-se: “Esse legado não é só uma questão literária, mas um doloroso assunto de família.”

A viúva moveu ações judiciais por “violação da intimidade e da honra” aos que afirmaram que Bolaño era viciado em heroína e que mentira sobre sua presença no Chile durante o golpe de Pinochet. Um dos processados é Echevarría (as ações ainda estão tramitando no moroso sistema judiciário espanhol). Tais vicissitudes ajudam a explicar por que ainda não há - contrastando com miríades de exegeses literárias - uma biografia referencial de Roberto Bolaño.

Após o fulgor do “boom Bolaño” (especialmente com a publicação póstuma de 2666 em inglês, em 2008), nos últimos anos a visibilidade do autor cult esmoreceu um tanto – como costuma acontecer com os caprichos das modas mais mercadológicas que literárias. Certos críticos já têm o topete de resmungar que Bolaño foi superestimado.

A cornucópia de obras dele editadas depois da sua morte pode ter provocado uma saturação nos entusiastas – e confundido os leitores que chegam agora o universo literário interconectado de Bolaño, e, com tantos meandros labirínticos, não sabem bem por onde começar. Mesmo assim, seus livros continuam vendendo em 35 idiomas.

O Gaúcho Insofrido

O providencial O Gaúcho Insofrido ajuda a pôr os pingos nos is e contém uma obra-prima, precisamente o conto epônimo. O protagonista é Hector Pereda, um advogado argentino que, no ocaso solitário e amargurado da vida, se muda de Buenos Aires para o pampa.

A figura do gaúcho (ou “pampero”), ente etnográfico e tropo literário que fascinou Borges (que o entronizou como o relicário da alma portenha no conto O Sul), confirma a amplitude continental do chileno Bolaño.

E suas texturas metanarrativas: Pereda menciona explicitamente o personagem do conto icônico de Borges (“Por um instante pensou que seu destino, seu fodido destino americano, seria semelhante ao de Dalhmann”). E batiza seu cavalo de José Bianco, escritor argentino que durante 20 anos foi secretário da influente revista Sur.

'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro. Foto: Companhia das Letras/Divulgação.

Porém, o pampa hodierno de Bolaño, ao contrário do homérico de Borges, já não tem cavalos nem sequer vacas, embora esteja infestados de coelhos – um símbolo da praga incontinente. E a fazenda que Pereda tenta resgatar da ruína – chamada Álamo Negro, versão lúgubre do Álamo texano, da expansionista gesta norte-americana – se transfigura na metáfora da Argentina eternamente em crise (“Uma casa sem centro, uma árvore enorme e ameaçadora e um celeiro onde se moviam sombras que talvez fossem ratos”) e até da América Latina, com suas quimeras obsoletas e seus autoritarismos espasmódicos.

No fundo, como o próprio Borges formulara em seu poema Os Gaúchos: “Viveram seu destino como em sonhos/Sem saber quem eram nem o que eram./Talvez o mesmo se passe conosco”.

Se na idolatria a Bolaño reinou talvez certo modismo e necrofilia, 20 anos depois da sua morte podemos avaliá-lo sem romantismos mórbidos nem a auréola de “mártir da literatura” – uma platitude kitsch que ele seria o primeiro a ridicularizar.

Quanto a continuar confiando o veredito à posteridade, pode parecer uma decisão sensata – mas Bolaño perguntaria o que é que a posteridade já fez por nós.

O melhor é lê-lo, o tributo a que os grandes autores anseiam. Mesmo que começando pelo fim, pelo Gaúcho Insofrível, que refuta a sofrência idílica que alguns quiseram impingir ao autor.

O Gaúcho Insofrível

  • Autor: Roberto Bolaño
  • Tradução: Joca Reiners Terron
  • Editora: Companhia das Letras (152 págs.; R$ 69,90/ R$ 37,90 o e-book)

O Gaúcho Insofrível, reunindo cinco ficções e duas conferências, é o último livro que o Roberto Bolaño (1953-2003) deixou para ser publicado. O escritor se preparava para um transplante de fígado e acreditava que este livro, quando lançado, poderia ajudá-lo financeiramente durante sua recuperação. Os textos foram entregues num disquete à sua editora, mas naquela mesma madrugada de 2003 ele foi internado. Duas semanas depois, morreu.

Hoje, pouco mais de 20 anos após a sua morte, é uma boa oportunidade para se avaliar o pedigree do autor no cânone – seja chileno, hispânico ou mesmo universal.

A vida de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas. Nasceu em Santiago, filho de um caminhoneiro (pugilista nas horas vagas) e uma professora: músculos + miolos. Puxou só à mãe: magrelo, disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do cosmos.

Estava no Chile quando Pinochet deu o golpe em 1973, foi detido e sobreviveu por um triz (como relata no conto Cartão de Dança). Na Cidade do México, viveu com os pais imigrantes e ainda quase imberbe pertenceu a uma confraria literária tão impertinente que interrompia as leituras públicas de Octávio Paz (Nobel de Literatura em 1990) .

Aos 24 anos, Bolaño se manda para a Europa, residindo na cidadezinha catalã de Blanes. Foi pau para toda obra (incluindo romances, contos e poemas): lavador de pratos, lixeiro, vendedor de bijuterias, empregado de um camping. O nascimento do filho tornou-o “responsável”: “O meu único país é a minha família”. Morreu em 2003, aos 50 anos, na fila para um transplante hepático num hospital de Barcelona (o fígado dele estava pior que o de Prometeu).

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003. Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner / Divulgação

Ralando a maior parte da carreira numa obscuridade quase de eclipse, ganhando concursos provincianos de conto e poesia, o próprio Bolaño deve ter ficado embasbacado ao despontar como o primeiro grande fenômeno literário do século 21.

Nos últimos sete anos de vida, não só granjeou aclamação mundial como atingiu vendas de best-sellers plastificados, e não de gemas vanguardistas. Converteu em apóstolos missionários escritores badalados de vários países: Cecilia Manzoni (Argentina), Ignacio Echevarría (Chile), Jorge Volpi (México) e Enrique Vila Matas (Espanha), entre outros.

E deixou um robusto conjunto de títulos inéditos (mais de 14 mil páginas), quase como a mítica arca de Fernando Pessoa. Como ele confessou: “Passei direto de reserva na Segunda Divisão para titular na Champions League”.

Chile: país de poetas?

Será o Chile sobretudo um país de poetas, como alega Alejandro Zambra, cujo romance mais recente se intitula O Poeta Chileno? Afinal, Vicente Huidobro e Pablo Neruda (hoje em foco por eventualmente ter sido assassinado por Pinochet e por ser cancelado como porco-chauvinista) foram candidatos à presidência do Chile.

E Gabriela Mistral foi o primeiro autor latino-americano a receber o Nobel de Literatura – e até hoje a única mulher da região a realizar tal proeza. Mas também é relevante a dimensão lírica de Bolaño, como reconheceu outro grande poeta chileno, Nicanor Parra, ao saber da morte do seu par: “A humanidade ficou devendo um fígado a Bolaño”.

Talvez a identidade rarefeita de Bolaño seja mais latino-americana, ou mesmo hispânica, do que nacional. Descrevia-se não como um expatriado como Cortázar ou Vargas Llosa, porém como um “apátrida”. Em suas obras pulsam dois polos: a metanarrativa (que faz das engrenagens literárias seu assunto) e a autoficção. Com ambos abordou quer a interação do ficcionista com os meios acadêmicos e editoriais, quer as promíscuas relações entre o intelectual e o poder.

Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

No primeiro caso avulta A Literatura Nazista na América, paródia das enciclopédias que tanto encantavam Borges. Nela, Bolaño conjuga fantasia e história latino-americana. Como a inefável poeta argentina Luz Mendiluce, que Hitler pegou no colo quando ela era criança. Momento registrado numa foto, que a poeta evocou no poema Com Hitler Fui Feliz (“sua respiração cálida e seus braços fortes”).

No âmbito autoficcional aflora o alter-ego Arturo Belano, que povoa (como o Nick Adams de Hemingway ou o Nathan Zucker de Philip Roh) vários títulos de Bolaño, inclusive o romance Detetives Selvagens, definido pelo autor como “uma carta de despedida à minha geração”. A saga de uma trupe punk-surrealista de poetas imbuídos do espírito de Rimbaud (daí Artur, e a viagem suicida de Belano à África).

O inacabado e gorgolejante 2666 (1.030 páginas, projetado como cinco romances diferentes), editado um ano depois de morte de Bolaño, também combina autoficção e metalinguagem. Esta última aplicando a verve sardônica como vacina contra o cabotinismo, como na passagem sob lapsos hilários de escritores, como o do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.

Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

E no esfíngico protagonista, o escritor alemão Benno von Archimboldi, um personagem/autor em busca dos seus quatro autores/críticos – e que ao longo de 792 das 1.300 páginas ninguém nunca viu mais gordo, seja em carne e osso, seja em fotografias, entrevistas ou biografias, quase como um Thomas Pynchon europeu e ainda mais espectral. Ou seja, durante 70% da extensão do romance, o autor é apenas a sua obra.

Viúva moveu ações judiciais

Em 2008, a viúva de Bolaño, Carolina López, espantou o establishment literário de Barcelona ao transferir o patrimônio do marido da agência mais famosa em língua espanhola, a de Carmen Balcells, para a do titã global Andrew Wylie. Depois, López rompeu com a editora de Bolaño, a Anagrama. E se desentendeu com o amigo íntimo do marido, o crítico Ignacio Echevarría, que conduziu o manuscrito de 2666 à publicação.

Para alguns, a viúva assumiu um aspecto camaleônico: ora uma espécie de Maria Kodama, ora uma Yoko Ono. Carolina manteve o arquivo de Bolaño fechado e restringiu os direitos de citação de material não publicado. Justificou-se: “Esse legado não é só uma questão literária, mas um doloroso assunto de família.”

A viúva moveu ações judiciais por “violação da intimidade e da honra” aos que afirmaram que Bolaño era viciado em heroína e que mentira sobre sua presença no Chile durante o golpe de Pinochet. Um dos processados é Echevarría (as ações ainda estão tramitando no moroso sistema judiciário espanhol). Tais vicissitudes ajudam a explicar por que ainda não há - contrastando com miríades de exegeses literárias - uma biografia referencial de Roberto Bolaño.

Após o fulgor do “boom Bolaño” (especialmente com a publicação póstuma de 2666 em inglês, em 2008), nos últimos anos a visibilidade do autor cult esmoreceu um tanto – como costuma acontecer com os caprichos das modas mais mercadológicas que literárias. Certos críticos já têm o topete de resmungar que Bolaño foi superestimado.

A cornucópia de obras dele editadas depois da sua morte pode ter provocado uma saturação nos entusiastas – e confundido os leitores que chegam agora o universo literário interconectado de Bolaño, e, com tantos meandros labirínticos, não sabem bem por onde começar. Mesmo assim, seus livros continuam vendendo em 35 idiomas.

O Gaúcho Insofrido

O providencial O Gaúcho Insofrido ajuda a pôr os pingos nos is e contém uma obra-prima, precisamente o conto epônimo. O protagonista é Hector Pereda, um advogado argentino que, no ocaso solitário e amargurado da vida, se muda de Buenos Aires para o pampa.

A figura do gaúcho (ou “pampero”), ente etnográfico e tropo literário que fascinou Borges (que o entronizou como o relicário da alma portenha no conto O Sul), confirma a amplitude continental do chileno Bolaño.

E suas texturas metanarrativas: Pereda menciona explicitamente o personagem do conto icônico de Borges (“Por um instante pensou que seu destino, seu fodido destino americano, seria semelhante ao de Dalhmann”). E batiza seu cavalo de José Bianco, escritor argentino que durante 20 anos foi secretário da influente revista Sur.

'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro. Foto: Companhia das Letras/Divulgação.

Porém, o pampa hodierno de Bolaño, ao contrário do homérico de Borges, já não tem cavalos nem sequer vacas, embora esteja infestados de coelhos – um símbolo da praga incontinente. E a fazenda que Pereda tenta resgatar da ruína – chamada Álamo Negro, versão lúgubre do Álamo texano, da expansionista gesta norte-americana – se transfigura na metáfora da Argentina eternamente em crise (“Uma casa sem centro, uma árvore enorme e ameaçadora e um celeiro onde se moviam sombras que talvez fossem ratos”) e até da América Latina, com suas quimeras obsoletas e seus autoritarismos espasmódicos.

No fundo, como o próprio Borges formulara em seu poema Os Gaúchos: “Viveram seu destino como em sonhos/Sem saber quem eram nem o que eram./Talvez o mesmo se passe conosco”.

Se na idolatria a Bolaño reinou talvez certo modismo e necrofilia, 20 anos depois da sua morte podemos avaliá-lo sem romantismos mórbidos nem a auréola de “mártir da literatura” – uma platitude kitsch que ele seria o primeiro a ridicularizar.

Quanto a continuar confiando o veredito à posteridade, pode parecer uma decisão sensata – mas Bolaño perguntaria o que é que a posteridade já fez por nós.

O melhor é lê-lo, o tributo a que os grandes autores anseiam. Mesmo que começando pelo fim, pelo Gaúcho Insofrível, que refuta a sofrência idílica que alguns quiseram impingir ao autor.

O Gaúcho Insofrível

  • Autor: Roberto Bolaño
  • Tradução: Joca Reiners Terron
  • Editora: Companhia das Letras (152 págs.; R$ 69,90/ R$ 37,90 o e-book)

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