Essa é a história de uma família israelense vivendo na Califórnia, mas o que acontece com Lilach e Michael poderia acontecer na casa de qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade, em qualquer lugar. Eles são pais de Adam, um garoto que entra na adolescência e se fecha, revelando-se um desconhecido para a família. Numa festa da escola, da qual ele não queria participar, um garoto negro morre – e essa história familiar, contada por Ayelet Gundar-Goshen em Outro Lugar, se transforma em uma espécie de thriller psicológico.
Ayelet, de 40 anos, que é também mãe e psicóloga e já publicou aqui Uma Noite, Markovitch e Despertar os Leões, todos pela Todavia, está no Brasil para o lançamento deste seu novo romance. Ela é convidada do 1.º Festival Literário do Museu Judaico neste sábado, 8, às 18h – o evento começa amanhã, 6, e segue até domingo, 9.
Às vésperas de embarcar em Israel, ela conversou com o Estadão por e-mail sobre este delicado livro sobre a adolescência, narrado por uma mãe que suspeita que seu filho sofreu bullying e teme que ele tenha matado o colega de classe como vingança. Um livro que pode ser lido também como uma discussão acerca do antissemitismo e do racismo nos Estados Unidos, ou uma história sobre identidade, ou medo, ou culpa. Ou tudo isso ao mesmo tempo.
Afinal, o que ‘Outro Lugar’ representa para você?
Eu queria explorar o papel fundamental que a mentira desempenha em nossas vidas: às vezes, a mentira é o material de que uma nação é feita; às vezes, é a cola que mantém um relacionamento unido. Como mãe, eu me perguntava o que teria feito se descobrisse que meu filho havia mentido para mim sobre sofrer bullying.
Como surgiu a ideia do livro? Sempre foi um ‘thriller familiar’?
Comecei a escrever o romance depois de uma experiência perturbadora que tive, quando levei minha filhinha para seu primeiro dia na pré-escola. Olhei com desconfiança para todas as outras crianças, enquanto tentava identificar a menina ou o menino malcriado que poderia querer prejudicar minha filha. Eu pensava na minha criança como uma alma tão vulnerável e delicada, enquanto pensava nas outras como uma ameaça em potencial. Percebi mais tarde, olhando para as outras mães, que todas tínhamos medo da mesma coisa – cada mãe temia que seu filhotinho pudesse ser uma presa para as outras crianças. Estávamos todos procurando o lobo que poderia prejudicar nossos filhos, mas nenhuma de nós estava disposta a considerar a possibilidade de que seu próprio filho fosse de fato aquele lobo. Eu não queria escrever apenas um thriller psicológico, mas também explorar questões da paternidade hoje: conhecemos realmente nossos filhos e queremos mesmo conhecê-los?
O livro retrata um momento delicado, pelos olhos de uma mãe que descobre que perdeu a conexão com o filho ou, pior, que sente que não o conhece mais. Como psicóloga e escritora que investigou essa questão, o que diria para quem está ou passará por esta fase?
Acho o fato de passar tanto tempo com os próprios filhos e não ter a menor ideia do que se passa dentro deles realmente perturbadora. É chocante se sentir um estranho em sua própria casa. Cada membro da família vive isolado, como uma pequena ilha no oceano. Toda mãe olha para seu filho adolescente como se ele fosse um enigma que ela está tentando resolver. Toda mãe tem um pouco de detetive nela. E o doloroso é que a mesma criança que cresceu para se distanciar tanto já foi a pessoa de quem você estava mais perto – você a carregou dentro de seu próprio corpo. Lilach, como toda mãe, carrega duas almas no peito – ela e seu filho. Ela é uma detetive e uma protetora ao mesmo tempo. Por um lado, quer desesperadamente saber a verdade – seu filho Adam estava envolvido na morte de seu colega muçulmano? Adam matou o garoto que o intimidou? Mas outra parte dela só quer que o filho seja feliz e esteja seguro. Basicamente, Lilach quer proteger Adam, mas a questão é: de quem? Do mal externo ou dele mesmo? Ela busca a verdade, mas está apavorada pelo que pode descobrir. Queremos saber tudo sobre quem amamos ou preferimos permanecer cegos a certos elementos de suas vidas para continuar a amá-los?
Há uma questão sensível sobre bullying, sobre ser a vítima e/ou o agressor e sobre a desconfiança da personagem sobre o que seu filho seria capaz de fazer.
Eu estava interessada na forma como uma vítima se transforma no agressor. Como terapeuta, vejo isso o tempo todo – quando uma criança que foi espancada cresce e se torna um pai espancador. Ou quando uma menina que sofreu bullying começa a agredir outras meninas, de um status mais baixo, para reabilitar sua autoestima. Como israelense, sinto que a história de trauma dos judeus às vezes leva as pessoas em meu país a adotar atitudes agressivas em relação aos palestinos.
O medo acaba se tornando um personagem importante, talvez responsável pelo desenvolvimento dos fatos. É um sentimento ancestral e cada vez mais presente neste mundo polarizado.
O medo é um poder muito dominante na política. E o medo motiva todos os personagens em Outro Lugar. Lilach é uma mulher israelense que está cansada da sociedade machista-militar e se muda para os EUA porque não queria criar seu filho para ser um soldado. Mas, depois de um ataque terrorista a uma sinagoga na Califórnia, ela está assustada – e faz o filho aprender a lutar. Todos os judeus americanos estão em choque e se sentem impotentes. No entanto, por causa da memória coletiva da Shoah, eles nunca mais querem se sentir desamparados. Então aparece o israelense Uri, ensinando as crianças a revidar. Para Adam, isso é muito importante e pela primeira vez na vida ele se sente parte de algo grande, de uma comunidade. Lilach também fica grata no início por Uri cuidar de seu filho. Para a minha geração, o sonho israelense é, na verdade, viver o sonho americano. E há cada vez mais pessoas que pensam que elas e seus filhos estão mais seguros em Palo Alto do que em Tel Aviv.
Leia um trecho de Outro Lugar
“Olho para os dedos pequeninos do bebê que acabou de nascer e tento compreender como é possível que eles cresçam para se tornarem os dedos de um assassino. O menino morto chama-se Jamal Jones. Na foto do jornal, os olhos dele são como veludo negro. Meu filho chama-se Adam Schuster. Os olhos dele são da cor do mar de Tel Aviv. Estão dizendo que ele matou Jamal. Mas isso não é verdade...
(...)
Quando Adam nasceu, nós lhe demos um nome neutro. Um desses que funciona tanto em inglês como em hebraico. Um nome que deslize na garganta dos americanos como um bom vinho da Califórnia e não fique atolado no esôfago, como Lilach e Michael, nomes que nos denunciam no momento em que eles os leem em nossos passaportes - não são daqui. Criamos um filho na América. Nosso israelismo nós guardamos no armário, junto com as taças do futebol que Michael mantém só como lembrança, não porque tenham alguma utilidade. Criamos um menino americano, que foi para o colégio junto com meninos americanos, e agora dizem que ele matou outro menino, americano.”
Outro Lugar
Autora: Ayelet Gundar-Goshen
Trad. Paulo Geiger
Editora: Todavia (288 págs.; R$ 79,90; R$ 49,90 o e-book)
Festival Literário do Museu Judaico de SP
Sueli Carneiro, Nilton Bonder, Noemi Jaffe, Amara Moira, Lira Neto, Timóteo Verá Tupã Popyguá e Ayelet Gundar-Goshen são alguns dos convidados do Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, que será realizado entre quinta, 6, e domingo, 9, com entrada gratuita e ingressos distribuídos plataforma Sympla. Serão debatidas questões como judeidade literária, culturas indígena e judaica, judeidade e negritude, religião e arte e democracia no Brasil.
No sábado, às 18h, Ayelet conversa com Natalia Timerman. Confira, aqui, a programação completa.
O museu fica na Rua Martinho Prado, 128.