Dois livros reúnem últimos contos, entrevistas e ensaios de Sérgio Sant'Anna


Produções inestimáveis para compreender o projeto literário do autor vão do repetitivo ao sublime

Por Ronaldo Bressane

“O Brasil é um filme de terror.” Avis rara na literatura brasileira, clássico com cara experimental, transgressor sofisticado, assim Sérgio Sant’Anna lançou suas últimas palavras: num post direto em seu perfil no Facebook, esbravejando contra a ascensão do fascismo no país. Um dos grandes artistas brasileiros mortos pela covid-19 que, como Aldir Blanc e Moraes Moreira, não mereceu nenhuma nota de pesar do governo federal (melhor assim). Trabalhou até o fim: é o que notamos ao ler A Dama de Branco, que reúne suas últimas narrativas, editadas por Gustavo Pacheco. Outro livro também preparado pelo contista carioca (coadjuvado por André Nigri), O Conto Não Existe, reunindo suas entrevistas e ensaios, aponta para a faceta incômoda do Bruxo das Laranjeiras.

O escritor Sérgio Sant'Anna foi um dos principais contistas do Brasil Foto: Wilton Júnior/Estadão

São produções muito diversas, e ambas inestimáveis para compreender o projeto literário do autor, nascido no Rio de Janeiro mas formado escritor em Belo Horizonte e Iowa. A reunião de narrativas é desigual, algumas vezes repetitiva na temática, e sublime em vários momentos. O tom autobiográfico visita a maioria dos textos, tônica dos dez últimos anos de escrita, quando – fato raríssimo no ofício – , Serjão publicou cinco de seus melhores livros, obras-primas como O Homem-Mulher.  A novela Carta Marcada remete a episódios da própria vida de Sant’Anna, conforme relatados em contos publicados nos últimos anos, mas aqui acrescidos de fantasia e aquele erotismo ‘softcore’, certa sacanagem temperada com lirismo, que havia se tornado sua marca registrada. O narrador conta sua vida amorosa em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos. Começa lá pelos anos 1960, quando o então estudante de Direito se envolve com uma moça virginal e sua malandrinha irmã mais nova. Casa-se, mas mantém a volúpia pela cunhadinha. A narrativa dá um salto para os anos 2000 ou 2010, quando o narrador, já advogado e no Rio, está apenas alguns anos mais velho e se envolve de fato com a cunhada. O relacionamento se cruza com outro triângulo amoroso, este um processo judicial, que o advogado defende de modo arrojado, provando-se um campeão da causa feminista. A trama rocambolesca e o enredo furado demonstram a falta de polimento na noveleta, que tem momentos engraçados nas peripécias do causídico sacana; curioso é ainda o arrependimento pelo alcoolismo e pelo tabagismo, que arruinaram a saúde do personagem (bem como a saúde do próprio Serjão). O pornô soft reaparece em A Filha de Drácula, em que um empresário se envolve com uma vampira; O Bordel, que remete a uma fantasia recorrente na novela Carta Marcada e no excessivo Livro de Praga, e comparece em outros textos autobiográficos, onde Sant’Anna dá livre curso a memórias e fantasias: “O bordel dos meus sonhos recorrentes continua a me trazer grande emoção e alegria, fazendo parte de uma maravilhosa e imprecisa irrealidade, porém mais forte que o próprio real. E uma esperança insensata me faz querer crer que o sentimento do amor só pode ser tão intenso e urgente porque temos a certeza de morrer um dia”.Tarzan e o Império dos Médios lembra os tempos de colégio católico associando-os à descoberta dos quadrinhos, da ficção e do futebol: num torneio estudantil, por pouco não marcou um golaço – não fosse esse “quase”, talvez estivéssemos hoje falando de seu futebol. Há dois contos de abordagem semelhante: Vejo e Noite. O primeiro entrelaça lembranças de uma vida toda. Um dos textos mais bem realizados é Le Bateau Ivre, micropeça ambientada num boteco de Copacabana, quando uma jovem de classe média e um camelô trombam solidões por conta de um acaso metereológico. A Moça de Óculos flagra um encontro entre o narrador e uma mulher que havia sido sua aluna numa faculdade (e Sant’Anna deu aulas de Comunicação na UFRJ). Vão para a casa dela e... certas sequências de sexo são quase idênticas a de outras narrativas, como Carta Marcada, o que inclui descrições pormenorizadas de posições e folguedos e certas idiossincrasias lúbricas. Muito impactantes são os textos em que o autor, um ateu que tinha lá suas superstições católicas, questionava a existência da alma, a vida após a morte, a possibilidade de um Deus. Parece que, face à morte próxima, o autor lidava com a dúvida central em sua vida, que jamais resolveu – e esta tensão existencial se alinha à tensão da narrativa, como em A Aparição, O Pregador, Anticonto, Por que Escrevo?. Por conta da repetição de temas e certas gordurinhas estilísticas, o canto do cisne negro decerto não está à altura dos cinco últimos romances de Serjão. Mas mata as saudades de quem sente falta da pena da galhofa e a tinta da melancolia típicas de sua escrita elegante. A falta que Sérgio Sant’Anna faz à cena literária brasileira fica mais evidente em O Conto Não Existe. Neste belo livro, de formato inusual por aqui, mas comum em literaturas como a argentina, percebemos a voz de Serjão como intelectual público. Apesar de escritor discreto, nada performático (embora suas aulas na UFRJ fossem tão espetaculares que os alunos lhe tascaram o apelido de Deus), nunca se furtou a tecer opiniões controversas, algumas até ácidas – como criticar Guimarães Rosa, “o maior escritor do Brasil”, por ter esgotado um modelo e ter fechado caminhos para as gerações posteriores. Também nunca deixou de defender comportamentos libertários nem escondeu o flerte com o anarquismo e com o espírito progressista, sendo crítico de primeira hora do atraso brasileiro que deu à luz o bolsonarismo (conservadorismo que vai ver, com misto de admiração e aversão, em Nelson Rodrigues).  Curiosamente, embora a maestria na escrita o aponte como um clássico, Serjão sempre se interessou mais por autores e obras portadores de inquietude, afeitos à iconoclastia – foi um dos poucos escritores consagrados a apontar o romance PanAmérica, de José Agrippino de Paula, como um óvni desestruturante no nosso cânone. Generoso, preferia chamar atenção para autores estreantes e literaturas não convencionais, ao mesmo tempo em que não tinha problemas em elogiar seus pares, como Rubem Fonseca e João Gilberto Noll – no fim da vida, era grande entusiasta de César Aira, mais prolífico e irrequieto prosador argentino. Percebe-se, nas entrevistas e ensaios, como foi importante o contato de Sant’Anna com o Cinema Novo, com o teatro de Antunes Filho, com o movimento musical de Belo Horizonte e com a vanguarda cultural norte-americana durante sua residência na Universidade de Iowa, em 1970, para que mantivesse orelhas sempre ligadas no novo. “Sempre tive horror à acomodação”, disse em entrevista de 1991. Daí sua desconfiança em relação ao realismo, corrente principal da prosa brasileira (“o realismo é uma ilusão, minha literatura jamais poderá ser classificada como realista”). Seu entusiasmo pela geração de escritores estreantes nos anos 1990, com quem tomou contato por meio de principalmente do filho André (“Há muito tempo eu não via tanta gente jovem escrevendo ao mesmo tempo”, disse em 2004). E sua filiação devota a Oswald de Andrade, que lhe iluminou o “malfeito” como traço da originalidade estética nacional (em 1982).  Além das divertidas entrevistas concedidas a nomes como Isabel Lucas e Beatriz Resende, há ainda o notável perfil escrito por Bernardo Esteves, para a revista piauí, onde se revela a condição depressiva, as tentativas de suicídio e a rotina devotada do autor, que escrevia todo dia, à mão, numa cadeira de balanço, os textos que passaria a limpo, no computador, até altas horas das madrugada. É na segunda parte, porém, reservada aos ensaios, que se revela o paideuma de Serjão, em textos dedicados a Machado de Assis, Agrippino, Fonseca, Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, Hemingway e Franz Kafka.  No ensaio final, que dá título ao livro, a ironia do Bruxo das Laranjeiras encontra o negativismo do Bruxo do Catete ao defender a arte de não escrever: “Requer método e força de vontade (...) comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor”. Para nossa sorte, ficar quieto no seu canto foi outra regra que Serjão preferiu driblar. *MESTRE EM LETRAS PELA UNIFESP, RONALDO BRESSANE É ESCRITOR E PROFESSOR DE ESCRITA CRIATIVA, AUTOR DE ‘ESCALPO’ (REFORMATÓRIO), ENTRE OUTROS LIVROS

“O Brasil é um filme de terror.” Avis rara na literatura brasileira, clássico com cara experimental, transgressor sofisticado, assim Sérgio Sant’Anna lançou suas últimas palavras: num post direto em seu perfil no Facebook, esbravejando contra a ascensão do fascismo no país. Um dos grandes artistas brasileiros mortos pela covid-19 que, como Aldir Blanc e Moraes Moreira, não mereceu nenhuma nota de pesar do governo federal (melhor assim). Trabalhou até o fim: é o que notamos ao ler A Dama de Branco, que reúne suas últimas narrativas, editadas por Gustavo Pacheco. Outro livro também preparado pelo contista carioca (coadjuvado por André Nigri), O Conto Não Existe, reunindo suas entrevistas e ensaios, aponta para a faceta incômoda do Bruxo das Laranjeiras.

O escritor Sérgio Sant'Anna foi um dos principais contistas do Brasil Foto: Wilton Júnior/Estadão

São produções muito diversas, e ambas inestimáveis para compreender o projeto literário do autor, nascido no Rio de Janeiro mas formado escritor em Belo Horizonte e Iowa. A reunião de narrativas é desigual, algumas vezes repetitiva na temática, e sublime em vários momentos. O tom autobiográfico visita a maioria dos textos, tônica dos dez últimos anos de escrita, quando – fato raríssimo no ofício – , Serjão publicou cinco de seus melhores livros, obras-primas como O Homem-Mulher.  A novela Carta Marcada remete a episódios da própria vida de Sant’Anna, conforme relatados em contos publicados nos últimos anos, mas aqui acrescidos de fantasia e aquele erotismo ‘softcore’, certa sacanagem temperada com lirismo, que havia se tornado sua marca registrada. O narrador conta sua vida amorosa em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos. Começa lá pelos anos 1960, quando o então estudante de Direito se envolve com uma moça virginal e sua malandrinha irmã mais nova. Casa-se, mas mantém a volúpia pela cunhadinha. A narrativa dá um salto para os anos 2000 ou 2010, quando o narrador, já advogado e no Rio, está apenas alguns anos mais velho e se envolve de fato com a cunhada. O relacionamento se cruza com outro triângulo amoroso, este um processo judicial, que o advogado defende de modo arrojado, provando-se um campeão da causa feminista. A trama rocambolesca e o enredo furado demonstram a falta de polimento na noveleta, que tem momentos engraçados nas peripécias do causídico sacana; curioso é ainda o arrependimento pelo alcoolismo e pelo tabagismo, que arruinaram a saúde do personagem (bem como a saúde do próprio Serjão). O pornô soft reaparece em A Filha de Drácula, em que um empresário se envolve com uma vampira; O Bordel, que remete a uma fantasia recorrente na novela Carta Marcada e no excessivo Livro de Praga, e comparece em outros textos autobiográficos, onde Sant’Anna dá livre curso a memórias e fantasias: “O bordel dos meus sonhos recorrentes continua a me trazer grande emoção e alegria, fazendo parte de uma maravilhosa e imprecisa irrealidade, porém mais forte que o próprio real. E uma esperança insensata me faz querer crer que o sentimento do amor só pode ser tão intenso e urgente porque temos a certeza de morrer um dia”.Tarzan e o Império dos Médios lembra os tempos de colégio católico associando-os à descoberta dos quadrinhos, da ficção e do futebol: num torneio estudantil, por pouco não marcou um golaço – não fosse esse “quase”, talvez estivéssemos hoje falando de seu futebol. Há dois contos de abordagem semelhante: Vejo e Noite. O primeiro entrelaça lembranças de uma vida toda. Um dos textos mais bem realizados é Le Bateau Ivre, micropeça ambientada num boteco de Copacabana, quando uma jovem de classe média e um camelô trombam solidões por conta de um acaso metereológico. A Moça de Óculos flagra um encontro entre o narrador e uma mulher que havia sido sua aluna numa faculdade (e Sant’Anna deu aulas de Comunicação na UFRJ). Vão para a casa dela e... certas sequências de sexo são quase idênticas a de outras narrativas, como Carta Marcada, o que inclui descrições pormenorizadas de posições e folguedos e certas idiossincrasias lúbricas. Muito impactantes são os textos em que o autor, um ateu que tinha lá suas superstições católicas, questionava a existência da alma, a vida após a morte, a possibilidade de um Deus. Parece que, face à morte próxima, o autor lidava com a dúvida central em sua vida, que jamais resolveu – e esta tensão existencial se alinha à tensão da narrativa, como em A Aparição, O Pregador, Anticonto, Por que Escrevo?. Por conta da repetição de temas e certas gordurinhas estilísticas, o canto do cisne negro decerto não está à altura dos cinco últimos romances de Serjão. Mas mata as saudades de quem sente falta da pena da galhofa e a tinta da melancolia típicas de sua escrita elegante. A falta que Sérgio Sant’Anna faz à cena literária brasileira fica mais evidente em O Conto Não Existe. Neste belo livro, de formato inusual por aqui, mas comum em literaturas como a argentina, percebemos a voz de Serjão como intelectual público. Apesar de escritor discreto, nada performático (embora suas aulas na UFRJ fossem tão espetaculares que os alunos lhe tascaram o apelido de Deus), nunca se furtou a tecer opiniões controversas, algumas até ácidas – como criticar Guimarães Rosa, “o maior escritor do Brasil”, por ter esgotado um modelo e ter fechado caminhos para as gerações posteriores. Também nunca deixou de defender comportamentos libertários nem escondeu o flerte com o anarquismo e com o espírito progressista, sendo crítico de primeira hora do atraso brasileiro que deu à luz o bolsonarismo (conservadorismo que vai ver, com misto de admiração e aversão, em Nelson Rodrigues).  Curiosamente, embora a maestria na escrita o aponte como um clássico, Serjão sempre se interessou mais por autores e obras portadores de inquietude, afeitos à iconoclastia – foi um dos poucos escritores consagrados a apontar o romance PanAmérica, de José Agrippino de Paula, como um óvni desestruturante no nosso cânone. Generoso, preferia chamar atenção para autores estreantes e literaturas não convencionais, ao mesmo tempo em que não tinha problemas em elogiar seus pares, como Rubem Fonseca e João Gilberto Noll – no fim da vida, era grande entusiasta de César Aira, mais prolífico e irrequieto prosador argentino. Percebe-se, nas entrevistas e ensaios, como foi importante o contato de Sant’Anna com o Cinema Novo, com o teatro de Antunes Filho, com o movimento musical de Belo Horizonte e com a vanguarda cultural norte-americana durante sua residência na Universidade de Iowa, em 1970, para que mantivesse orelhas sempre ligadas no novo. “Sempre tive horror à acomodação”, disse em entrevista de 1991. Daí sua desconfiança em relação ao realismo, corrente principal da prosa brasileira (“o realismo é uma ilusão, minha literatura jamais poderá ser classificada como realista”). Seu entusiasmo pela geração de escritores estreantes nos anos 1990, com quem tomou contato por meio de principalmente do filho André (“Há muito tempo eu não via tanta gente jovem escrevendo ao mesmo tempo”, disse em 2004). E sua filiação devota a Oswald de Andrade, que lhe iluminou o “malfeito” como traço da originalidade estética nacional (em 1982).  Além das divertidas entrevistas concedidas a nomes como Isabel Lucas e Beatriz Resende, há ainda o notável perfil escrito por Bernardo Esteves, para a revista piauí, onde se revela a condição depressiva, as tentativas de suicídio e a rotina devotada do autor, que escrevia todo dia, à mão, numa cadeira de balanço, os textos que passaria a limpo, no computador, até altas horas das madrugada. É na segunda parte, porém, reservada aos ensaios, que se revela o paideuma de Serjão, em textos dedicados a Machado de Assis, Agrippino, Fonseca, Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, Hemingway e Franz Kafka.  No ensaio final, que dá título ao livro, a ironia do Bruxo das Laranjeiras encontra o negativismo do Bruxo do Catete ao defender a arte de não escrever: “Requer método e força de vontade (...) comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor”. Para nossa sorte, ficar quieto no seu canto foi outra regra que Serjão preferiu driblar. *MESTRE EM LETRAS PELA UNIFESP, RONALDO BRESSANE É ESCRITOR E PROFESSOR DE ESCRITA CRIATIVA, AUTOR DE ‘ESCALPO’ (REFORMATÓRIO), ENTRE OUTROS LIVROS

“O Brasil é um filme de terror.” Avis rara na literatura brasileira, clássico com cara experimental, transgressor sofisticado, assim Sérgio Sant’Anna lançou suas últimas palavras: num post direto em seu perfil no Facebook, esbravejando contra a ascensão do fascismo no país. Um dos grandes artistas brasileiros mortos pela covid-19 que, como Aldir Blanc e Moraes Moreira, não mereceu nenhuma nota de pesar do governo federal (melhor assim). Trabalhou até o fim: é o que notamos ao ler A Dama de Branco, que reúne suas últimas narrativas, editadas por Gustavo Pacheco. Outro livro também preparado pelo contista carioca (coadjuvado por André Nigri), O Conto Não Existe, reunindo suas entrevistas e ensaios, aponta para a faceta incômoda do Bruxo das Laranjeiras.

O escritor Sérgio Sant'Anna foi um dos principais contistas do Brasil Foto: Wilton Júnior/Estadão

São produções muito diversas, e ambas inestimáveis para compreender o projeto literário do autor, nascido no Rio de Janeiro mas formado escritor em Belo Horizonte e Iowa. A reunião de narrativas é desigual, algumas vezes repetitiva na temática, e sublime em vários momentos. O tom autobiográfico visita a maioria dos textos, tônica dos dez últimos anos de escrita, quando – fato raríssimo no ofício – , Serjão publicou cinco de seus melhores livros, obras-primas como O Homem-Mulher.  A novela Carta Marcada remete a episódios da própria vida de Sant’Anna, conforme relatados em contos publicados nos últimos anos, mas aqui acrescidos de fantasia e aquele erotismo ‘softcore’, certa sacanagem temperada com lirismo, que havia se tornado sua marca registrada. O narrador conta sua vida amorosa em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos. Começa lá pelos anos 1960, quando o então estudante de Direito se envolve com uma moça virginal e sua malandrinha irmã mais nova. Casa-se, mas mantém a volúpia pela cunhadinha. A narrativa dá um salto para os anos 2000 ou 2010, quando o narrador, já advogado e no Rio, está apenas alguns anos mais velho e se envolve de fato com a cunhada. O relacionamento se cruza com outro triângulo amoroso, este um processo judicial, que o advogado defende de modo arrojado, provando-se um campeão da causa feminista. A trama rocambolesca e o enredo furado demonstram a falta de polimento na noveleta, que tem momentos engraçados nas peripécias do causídico sacana; curioso é ainda o arrependimento pelo alcoolismo e pelo tabagismo, que arruinaram a saúde do personagem (bem como a saúde do próprio Serjão). O pornô soft reaparece em A Filha de Drácula, em que um empresário se envolve com uma vampira; O Bordel, que remete a uma fantasia recorrente na novela Carta Marcada e no excessivo Livro de Praga, e comparece em outros textos autobiográficos, onde Sant’Anna dá livre curso a memórias e fantasias: “O bordel dos meus sonhos recorrentes continua a me trazer grande emoção e alegria, fazendo parte de uma maravilhosa e imprecisa irrealidade, porém mais forte que o próprio real. E uma esperança insensata me faz querer crer que o sentimento do amor só pode ser tão intenso e urgente porque temos a certeza de morrer um dia”.Tarzan e o Império dos Médios lembra os tempos de colégio católico associando-os à descoberta dos quadrinhos, da ficção e do futebol: num torneio estudantil, por pouco não marcou um golaço – não fosse esse “quase”, talvez estivéssemos hoje falando de seu futebol. Há dois contos de abordagem semelhante: Vejo e Noite. O primeiro entrelaça lembranças de uma vida toda. Um dos textos mais bem realizados é Le Bateau Ivre, micropeça ambientada num boteco de Copacabana, quando uma jovem de classe média e um camelô trombam solidões por conta de um acaso metereológico. A Moça de Óculos flagra um encontro entre o narrador e uma mulher que havia sido sua aluna numa faculdade (e Sant’Anna deu aulas de Comunicação na UFRJ). Vão para a casa dela e... certas sequências de sexo são quase idênticas a de outras narrativas, como Carta Marcada, o que inclui descrições pormenorizadas de posições e folguedos e certas idiossincrasias lúbricas. Muito impactantes são os textos em que o autor, um ateu que tinha lá suas superstições católicas, questionava a existência da alma, a vida após a morte, a possibilidade de um Deus. Parece que, face à morte próxima, o autor lidava com a dúvida central em sua vida, que jamais resolveu – e esta tensão existencial se alinha à tensão da narrativa, como em A Aparição, O Pregador, Anticonto, Por que Escrevo?. Por conta da repetição de temas e certas gordurinhas estilísticas, o canto do cisne negro decerto não está à altura dos cinco últimos romances de Serjão. Mas mata as saudades de quem sente falta da pena da galhofa e a tinta da melancolia típicas de sua escrita elegante. A falta que Sérgio Sant’Anna faz à cena literária brasileira fica mais evidente em O Conto Não Existe. Neste belo livro, de formato inusual por aqui, mas comum em literaturas como a argentina, percebemos a voz de Serjão como intelectual público. Apesar de escritor discreto, nada performático (embora suas aulas na UFRJ fossem tão espetaculares que os alunos lhe tascaram o apelido de Deus), nunca se furtou a tecer opiniões controversas, algumas até ácidas – como criticar Guimarães Rosa, “o maior escritor do Brasil”, por ter esgotado um modelo e ter fechado caminhos para as gerações posteriores. Também nunca deixou de defender comportamentos libertários nem escondeu o flerte com o anarquismo e com o espírito progressista, sendo crítico de primeira hora do atraso brasileiro que deu à luz o bolsonarismo (conservadorismo que vai ver, com misto de admiração e aversão, em Nelson Rodrigues).  Curiosamente, embora a maestria na escrita o aponte como um clássico, Serjão sempre se interessou mais por autores e obras portadores de inquietude, afeitos à iconoclastia – foi um dos poucos escritores consagrados a apontar o romance PanAmérica, de José Agrippino de Paula, como um óvni desestruturante no nosso cânone. Generoso, preferia chamar atenção para autores estreantes e literaturas não convencionais, ao mesmo tempo em que não tinha problemas em elogiar seus pares, como Rubem Fonseca e João Gilberto Noll – no fim da vida, era grande entusiasta de César Aira, mais prolífico e irrequieto prosador argentino. Percebe-se, nas entrevistas e ensaios, como foi importante o contato de Sant’Anna com o Cinema Novo, com o teatro de Antunes Filho, com o movimento musical de Belo Horizonte e com a vanguarda cultural norte-americana durante sua residência na Universidade de Iowa, em 1970, para que mantivesse orelhas sempre ligadas no novo. “Sempre tive horror à acomodação”, disse em entrevista de 1991. Daí sua desconfiança em relação ao realismo, corrente principal da prosa brasileira (“o realismo é uma ilusão, minha literatura jamais poderá ser classificada como realista”). Seu entusiasmo pela geração de escritores estreantes nos anos 1990, com quem tomou contato por meio de principalmente do filho André (“Há muito tempo eu não via tanta gente jovem escrevendo ao mesmo tempo”, disse em 2004). E sua filiação devota a Oswald de Andrade, que lhe iluminou o “malfeito” como traço da originalidade estética nacional (em 1982).  Além das divertidas entrevistas concedidas a nomes como Isabel Lucas e Beatriz Resende, há ainda o notável perfil escrito por Bernardo Esteves, para a revista piauí, onde se revela a condição depressiva, as tentativas de suicídio e a rotina devotada do autor, que escrevia todo dia, à mão, numa cadeira de balanço, os textos que passaria a limpo, no computador, até altas horas das madrugada. É na segunda parte, porém, reservada aos ensaios, que se revela o paideuma de Serjão, em textos dedicados a Machado de Assis, Agrippino, Fonseca, Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, Hemingway e Franz Kafka.  No ensaio final, que dá título ao livro, a ironia do Bruxo das Laranjeiras encontra o negativismo do Bruxo do Catete ao defender a arte de não escrever: “Requer método e força de vontade (...) comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor”. Para nossa sorte, ficar quieto no seu canto foi outra regra que Serjão preferiu driblar. *MESTRE EM LETRAS PELA UNIFESP, RONALDO BRESSANE É ESCRITOR E PROFESSOR DE ESCRITA CRIATIVA, AUTOR DE ‘ESCALPO’ (REFORMATÓRIO), ENTRE OUTROS LIVROS

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.