‘Discursos de Ódio’: Livro analisa os novos e velhos ‘crimes da palavra’; leia trechos


Organizada pela professora de história Maria Luiza Tucci Carneiro, a coletânea apresenta 14 ensaios que abordam questões como racismo, antissemitismo e nazismo, entre outras formas de violência praticadas tanto por grupos de extrema direita quanto pela esquerda radical

Por Redação
Atualização:

Com a difusão da comunicação online, era previsível que crimes de ódio também se instalassem nesse meio. Nos discursos disseminados há quem direcione ataques a judeus, negros mulheres, população LGBTQIA+, povos originários do Brasil, ciganos e ao meio ambiente, atingindo em cheio todas essas questões ligadas aos direitos humanos.

Por meio de 14 ensaios, o livro Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI, com organização da professora e historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançamento pela Perspectiva, debate como, diante de um cenário de democracias frágeis, o mundo assiste à ascensão dos novos movimentos neonazistas e neofascistas na Europa e América Latina, que atraem a geração mais jovem, e mostra como o crescimento expressivo do antissemitismo é fomentado pela extrema direita, a extrema esquerda e o islamismo radical.

Discursos de ódio são disseminados via redes sociais Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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A coletânea ainda aborda como a extrema direita utiliza-se das mesmas estratégias de comunicação empregadas pelos nazistas para abolir ou confundir a fronteira entre verdade e mentira.

Entre os especialistas que discutem esses e outros temas estão Marcos Guterman, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor de Opinião do Estadão; Christiane Stallaert, professora catedrática de estudos ibero-americanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica); Robson Scarassati Bello, mestre e doutor em História Social pela USP; e Luciana Lavejo, doutora em História pela USP.

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Os textos contidos no livro são trabalhos apresentados no I Colóquio Internacional Discursos de Ódio: Racismo Reciclado no Século XXI, realizado sob a coordenação do Laboratório de Estudos Sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da Universidade de São Paulo em novembro de 2019.

Leia a seguir trechos de três ensaios apresentados no livro:

O antissemitismo nazista como elo entre a supremacia branca estadunidense e a geração de identidade do século XXI

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Por Christiane Stallaert*

A meu ver, a compreensão da ideologia xenófoba (inclusive neonazista) no século XXI reside mais em certos desdobramentos típicos dos anos 1990 do que na continuidade com o próprio nazismo. Esses desenvolvimentos incluem o fim da Guerra Fria, que na Europa foi acompanhada por sangrentos conflitos étnico-políticos nos Bálcãs; em todo o mundo, a emergência do islamismo radical, cujos primeiros surtos se tornaram visíveis na Argélia com a guerrilha em torno da Frente Islâmica de Salvação (FIS). Ao mesmo tempo, o apartheid chegava ao fim na África do Sul, o último regime de racismo de Estado institucionalizado. O contexto das comemorações dos cinquenta anos do Holocausto deu um impulso aos chamados estudos de memória (histórica) e dos direitos humanos.O fim do choque entre grandes ideologias abriu caminho para o ideal neoliberal da “globalização”, um mundo onde pessoas e bens são colocados em circulação e se tornam intimamente interligados. Nos Estados Unidos, essa visão se reflete no chamado “Consenso de Washington”, que já no início dos anos 1990 foi traduzido em um ambicioso Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte entre o Canadá, os Estados Unidos e o México. A Europa, por sua vez, deu passos decisivos rumo a um sonho de “cidadania europeia” na Cúpula de Maastricht realizada em 9 e 10 de novembro de 1991, com a abolição das fronteiras internas (o espaço Schengen), a criação de uma moeda comum (o euro) e o projeto de Constituição Europeia. A contrapartida dessa vontade política de abolir as fronteiras econômicas e humanas resulta, porém, na consolidação de tendências xenófobas e ultranacionalistas, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, nasceu em 1990 uma plataforma chamada Stormfront, nome que se refere à Sturmabteilung ou SA nazista. Na Europa, partidos xenófobos alcançam posições de destaque no espectro político de muitos países europeus. Assim, por exemplo, na Bélgica, o Bloco Flamengo (Vlaams Blok),partido criado em 1978, emergiu como força política nas eleições de novembro de 1991, obtendo mais de 20% dos votos em alguns distritos do país. Com uma ideologia racista e laços ou afinidades neonazistas, em 2004, após uma condenação judicial, o partido passou a se chamar Vlaams Belang, Interesse Flamengo, nome que lembra o conceito nazista de völkische Belange (interesse do povo). Essa semelhança nosleva à questão central de nossa análise, a saber: o “neonazismo” do século XXI é de inspiração nazista?

* Professora catedrática de estudos iberoamericanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica).

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Jogos de ódio e jogos contra o ódio

Por Robson Scarassati Bello*

Destacar que muitos jogos são violentos é uma observação superficial e pouco significativa. A violência retratada nos jogos eletrônicos é sempre enquadrada em um propósito e uma razão ideológica, que a critica ou justifica. Seja a violência física, psicológica, civilizacional ou simbólica, ela é sempre direcionada a um Outro que é o alvo do ato violento.

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O jogador que a exerce não o faz direcionando a outro ser humano ou ser vivo, de carne e osso, mas sim a um avatar, um objeto inanimado, que não possui materialidade física, nem sentimentos. Nesse sentido, é análogo, por exemplo, à brincadeira infantil de bater em um “João bobo”, que recebe o impacto e regressa ao lugar original para que possa ser acertado de novo. Contudo, o ato de bater em um objeto inanimado não está desvinculado de práticas simbólicas e rituais, em que dado objeto representa uma pessoa ou um grupo. A “malhação de Judas” é um ato expiatório que mobiliza massas de pessoas dentro da cristandade para bater e queimar um boneco que representa o “judeu traidor”, que é alvo da fúria coletiva, como se fosse possível punir e castigar aquele que trouxe o Mal para Cristo. Não obstante, a prática da “malhação” refere-se a um imaginário que alguns autores analisam como símbolo do antissemitismo. Se é possível auferir uma “função social”, essa é a de descarregar frustrações e raivas que consistentemente estão vinculadas a uma prática social – a punição física do “criminoso” – e a um imaginário religioso.

O símbolo ideológico tem sua função, que é a de contextualizar a ação. É relevante enfatizar que a violência retratada nos videogames não é resolvida apenas na tela, uma vez que há outros fatores que podem contribuir para a forma como o indivíduo encara a convivência com o outro, seja como adversário em uma competição ou como um inimigo a ser eliminado.

* Mestre e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

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Humor e ódio na esfera pública digital

Por Elias Thomé Saliba*

Ainda que levemos em conta o alto potencial de polissemia inerente a toda produção cômica, é preciso constatar que no mundo digital da atualidade, piadas e chistes são apresentados como humorísticos dentro de contextos de extrema polarização ideológica, de ressentimento e de ódio e, no limite, de uma radicalização do fanatismo racista. Ora, como diversos estudos vêm analisando, sabemos que esse ambiente hostil e polarizador da mídia digital é inerente às novas gerações de algoritmos, os quais incrementam e estimulam em escala veloz e cada vez mais disseminada,a chamada “economia da atenção”. De qualquer forma, esse humor hostil que prospera nas redes sociais utiliza-se da ideologia positivista do riso para elidir o que realmente ele incentiva, ainda que de forma velada, que é acentuar a diferenciação social positiva de um grupo em relação a outro, arregimentando e reunindo, na concisão da piada e do estereótipo, todos os aspectos negativos. Por trás dessa cortina positivista de que se trata “apenas de uma piada”, está o reforço de uma percepção de superioridade por parte do emissor ou do produtor da anedota cômica.

Claro que o argumento de que possa haver ligações intrínsecas entre o preconceito extremo e o humor não é novo e já apareceu muito antes do advento do universo digital. Sartre sugeriu, em famoso ensaio, que os antissemitas achavam divertido serem antissemitas e sentiam prazer na “alegria de odiar”. Adorno e Horkheimer, numa passagem do seu lúgubre Dialética do Iluminismo, descrevendo os protestos dos antissemitas em reuniões políticas fascistas chegaram a designá-los como “riso organizado”. Argumentaram que a razão do prazer era que o fascismo “permite o que geralmente é proibido” e, assim, apoiado pela legitimidade da ideologia, o odiador fica livre de restrições normais e pode zombar de vítimas desumanizadas e indefesas. Noutros termos, tais argumentos já apontavam para os vínculos entre o ódio político extremo e o domínio das piadas.

Lembre-se, ainda, de que a própria nomenclatura do humor ofensivo ou da atitude de “rir da desgraça alheia” é uma designação que as sociedades elidem ou recalcam, não existindo uma palavra específica e única para designar tal tipo de riso. Tiffany Smith argumenta o quanto gostamos de saborear aquele prazer risonho com o fracasso e a inferioridade dos outros, mas quando nos pedem para nomear com todas as letras esse prazer, nossa linguagem empaca e recai num silêncio hipócrita. Para cobrir tal recalque, a língua alemã cunhou a palavra schadenfreude, a qual num único e singular vocábulo reúne schaden (dano) e freude (alegria) significando “alegria ou prazer com o dano ou a desgraça alheia”. Aqui, temos um exemplo de como a sociedade atual, que naturaliza o riso sempre como positivo, recalca até mesmo a designação desse tipo de riso.

Meu principal argumento é que o humor na forma de ridículo, quando não de insulto, está no coração da vida social contemporânea – mas tal argumento nunca foi muito enfatizado nas principais teorias do humor, as quais, em cada época, iluminam apenas o efeito catártico e a neutralidade da incongruência, obscurecendo a agressividade. É nesse sentido que precisamos de uma abordagem histórica das teorias sobre o riso e dos seus fundamentos ideológicos.

* Professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)

Capa do livro 'Discursos de Ódio', que investiga o avanço do crime das palavras Foto: Perspectiva

Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI

  • Autora: Maria Luiza Tucci Carneiro (organização)
  • Editora: Perspectiva (386 págs; R$ 99,90)

Com a difusão da comunicação online, era previsível que crimes de ódio também se instalassem nesse meio. Nos discursos disseminados há quem direcione ataques a judeus, negros mulheres, população LGBTQIA+, povos originários do Brasil, ciganos e ao meio ambiente, atingindo em cheio todas essas questões ligadas aos direitos humanos.

Por meio de 14 ensaios, o livro Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI, com organização da professora e historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançamento pela Perspectiva, debate como, diante de um cenário de democracias frágeis, o mundo assiste à ascensão dos novos movimentos neonazistas e neofascistas na Europa e América Latina, que atraem a geração mais jovem, e mostra como o crescimento expressivo do antissemitismo é fomentado pela extrema direita, a extrema esquerda e o islamismo radical.

Discursos de ódio são disseminados via redes sociais Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A coletânea ainda aborda como a extrema direita utiliza-se das mesmas estratégias de comunicação empregadas pelos nazistas para abolir ou confundir a fronteira entre verdade e mentira.

Entre os especialistas que discutem esses e outros temas estão Marcos Guterman, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor de Opinião do Estadão; Christiane Stallaert, professora catedrática de estudos ibero-americanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica); Robson Scarassati Bello, mestre e doutor em História Social pela USP; e Luciana Lavejo, doutora em História pela USP.

Os textos contidos no livro são trabalhos apresentados no I Colóquio Internacional Discursos de Ódio: Racismo Reciclado no Século XXI, realizado sob a coordenação do Laboratório de Estudos Sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da Universidade de São Paulo em novembro de 2019.

Leia a seguir trechos de três ensaios apresentados no livro:

O antissemitismo nazista como elo entre a supremacia branca estadunidense e a geração de identidade do século XXI

Por Christiane Stallaert*

A meu ver, a compreensão da ideologia xenófoba (inclusive neonazista) no século XXI reside mais em certos desdobramentos típicos dos anos 1990 do que na continuidade com o próprio nazismo. Esses desenvolvimentos incluem o fim da Guerra Fria, que na Europa foi acompanhada por sangrentos conflitos étnico-políticos nos Bálcãs; em todo o mundo, a emergência do islamismo radical, cujos primeiros surtos se tornaram visíveis na Argélia com a guerrilha em torno da Frente Islâmica de Salvação (FIS). Ao mesmo tempo, o apartheid chegava ao fim na África do Sul, o último regime de racismo de Estado institucionalizado. O contexto das comemorações dos cinquenta anos do Holocausto deu um impulso aos chamados estudos de memória (histórica) e dos direitos humanos.O fim do choque entre grandes ideologias abriu caminho para o ideal neoliberal da “globalização”, um mundo onde pessoas e bens são colocados em circulação e se tornam intimamente interligados. Nos Estados Unidos, essa visão se reflete no chamado “Consenso de Washington”, que já no início dos anos 1990 foi traduzido em um ambicioso Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte entre o Canadá, os Estados Unidos e o México. A Europa, por sua vez, deu passos decisivos rumo a um sonho de “cidadania europeia” na Cúpula de Maastricht realizada em 9 e 10 de novembro de 1991, com a abolição das fronteiras internas (o espaço Schengen), a criação de uma moeda comum (o euro) e o projeto de Constituição Europeia. A contrapartida dessa vontade política de abolir as fronteiras econômicas e humanas resulta, porém, na consolidação de tendências xenófobas e ultranacionalistas, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, nasceu em 1990 uma plataforma chamada Stormfront, nome que se refere à Sturmabteilung ou SA nazista. Na Europa, partidos xenófobos alcançam posições de destaque no espectro político de muitos países europeus. Assim, por exemplo, na Bélgica, o Bloco Flamengo (Vlaams Blok),partido criado em 1978, emergiu como força política nas eleições de novembro de 1991, obtendo mais de 20% dos votos em alguns distritos do país. Com uma ideologia racista e laços ou afinidades neonazistas, em 2004, após uma condenação judicial, o partido passou a se chamar Vlaams Belang, Interesse Flamengo, nome que lembra o conceito nazista de völkische Belange (interesse do povo). Essa semelhança nosleva à questão central de nossa análise, a saber: o “neonazismo” do século XXI é de inspiração nazista?

* Professora catedrática de estudos iberoamericanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica).

Jogos de ódio e jogos contra o ódio

Por Robson Scarassati Bello*

Destacar que muitos jogos são violentos é uma observação superficial e pouco significativa. A violência retratada nos jogos eletrônicos é sempre enquadrada em um propósito e uma razão ideológica, que a critica ou justifica. Seja a violência física, psicológica, civilizacional ou simbólica, ela é sempre direcionada a um Outro que é o alvo do ato violento.

O jogador que a exerce não o faz direcionando a outro ser humano ou ser vivo, de carne e osso, mas sim a um avatar, um objeto inanimado, que não possui materialidade física, nem sentimentos. Nesse sentido, é análogo, por exemplo, à brincadeira infantil de bater em um “João bobo”, que recebe o impacto e regressa ao lugar original para que possa ser acertado de novo. Contudo, o ato de bater em um objeto inanimado não está desvinculado de práticas simbólicas e rituais, em que dado objeto representa uma pessoa ou um grupo. A “malhação de Judas” é um ato expiatório que mobiliza massas de pessoas dentro da cristandade para bater e queimar um boneco que representa o “judeu traidor”, que é alvo da fúria coletiva, como se fosse possível punir e castigar aquele que trouxe o Mal para Cristo. Não obstante, a prática da “malhação” refere-se a um imaginário que alguns autores analisam como símbolo do antissemitismo. Se é possível auferir uma “função social”, essa é a de descarregar frustrações e raivas que consistentemente estão vinculadas a uma prática social – a punição física do “criminoso” – e a um imaginário religioso.

O símbolo ideológico tem sua função, que é a de contextualizar a ação. É relevante enfatizar que a violência retratada nos videogames não é resolvida apenas na tela, uma vez que há outros fatores que podem contribuir para a forma como o indivíduo encara a convivência com o outro, seja como adversário em uma competição ou como um inimigo a ser eliminado.

* Mestre e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

Humor e ódio na esfera pública digital

Por Elias Thomé Saliba*

Ainda que levemos em conta o alto potencial de polissemia inerente a toda produção cômica, é preciso constatar que no mundo digital da atualidade, piadas e chistes são apresentados como humorísticos dentro de contextos de extrema polarização ideológica, de ressentimento e de ódio e, no limite, de uma radicalização do fanatismo racista. Ora, como diversos estudos vêm analisando, sabemos que esse ambiente hostil e polarizador da mídia digital é inerente às novas gerações de algoritmos, os quais incrementam e estimulam em escala veloz e cada vez mais disseminada,a chamada “economia da atenção”. De qualquer forma, esse humor hostil que prospera nas redes sociais utiliza-se da ideologia positivista do riso para elidir o que realmente ele incentiva, ainda que de forma velada, que é acentuar a diferenciação social positiva de um grupo em relação a outro, arregimentando e reunindo, na concisão da piada e do estereótipo, todos os aspectos negativos. Por trás dessa cortina positivista de que se trata “apenas de uma piada”, está o reforço de uma percepção de superioridade por parte do emissor ou do produtor da anedota cômica.

Claro que o argumento de que possa haver ligações intrínsecas entre o preconceito extremo e o humor não é novo e já apareceu muito antes do advento do universo digital. Sartre sugeriu, em famoso ensaio, que os antissemitas achavam divertido serem antissemitas e sentiam prazer na “alegria de odiar”. Adorno e Horkheimer, numa passagem do seu lúgubre Dialética do Iluminismo, descrevendo os protestos dos antissemitas em reuniões políticas fascistas chegaram a designá-los como “riso organizado”. Argumentaram que a razão do prazer era que o fascismo “permite o que geralmente é proibido” e, assim, apoiado pela legitimidade da ideologia, o odiador fica livre de restrições normais e pode zombar de vítimas desumanizadas e indefesas. Noutros termos, tais argumentos já apontavam para os vínculos entre o ódio político extremo e o domínio das piadas.

Lembre-se, ainda, de que a própria nomenclatura do humor ofensivo ou da atitude de “rir da desgraça alheia” é uma designação que as sociedades elidem ou recalcam, não existindo uma palavra específica e única para designar tal tipo de riso. Tiffany Smith argumenta o quanto gostamos de saborear aquele prazer risonho com o fracasso e a inferioridade dos outros, mas quando nos pedem para nomear com todas as letras esse prazer, nossa linguagem empaca e recai num silêncio hipócrita. Para cobrir tal recalque, a língua alemã cunhou a palavra schadenfreude, a qual num único e singular vocábulo reúne schaden (dano) e freude (alegria) significando “alegria ou prazer com o dano ou a desgraça alheia”. Aqui, temos um exemplo de como a sociedade atual, que naturaliza o riso sempre como positivo, recalca até mesmo a designação desse tipo de riso.

Meu principal argumento é que o humor na forma de ridículo, quando não de insulto, está no coração da vida social contemporânea – mas tal argumento nunca foi muito enfatizado nas principais teorias do humor, as quais, em cada época, iluminam apenas o efeito catártico e a neutralidade da incongruência, obscurecendo a agressividade. É nesse sentido que precisamos de uma abordagem histórica das teorias sobre o riso e dos seus fundamentos ideológicos.

* Professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)

Capa do livro 'Discursos de Ódio', que investiga o avanço do crime das palavras Foto: Perspectiva

Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI

  • Autora: Maria Luiza Tucci Carneiro (organização)
  • Editora: Perspectiva (386 págs; R$ 99,90)

Com a difusão da comunicação online, era previsível que crimes de ódio também se instalassem nesse meio. Nos discursos disseminados há quem direcione ataques a judeus, negros mulheres, população LGBTQIA+, povos originários do Brasil, ciganos e ao meio ambiente, atingindo em cheio todas essas questões ligadas aos direitos humanos.

Por meio de 14 ensaios, o livro Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI, com organização da professora e historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançamento pela Perspectiva, debate como, diante de um cenário de democracias frágeis, o mundo assiste à ascensão dos novos movimentos neonazistas e neofascistas na Europa e América Latina, que atraem a geração mais jovem, e mostra como o crescimento expressivo do antissemitismo é fomentado pela extrema direita, a extrema esquerda e o islamismo radical.

Discursos de ódio são disseminados via redes sociais Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A coletânea ainda aborda como a extrema direita utiliza-se das mesmas estratégias de comunicação empregadas pelos nazistas para abolir ou confundir a fronteira entre verdade e mentira.

Entre os especialistas que discutem esses e outros temas estão Marcos Guterman, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor de Opinião do Estadão; Christiane Stallaert, professora catedrática de estudos ibero-americanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica); Robson Scarassati Bello, mestre e doutor em História Social pela USP; e Luciana Lavejo, doutora em História pela USP.

Os textos contidos no livro são trabalhos apresentados no I Colóquio Internacional Discursos de Ódio: Racismo Reciclado no Século XXI, realizado sob a coordenação do Laboratório de Estudos Sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da Universidade de São Paulo em novembro de 2019.

Leia a seguir trechos de três ensaios apresentados no livro:

O antissemitismo nazista como elo entre a supremacia branca estadunidense e a geração de identidade do século XXI

Por Christiane Stallaert*

A meu ver, a compreensão da ideologia xenófoba (inclusive neonazista) no século XXI reside mais em certos desdobramentos típicos dos anos 1990 do que na continuidade com o próprio nazismo. Esses desenvolvimentos incluem o fim da Guerra Fria, que na Europa foi acompanhada por sangrentos conflitos étnico-políticos nos Bálcãs; em todo o mundo, a emergência do islamismo radical, cujos primeiros surtos se tornaram visíveis na Argélia com a guerrilha em torno da Frente Islâmica de Salvação (FIS). Ao mesmo tempo, o apartheid chegava ao fim na África do Sul, o último regime de racismo de Estado institucionalizado. O contexto das comemorações dos cinquenta anos do Holocausto deu um impulso aos chamados estudos de memória (histórica) e dos direitos humanos.O fim do choque entre grandes ideologias abriu caminho para o ideal neoliberal da “globalização”, um mundo onde pessoas e bens são colocados em circulação e se tornam intimamente interligados. Nos Estados Unidos, essa visão se reflete no chamado “Consenso de Washington”, que já no início dos anos 1990 foi traduzido em um ambicioso Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte entre o Canadá, os Estados Unidos e o México. A Europa, por sua vez, deu passos decisivos rumo a um sonho de “cidadania europeia” na Cúpula de Maastricht realizada em 9 e 10 de novembro de 1991, com a abolição das fronteiras internas (o espaço Schengen), a criação de uma moeda comum (o euro) e o projeto de Constituição Europeia. A contrapartida dessa vontade política de abolir as fronteiras econômicas e humanas resulta, porém, na consolidação de tendências xenófobas e ultranacionalistas, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, nasceu em 1990 uma plataforma chamada Stormfront, nome que se refere à Sturmabteilung ou SA nazista. Na Europa, partidos xenófobos alcançam posições de destaque no espectro político de muitos países europeus. Assim, por exemplo, na Bélgica, o Bloco Flamengo (Vlaams Blok),partido criado em 1978, emergiu como força política nas eleições de novembro de 1991, obtendo mais de 20% dos votos em alguns distritos do país. Com uma ideologia racista e laços ou afinidades neonazistas, em 2004, após uma condenação judicial, o partido passou a se chamar Vlaams Belang, Interesse Flamengo, nome que lembra o conceito nazista de völkische Belange (interesse do povo). Essa semelhança nosleva à questão central de nossa análise, a saber: o “neonazismo” do século XXI é de inspiração nazista?

* Professora catedrática de estudos iberoamericanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica).

Jogos de ódio e jogos contra o ódio

Por Robson Scarassati Bello*

Destacar que muitos jogos são violentos é uma observação superficial e pouco significativa. A violência retratada nos jogos eletrônicos é sempre enquadrada em um propósito e uma razão ideológica, que a critica ou justifica. Seja a violência física, psicológica, civilizacional ou simbólica, ela é sempre direcionada a um Outro que é o alvo do ato violento.

O jogador que a exerce não o faz direcionando a outro ser humano ou ser vivo, de carne e osso, mas sim a um avatar, um objeto inanimado, que não possui materialidade física, nem sentimentos. Nesse sentido, é análogo, por exemplo, à brincadeira infantil de bater em um “João bobo”, que recebe o impacto e regressa ao lugar original para que possa ser acertado de novo. Contudo, o ato de bater em um objeto inanimado não está desvinculado de práticas simbólicas e rituais, em que dado objeto representa uma pessoa ou um grupo. A “malhação de Judas” é um ato expiatório que mobiliza massas de pessoas dentro da cristandade para bater e queimar um boneco que representa o “judeu traidor”, que é alvo da fúria coletiva, como se fosse possível punir e castigar aquele que trouxe o Mal para Cristo. Não obstante, a prática da “malhação” refere-se a um imaginário que alguns autores analisam como símbolo do antissemitismo. Se é possível auferir uma “função social”, essa é a de descarregar frustrações e raivas que consistentemente estão vinculadas a uma prática social – a punição física do “criminoso” – e a um imaginário religioso.

O símbolo ideológico tem sua função, que é a de contextualizar a ação. É relevante enfatizar que a violência retratada nos videogames não é resolvida apenas na tela, uma vez que há outros fatores que podem contribuir para a forma como o indivíduo encara a convivência com o outro, seja como adversário em uma competição ou como um inimigo a ser eliminado.

* Mestre e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

Humor e ódio na esfera pública digital

Por Elias Thomé Saliba*

Ainda que levemos em conta o alto potencial de polissemia inerente a toda produção cômica, é preciso constatar que no mundo digital da atualidade, piadas e chistes são apresentados como humorísticos dentro de contextos de extrema polarização ideológica, de ressentimento e de ódio e, no limite, de uma radicalização do fanatismo racista. Ora, como diversos estudos vêm analisando, sabemos que esse ambiente hostil e polarizador da mídia digital é inerente às novas gerações de algoritmos, os quais incrementam e estimulam em escala veloz e cada vez mais disseminada,a chamada “economia da atenção”. De qualquer forma, esse humor hostil que prospera nas redes sociais utiliza-se da ideologia positivista do riso para elidir o que realmente ele incentiva, ainda que de forma velada, que é acentuar a diferenciação social positiva de um grupo em relação a outro, arregimentando e reunindo, na concisão da piada e do estereótipo, todos os aspectos negativos. Por trás dessa cortina positivista de que se trata “apenas de uma piada”, está o reforço de uma percepção de superioridade por parte do emissor ou do produtor da anedota cômica.

Claro que o argumento de que possa haver ligações intrínsecas entre o preconceito extremo e o humor não é novo e já apareceu muito antes do advento do universo digital. Sartre sugeriu, em famoso ensaio, que os antissemitas achavam divertido serem antissemitas e sentiam prazer na “alegria de odiar”. Adorno e Horkheimer, numa passagem do seu lúgubre Dialética do Iluminismo, descrevendo os protestos dos antissemitas em reuniões políticas fascistas chegaram a designá-los como “riso organizado”. Argumentaram que a razão do prazer era que o fascismo “permite o que geralmente é proibido” e, assim, apoiado pela legitimidade da ideologia, o odiador fica livre de restrições normais e pode zombar de vítimas desumanizadas e indefesas. Noutros termos, tais argumentos já apontavam para os vínculos entre o ódio político extremo e o domínio das piadas.

Lembre-se, ainda, de que a própria nomenclatura do humor ofensivo ou da atitude de “rir da desgraça alheia” é uma designação que as sociedades elidem ou recalcam, não existindo uma palavra específica e única para designar tal tipo de riso. Tiffany Smith argumenta o quanto gostamos de saborear aquele prazer risonho com o fracasso e a inferioridade dos outros, mas quando nos pedem para nomear com todas as letras esse prazer, nossa linguagem empaca e recai num silêncio hipócrita. Para cobrir tal recalque, a língua alemã cunhou a palavra schadenfreude, a qual num único e singular vocábulo reúne schaden (dano) e freude (alegria) significando “alegria ou prazer com o dano ou a desgraça alheia”. Aqui, temos um exemplo de como a sociedade atual, que naturaliza o riso sempre como positivo, recalca até mesmo a designação desse tipo de riso.

Meu principal argumento é que o humor na forma de ridículo, quando não de insulto, está no coração da vida social contemporânea – mas tal argumento nunca foi muito enfatizado nas principais teorias do humor, as quais, em cada época, iluminam apenas o efeito catártico e a neutralidade da incongruência, obscurecendo a agressividade. É nesse sentido que precisamos de uma abordagem histórica das teorias sobre o riso e dos seus fundamentos ideológicos.

* Professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)

Capa do livro 'Discursos de Ódio', que investiga o avanço do crime das palavras Foto: Perspectiva

Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI

  • Autora: Maria Luiza Tucci Carneiro (organização)
  • Editora: Perspectiva (386 págs; R$ 99,90)

Com a difusão da comunicação online, era previsível que crimes de ódio também se instalassem nesse meio. Nos discursos disseminados há quem direcione ataques a judeus, negros mulheres, população LGBTQIA+, povos originários do Brasil, ciganos e ao meio ambiente, atingindo em cheio todas essas questões ligadas aos direitos humanos.

Por meio de 14 ensaios, o livro Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI, com organização da professora e historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançamento pela Perspectiva, debate como, diante de um cenário de democracias frágeis, o mundo assiste à ascensão dos novos movimentos neonazistas e neofascistas na Europa e América Latina, que atraem a geração mais jovem, e mostra como o crescimento expressivo do antissemitismo é fomentado pela extrema direita, a extrema esquerda e o islamismo radical.

Discursos de ódio são disseminados via redes sociais Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A coletânea ainda aborda como a extrema direita utiliza-se das mesmas estratégias de comunicação empregadas pelos nazistas para abolir ou confundir a fronteira entre verdade e mentira.

Entre os especialistas que discutem esses e outros temas estão Marcos Guterman, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor de Opinião do Estadão; Christiane Stallaert, professora catedrática de estudos ibero-americanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica); Robson Scarassati Bello, mestre e doutor em História Social pela USP; e Luciana Lavejo, doutora em História pela USP.

Os textos contidos no livro são trabalhos apresentados no I Colóquio Internacional Discursos de Ódio: Racismo Reciclado no Século XXI, realizado sob a coordenação do Laboratório de Estudos Sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da Universidade de São Paulo em novembro de 2019.

Leia a seguir trechos de três ensaios apresentados no livro:

O antissemitismo nazista como elo entre a supremacia branca estadunidense e a geração de identidade do século XXI

Por Christiane Stallaert*

A meu ver, a compreensão da ideologia xenófoba (inclusive neonazista) no século XXI reside mais em certos desdobramentos típicos dos anos 1990 do que na continuidade com o próprio nazismo. Esses desenvolvimentos incluem o fim da Guerra Fria, que na Europa foi acompanhada por sangrentos conflitos étnico-políticos nos Bálcãs; em todo o mundo, a emergência do islamismo radical, cujos primeiros surtos se tornaram visíveis na Argélia com a guerrilha em torno da Frente Islâmica de Salvação (FIS). Ao mesmo tempo, o apartheid chegava ao fim na África do Sul, o último regime de racismo de Estado institucionalizado. O contexto das comemorações dos cinquenta anos do Holocausto deu um impulso aos chamados estudos de memória (histórica) e dos direitos humanos.O fim do choque entre grandes ideologias abriu caminho para o ideal neoliberal da “globalização”, um mundo onde pessoas e bens são colocados em circulação e se tornam intimamente interligados. Nos Estados Unidos, essa visão se reflete no chamado “Consenso de Washington”, que já no início dos anos 1990 foi traduzido em um ambicioso Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte entre o Canadá, os Estados Unidos e o México. A Europa, por sua vez, deu passos decisivos rumo a um sonho de “cidadania europeia” na Cúpula de Maastricht realizada em 9 e 10 de novembro de 1991, com a abolição das fronteiras internas (o espaço Schengen), a criação de uma moeda comum (o euro) e o projeto de Constituição Europeia. A contrapartida dessa vontade política de abolir as fronteiras econômicas e humanas resulta, porém, na consolidação de tendências xenófobas e ultranacionalistas, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, nasceu em 1990 uma plataforma chamada Stormfront, nome que se refere à Sturmabteilung ou SA nazista. Na Europa, partidos xenófobos alcançam posições de destaque no espectro político de muitos países europeus. Assim, por exemplo, na Bélgica, o Bloco Flamengo (Vlaams Blok),partido criado em 1978, emergiu como força política nas eleições de novembro de 1991, obtendo mais de 20% dos votos em alguns distritos do país. Com uma ideologia racista e laços ou afinidades neonazistas, em 2004, após uma condenação judicial, o partido passou a se chamar Vlaams Belang, Interesse Flamengo, nome que lembra o conceito nazista de völkische Belange (interesse do povo). Essa semelhança nosleva à questão central de nossa análise, a saber: o “neonazismo” do século XXI é de inspiração nazista?

* Professora catedrática de estudos iberoamericanos, comunicação intercultural e tradução na Universidade de Antuérpia (Bélgica).

Jogos de ódio e jogos contra o ódio

Por Robson Scarassati Bello*

Destacar que muitos jogos são violentos é uma observação superficial e pouco significativa. A violência retratada nos jogos eletrônicos é sempre enquadrada em um propósito e uma razão ideológica, que a critica ou justifica. Seja a violência física, psicológica, civilizacional ou simbólica, ela é sempre direcionada a um Outro que é o alvo do ato violento.

O jogador que a exerce não o faz direcionando a outro ser humano ou ser vivo, de carne e osso, mas sim a um avatar, um objeto inanimado, que não possui materialidade física, nem sentimentos. Nesse sentido, é análogo, por exemplo, à brincadeira infantil de bater em um “João bobo”, que recebe o impacto e regressa ao lugar original para que possa ser acertado de novo. Contudo, o ato de bater em um objeto inanimado não está desvinculado de práticas simbólicas e rituais, em que dado objeto representa uma pessoa ou um grupo. A “malhação de Judas” é um ato expiatório que mobiliza massas de pessoas dentro da cristandade para bater e queimar um boneco que representa o “judeu traidor”, que é alvo da fúria coletiva, como se fosse possível punir e castigar aquele que trouxe o Mal para Cristo. Não obstante, a prática da “malhação” refere-se a um imaginário que alguns autores analisam como símbolo do antissemitismo. Se é possível auferir uma “função social”, essa é a de descarregar frustrações e raivas que consistentemente estão vinculadas a uma prática social – a punição física do “criminoso” – e a um imaginário religioso.

O símbolo ideológico tem sua função, que é a de contextualizar a ação. É relevante enfatizar que a violência retratada nos videogames não é resolvida apenas na tela, uma vez que há outros fatores que podem contribuir para a forma como o indivíduo encara a convivência com o outro, seja como adversário em uma competição ou como um inimigo a ser eliminado.

* Mestre e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

Humor e ódio na esfera pública digital

Por Elias Thomé Saliba*

Ainda que levemos em conta o alto potencial de polissemia inerente a toda produção cômica, é preciso constatar que no mundo digital da atualidade, piadas e chistes são apresentados como humorísticos dentro de contextos de extrema polarização ideológica, de ressentimento e de ódio e, no limite, de uma radicalização do fanatismo racista. Ora, como diversos estudos vêm analisando, sabemos que esse ambiente hostil e polarizador da mídia digital é inerente às novas gerações de algoritmos, os quais incrementam e estimulam em escala veloz e cada vez mais disseminada,a chamada “economia da atenção”. De qualquer forma, esse humor hostil que prospera nas redes sociais utiliza-se da ideologia positivista do riso para elidir o que realmente ele incentiva, ainda que de forma velada, que é acentuar a diferenciação social positiva de um grupo em relação a outro, arregimentando e reunindo, na concisão da piada e do estereótipo, todos os aspectos negativos. Por trás dessa cortina positivista de que se trata “apenas de uma piada”, está o reforço de uma percepção de superioridade por parte do emissor ou do produtor da anedota cômica.

Claro que o argumento de que possa haver ligações intrínsecas entre o preconceito extremo e o humor não é novo e já apareceu muito antes do advento do universo digital. Sartre sugeriu, em famoso ensaio, que os antissemitas achavam divertido serem antissemitas e sentiam prazer na “alegria de odiar”. Adorno e Horkheimer, numa passagem do seu lúgubre Dialética do Iluminismo, descrevendo os protestos dos antissemitas em reuniões políticas fascistas chegaram a designá-los como “riso organizado”. Argumentaram que a razão do prazer era que o fascismo “permite o que geralmente é proibido” e, assim, apoiado pela legitimidade da ideologia, o odiador fica livre de restrições normais e pode zombar de vítimas desumanizadas e indefesas. Noutros termos, tais argumentos já apontavam para os vínculos entre o ódio político extremo e o domínio das piadas.

Lembre-se, ainda, de que a própria nomenclatura do humor ofensivo ou da atitude de “rir da desgraça alheia” é uma designação que as sociedades elidem ou recalcam, não existindo uma palavra específica e única para designar tal tipo de riso. Tiffany Smith argumenta o quanto gostamos de saborear aquele prazer risonho com o fracasso e a inferioridade dos outros, mas quando nos pedem para nomear com todas as letras esse prazer, nossa linguagem empaca e recai num silêncio hipócrita. Para cobrir tal recalque, a língua alemã cunhou a palavra schadenfreude, a qual num único e singular vocábulo reúne schaden (dano) e freude (alegria) significando “alegria ou prazer com o dano ou a desgraça alheia”. Aqui, temos um exemplo de como a sociedade atual, que naturaliza o riso sempre como positivo, recalca até mesmo a designação desse tipo de riso.

Meu principal argumento é que o humor na forma de ridículo, quando não de insulto, está no coração da vida social contemporânea – mas tal argumento nunca foi muito enfatizado nas principais teorias do humor, as quais, em cada época, iluminam apenas o efeito catártico e a neutralidade da incongruência, obscurecendo a agressividade. É nesse sentido que precisamos de uma abordagem histórica das teorias sobre o riso e dos seus fundamentos ideológicos.

* Professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)

Capa do livro 'Discursos de Ódio', que investiga o avanço do crime das palavras Foto: Perspectiva

Discursos de Ódio - O Racismo Reciclado nos Séculos XX e XXI

  • Autora: Maria Luiza Tucci Carneiro (organização)
  • Editora: Perspectiva (386 págs; R$ 99,90)

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