É tão difícil ler ‘Ulysses’? Ou é impossível? Especialistas dão dicas para quem quer ler James Joyce


No Bloomsday 2023, o Estadão conversou com Caetano W. Galindo, Dirce Waltrick do Amarante e com Marcelo Tápia sobre a obra que é considerada uma das mais difíceis da literatura

Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:

Ulysses (ou Ulisses), de James Joyce, é um dos mais importantes livros da literatura moderna. Lançada em 1922, a obra, que revolucionou a forma do romance, segue desafiando leitores mais de um século depois de seu lançamento.

A história toda se passa em um único dia - 16 de junho de 1904. Leopold Bloom sai de sua casa pela manhã, em Dublin, cumpre suas obrigações, e volta. Os outros personagens são Molly e Stephen Dedalus. Um dia, em nada menos do que 800 páginas (na edição brasileira mais recente, de 2022).

James Joyce (1882-1941) compôs e escreveu Ulysses entre 1914 e 1921, em 23 endereços diferentes, na Áustria, Suíça, Itália e França. Um livro diferente de tudo o que já havia sido publicado - e que só foi lançado graças à coragem de Sylvia Bleach, proprietária da livraria Shakespeare and Company. Em fevereiro, às vésperas do aniversário de 40 anos do escritor irlandês, os dois únicos exemplares dessa estranha obra foram expostos na vitrine da hoje lendária livraria.

continua após a publicidade
Sylvia Beach com o escritor James Joyce na Shakespeare and Company, em Paris Foto: Noel Riley

Livro diferente. Mas... difícil de ler? “É trabalhoso”, responde Caetano W. Galindo, o mais recente tradutor de Joyce. Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa da obra do autor e tradutora de outros textos dele, diz que é preciso atravessar a barreira do desconhecido. Poeta, diretor da Rede de Museus-Casas Literários e organizador desde 1992 do Bloomsday em São Paulo, Marcelo Tápia, reconhece que o livro pode ser difícil. , ele também diz, “Ulysses permite diversos níveis de leitura”.

continua após a publicidade

Neste Bloomsday, o Estadão perguntou aos três especialistas na obra de James Joyce: É mesmo tão difícil ler Ulysses?, Por que ler o romance e o que o leitor vai encontrar nele? e Quais são as dicas para quem quer começar?

O que você vai ler

  • O que é o Bloomsday
  • O que tem de especial em Ulysses e dicas de especialistas para ler o romance
  • As traduções disponíveis no Brasil
  • Programação do Bloomsday 2023 em São Paulo
continua após a publicidade

O que significa Bloomsday

A primeira vez que se ouviu o nome Bloomsday foi em 1924. O próprio Joyce comentou sobre isso, sobre um grupo de pessoas que tinha se reunido em Dublin, em uma carta enviada à sua mecenas Harriet Weaver. A maior festa do Bloomsday é mesmo em Dublin, onde fãs se fantasiam e passeiam pelos cenários do romance, tomam cerveja no centenário Davy Byrnes Pub e fazem leituras da obra do cultuado autor. Em São Paulo ele é celebrado desde 1988, por iniciativa de Haroldo de Campos, mas há celebrações também em outros lugares, como Florianópolis.

continua após a publicidade

Ulysses ou Ulisses?

Tanto faz. Sempre foi Ulisses, até o lançamento da edição da Companhia das Letras, que optou pela grafia antiga. Muitos joyceanos, como Dirce Waltrick do Amarante, preferem Ulisses.

É difícil ler Ulysses? Ou é impossível?

continua após a publicidade

Caetano Galindo: É trabalhoso. O Ulysses é um livro que não te trata como se você fosse menos do que é. Ele prefere te tratar como se você fosse um pouco mais inteligente do que ACHA que é. E você, com tempo, paciência, e atenção ao que o livro vai ensinando, acaba se descobrindo bem mais inteligente do que pensava.

Marcelo Tápia: Ler Ulysses não só é possível como desejável, pois é um livro fascinante. Oferece dificuldades, sim, mas permite diversos níveis de leitura. Vale a pena dedicar um tempo para lê-lo, é uma experiência marcante, enriquecedora e transformadora. Não é para quem só busca entretenimento, embora seja, também, divertido.

Dirce Waltrick do Amarante: O que seria uma leitura difícil? Na minha opinião, uma leitura difícil é aquela que se faz por obrigação. Mas, é bem verdade que, parafraseando Pierre Bourdieu, só se gosta daquilo que se conhece, de maneira que, em literatura (ou em arte de um modo geral), gostamos do que conseguimos conceituar. Porém, para que isso aconteça, temos que ter certa intimidade com ela, o que só acontece quando conseguimos atravessar a barreira do desconhecido, e essa, sim, é difícil de transpor. Portanto, nosso gosto pela literatura, e aqui mais uma vez concordo com Bourdieu, começa de forma forçada e depois se naturaliza. Então, achamos que já nascemos gostando, por exemplo, de determinados livros, quando na verdade fomos instruídos a gostar deles. Com Ulisses não é diferente.

continua após a publicidade

O fato é que não aprendemos a ler vanguarda na escola. Na escola lemos livros para resumir o enredo e, de preferência, para resumi-lo segundo o que foi apontado no livro didático. Ulisses não dá um enredo de mão beijada para o leitor: esse terá que se esforçar para seguir os passos de Leopold Bloom e de Stephen Dedalus pelas ruas de Dublin. Em determinado momento, ficará tão perdido quanto os dois, como se ele próprio tivesse passado a noite perambulando pelos bordeis da capital Irlandesa. Isso é Joyce, na minha opinião, no seu melhor estilo.

Uma experiência particular: todos os anos leio Ulysses e/ou Finnegans Wake, último romance do escritor, com os alunos de graduação no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina. No começo, eles ficam temerosos, mas depois se divertem. Eles leem em casa e voltam para a sala de aula dizendo que não entenderam “nada”, então, lemos mais uma vez em conjunto, em voz alta, e eles riem muito de algumas passagens, acham espirituosas, mas seguem afirmando que não compreendem o que leem, o que não é verdade, pois se acham engraçado é porque estão conectados com a obra e a entendem de alguma maneira.

O que acontece com Ulisses é que, parece-me, a academia criou o mito daquilo que só pode ser lido se houver ao lado um “ser de luz”, o único capaz de esclarecer a obra para outros mortais. Estudiosos de Joyce mundo afora fariam parte desse Olimpo, mas gosto da ideia de profanação (como explica Giorgio Agamben) e prefiro profanar os romances de Joyce para devolvê-los aos leitores, a quem eles de fato pertencem. Cada leitura da obra-prima de Joyce apresenta um novo romance e essa multiplicidade de romances em um só, a literatura dele sempre oferece.

Por que ler Ulysses? O que o leitor vai encontrar lá?

Primeira edição de Ulysses, de James Joyce, de 1922 Foto: Sotheby's

Caetano Galindo: Talvez a mais profunda e (acima de tudo) mais divertida exploração da consciência humana, em suas esquisitices, dores, verdades e mentiras. Além, claro, de ser uma viagem sem tamanho em termos de invenção formal. Acima de tudo, o leitor ou a leitora vão encontrar, Leopold Bloom, o personagem de romance que vai se tornar seu melhor amigo.

Marcelo Tápia: O Ulysses propicia ao leitor uma vivência intensa: é um livro que parece conter tudo sobre o ser humano, a vida e a morte, embora se passe num único dia. De certo modo, todos os elementos da existência estão lá representados, suscitando emoções e reflexões: amor, traição, sexo, preconceitos, estigmas, fantasia, perversão, delírio, amizade, sofrimento, prazer...

Dirce Waltrick do Amarante: Ulisses tem muitos romances em um só, como disse acima. De modo que em cada nova leitura temos um livro novo, novas conexões se formam, outras se desfazem... O leitor vai encontrar o que lhe interessar. Toda a leitura é autobiográfica. Quanto mais informações ele tiver sobre Joyce, a Irlanda, literatura, filosofia etc. melhor, mas isso não significa que não se possa ou não se deva ler sem todas essas informações prévias. Aliás, essa regra serve para tudo: quanto mais repertório temos, mais conexões conseguimos fazer. Agora, veja só, quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, estreou, os intelectuais não entenderam e repudiaram a obra, a qual foi rapidamente absorvida pelos presidiários de Saint Quentin, na Califórnia. Esses presidiários não tinham o repertório acadêmico dos intelectuais, mas tinham um repertório de vida.

Ulisses tem muito a dizer a nós, brasileiros. Ulisses fala de um país periférico, a Irlanda, e de uma família que representa não só a periférica Irlanda, colônia britânica, mas também os judeus, os bodes expiatórios, e outras minorias. Essa família representa as minorias contra as quais o imperialismo investe. Essas minorias também têm seus preconceitos, não são “santas”: Leopold Bloom, por exemplo, considera a sua mulher pouco inteligente e as mulheres em geral incapazes de fundar um novo “reino”. Já Molly, em troca, despreza a falta de virilidade do marido...

Alguma dica para quem vai começar a ler?

Caetano Galindo: Cabotinismo à parte, o guia Sim, eu digo sim é uma excelente introdução!

(O livro estava esgotado, mas está sendo reimpresso e deve chegar às livrarias em julho)

Marcelo Tápia: Sugiro que cada um leia o livro no seu ritmo, passo a passo, sem se inibir com a sua extensão; afinal, cada capítulo é uma surpresa, no tema e no estilo. O leitor também não deve se preocupar em esgotar, de imediato, todos os sentidos e qualidades que o texto oferece: é possível lê-lo menos profundamente, de início, e depois, se desejar, tomar contato com as muitas informações e interpretações disponíveis sobre a obra, voltando a lê-la de modo a usufruir dela mais plenamente.

Dirce Waltrick do Amarante: Começar a ler com o corpo e o espírito, como dizia Barthes ao conceituar o prazer do texto. Pode pular páginas à vontade e apreciar algumas linhas apenas. Pode começar de trás para a frente. Ler sem se preocupar com uma fórmula de leitura é o mais importante.

Qual é a melhor tradução de Ulysses para o português?

Há três traduções integrais de Ulysses no Brasil e uma quarta no prelo.

Antonio Houaiss: A primeira, de 1966, está no catálogo da Civilização Brasileira. A edição de 2021 tem 812 páginas e custa R$ 99,90 na versão impressa e R$ 39,90 na digital

Bernardina Pinheiro: Publicada em 2005, a tradução de Bernardina pode ser lida hoje num box da Nova Fronteira vendido exclusivamente pela Amazon. No total, ele tem 1.016 páginas e custa R$ 199,90. Também dá para ler em e-book, por R$ 114,99.

Caetano Galindo: Ele lançou sua tradução pela primeira vez em 2012 (Penguin-Companhia; 1.012 páginas; R$ 74,90; R$ R$ 39,90 o e-book) e uma nova edição, com ilustrações de Robert Motherwell, saiu no centenário de Ulysses, em 2022 (Companhia das Letras, R$ 189,90; R$ 49,90 o e-book; ela tem menos páginas porque o formato é maior).

No prelo: A edição da Ateliê era para ter sido lançada em 2022, mas a produção atrasou e não ainda não há previsão. O projeto é ousado. Idealizado e coordenado por Henrique P. Xavier, este ‘novo’ Ulysses tem a proposta não de traduzir, mas de transcriar o romance por meio 18 vozes - de escritores, artistas e joycianos. Veja a seguir quem são eles e o capítulo que traduziram: Aurora Fornoni Bernardini (Telêmaco); Dirce Waltrick do Amarante (Nestor); Julián Fuks (Proteu); Luisa Geisler (Calipso); Guilherme Gontijo Flores (Os Lotófagos); Carlos de Brito e Mello (Hades); João Adolfo Hansen (Éolo); Alípio Correia de Franca Neto (Os Lestrigões); José Roberto O’Shea (Cila e Caribde); Eclair Antônio Almeida Filho (As Rochas Ondulantes); Willy Corrêa de Oliveira (As Sereias); Henrique Piccinato Xavier (O Ciclope); Antonio Quinet (Nausícaa); Élide Valarini Oliver (Gado do Sol); Donaldo Schüler (Circe); Piero Eyben (Eumeu); Denise Bottmann (Ítaca) e Luci Collin (Penélope).

Qual tradução escolher?

Marcelo Tápia ressalta que as três traduções apresentam qualidades distintas e “são trabalhos absolutamente admiráveis”. “No entanto, penso que a mais recente delas, de Caetano W. Galindo, é a mais bem resolvida, resultante de um longo processo de depuração e maturação”.

Dirce Waltrick do Amarante, que integra a edição da Ateliê e é cotradutora, com o Coletivo Finnegans, de Finnegans Rivolta (Ateliê), da segunda tradução na íntegra de Finnegans Wake para o português, também diz que traduções disponíveis são excelentes.

“Como toda a tradução, há perdas e ganhos nas três. Mas, no fim, ganhamos muito com todas. São traduções de épocas diferentes (isso conta muito), com projetos editorais e comerciais diferentes e publicadas por diferentes editoras. Isso ajuda a criar o mito da pior e da melhor tradução, como se a qualidade de uma pudesse ser objetivamente avaliada com base em outra que, como disse, é de uma época diferente. Os três tradutores de Ulisses são altamente qualificados. Isso é o que importa”, disse a tradutora e autora de Metáforas da Tradução.

Programação do Bloomsday 2023

Nesta sexta-feira, 16, o 36º Bloomsday em São Paulo vai ocupar o jardim da Casa das Rosas a partir das 19h e terá como tema A volta para casa - Nostos.

  • Abertura: Marcelo Tápia e representante do Consulado da Irlanda em São Paulo, Mauricio Kinoshita (Cultural Officer)
  • Uma canção irlandesa
  • Breve apresentação sobre Dublin a partir do itinerário percorrido pelo personagem Leopold Bloom na cidade, em 1904
  • A volta para casa – breve referência ao tema do regresso na Odisseia de Homero e no romance Ulysses de Joyce
  • Evocação de Homero: leitura de fragmento do Canto XIV da Odisseia, por Marcelo Tápia
  • Performance baseada no canto XVI da Odisseia, versos 135-191, por Rodrigo Bravo e Vitória Siviero
  • Breve palestra sobre o episódio “Eumeu” do livro Ulysses, por Maria Teresa Quirino
  • Leitura, em diversos idiomas, de fragmentos do capítulo XVI de Ulysses (“Eumeu”), com Alzira Allegro, francês, Aurora Bernardini, Tereza Jardini, Julio Mendonça
  • Leitura de trecho do livro Finnicio Riovém, de Donaldo Schüler, uma adaptação para o público infantojuvenil do romance Finnegans Wake, de Joyce. Schüler comentará a obra e seu processo de criação
  • Apresentação de música irlandesa tradicional pela banda Tunas Celtic Band e pela dançarina Letícia Pires

Casa das Rosas (Av. Paulista, 37), 200 vagas, entrada gratuita, inscrições pelo site.

Ulysses (ou Ulisses), de James Joyce, é um dos mais importantes livros da literatura moderna. Lançada em 1922, a obra, que revolucionou a forma do romance, segue desafiando leitores mais de um século depois de seu lançamento.

A história toda se passa em um único dia - 16 de junho de 1904. Leopold Bloom sai de sua casa pela manhã, em Dublin, cumpre suas obrigações, e volta. Os outros personagens são Molly e Stephen Dedalus. Um dia, em nada menos do que 800 páginas (na edição brasileira mais recente, de 2022).

James Joyce (1882-1941) compôs e escreveu Ulysses entre 1914 e 1921, em 23 endereços diferentes, na Áustria, Suíça, Itália e França. Um livro diferente de tudo o que já havia sido publicado - e que só foi lançado graças à coragem de Sylvia Bleach, proprietária da livraria Shakespeare and Company. Em fevereiro, às vésperas do aniversário de 40 anos do escritor irlandês, os dois únicos exemplares dessa estranha obra foram expostos na vitrine da hoje lendária livraria.

Sylvia Beach com o escritor James Joyce na Shakespeare and Company, em Paris Foto: Noel Riley

Livro diferente. Mas... difícil de ler? “É trabalhoso”, responde Caetano W. Galindo, o mais recente tradutor de Joyce. Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa da obra do autor e tradutora de outros textos dele, diz que é preciso atravessar a barreira do desconhecido. Poeta, diretor da Rede de Museus-Casas Literários e organizador desde 1992 do Bloomsday em São Paulo, Marcelo Tápia, reconhece que o livro pode ser difícil. , ele também diz, “Ulysses permite diversos níveis de leitura”.

Neste Bloomsday, o Estadão perguntou aos três especialistas na obra de James Joyce: É mesmo tão difícil ler Ulysses?, Por que ler o romance e o que o leitor vai encontrar nele? e Quais são as dicas para quem quer começar?

O que você vai ler

  • O que é o Bloomsday
  • O que tem de especial em Ulysses e dicas de especialistas para ler o romance
  • As traduções disponíveis no Brasil
  • Programação do Bloomsday 2023 em São Paulo

O que significa Bloomsday

A primeira vez que se ouviu o nome Bloomsday foi em 1924. O próprio Joyce comentou sobre isso, sobre um grupo de pessoas que tinha se reunido em Dublin, em uma carta enviada à sua mecenas Harriet Weaver. A maior festa do Bloomsday é mesmo em Dublin, onde fãs se fantasiam e passeiam pelos cenários do romance, tomam cerveja no centenário Davy Byrnes Pub e fazem leituras da obra do cultuado autor. Em São Paulo ele é celebrado desde 1988, por iniciativa de Haroldo de Campos, mas há celebrações também em outros lugares, como Florianópolis.

Ulysses ou Ulisses?

Tanto faz. Sempre foi Ulisses, até o lançamento da edição da Companhia das Letras, que optou pela grafia antiga. Muitos joyceanos, como Dirce Waltrick do Amarante, preferem Ulisses.

É difícil ler Ulysses? Ou é impossível?

Caetano Galindo: É trabalhoso. O Ulysses é um livro que não te trata como se você fosse menos do que é. Ele prefere te tratar como se você fosse um pouco mais inteligente do que ACHA que é. E você, com tempo, paciência, e atenção ao que o livro vai ensinando, acaba se descobrindo bem mais inteligente do que pensava.

Marcelo Tápia: Ler Ulysses não só é possível como desejável, pois é um livro fascinante. Oferece dificuldades, sim, mas permite diversos níveis de leitura. Vale a pena dedicar um tempo para lê-lo, é uma experiência marcante, enriquecedora e transformadora. Não é para quem só busca entretenimento, embora seja, também, divertido.

Dirce Waltrick do Amarante: O que seria uma leitura difícil? Na minha opinião, uma leitura difícil é aquela que se faz por obrigação. Mas, é bem verdade que, parafraseando Pierre Bourdieu, só se gosta daquilo que se conhece, de maneira que, em literatura (ou em arte de um modo geral), gostamos do que conseguimos conceituar. Porém, para que isso aconteça, temos que ter certa intimidade com ela, o que só acontece quando conseguimos atravessar a barreira do desconhecido, e essa, sim, é difícil de transpor. Portanto, nosso gosto pela literatura, e aqui mais uma vez concordo com Bourdieu, começa de forma forçada e depois se naturaliza. Então, achamos que já nascemos gostando, por exemplo, de determinados livros, quando na verdade fomos instruídos a gostar deles. Com Ulisses não é diferente.

O fato é que não aprendemos a ler vanguarda na escola. Na escola lemos livros para resumir o enredo e, de preferência, para resumi-lo segundo o que foi apontado no livro didático. Ulisses não dá um enredo de mão beijada para o leitor: esse terá que se esforçar para seguir os passos de Leopold Bloom e de Stephen Dedalus pelas ruas de Dublin. Em determinado momento, ficará tão perdido quanto os dois, como se ele próprio tivesse passado a noite perambulando pelos bordeis da capital Irlandesa. Isso é Joyce, na minha opinião, no seu melhor estilo.

Uma experiência particular: todos os anos leio Ulysses e/ou Finnegans Wake, último romance do escritor, com os alunos de graduação no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina. No começo, eles ficam temerosos, mas depois se divertem. Eles leem em casa e voltam para a sala de aula dizendo que não entenderam “nada”, então, lemos mais uma vez em conjunto, em voz alta, e eles riem muito de algumas passagens, acham espirituosas, mas seguem afirmando que não compreendem o que leem, o que não é verdade, pois se acham engraçado é porque estão conectados com a obra e a entendem de alguma maneira.

O que acontece com Ulisses é que, parece-me, a academia criou o mito daquilo que só pode ser lido se houver ao lado um “ser de luz”, o único capaz de esclarecer a obra para outros mortais. Estudiosos de Joyce mundo afora fariam parte desse Olimpo, mas gosto da ideia de profanação (como explica Giorgio Agamben) e prefiro profanar os romances de Joyce para devolvê-los aos leitores, a quem eles de fato pertencem. Cada leitura da obra-prima de Joyce apresenta um novo romance e essa multiplicidade de romances em um só, a literatura dele sempre oferece.

Por que ler Ulysses? O que o leitor vai encontrar lá?

Primeira edição de Ulysses, de James Joyce, de 1922 Foto: Sotheby's

Caetano Galindo: Talvez a mais profunda e (acima de tudo) mais divertida exploração da consciência humana, em suas esquisitices, dores, verdades e mentiras. Além, claro, de ser uma viagem sem tamanho em termos de invenção formal. Acima de tudo, o leitor ou a leitora vão encontrar, Leopold Bloom, o personagem de romance que vai se tornar seu melhor amigo.

Marcelo Tápia: O Ulysses propicia ao leitor uma vivência intensa: é um livro que parece conter tudo sobre o ser humano, a vida e a morte, embora se passe num único dia. De certo modo, todos os elementos da existência estão lá representados, suscitando emoções e reflexões: amor, traição, sexo, preconceitos, estigmas, fantasia, perversão, delírio, amizade, sofrimento, prazer...

Dirce Waltrick do Amarante: Ulisses tem muitos romances em um só, como disse acima. De modo que em cada nova leitura temos um livro novo, novas conexões se formam, outras se desfazem... O leitor vai encontrar o que lhe interessar. Toda a leitura é autobiográfica. Quanto mais informações ele tiver sobre Joyce, a Irlanda, literatura, filosofia etc. melhor, mas isso não significa que não se possa ou não se deva ler sem todas essas informações prévias. Aliás, essa regra serve para tudo: quanto mais repertório temos, mais conexões conseguimos fazer. Agora, veja só, quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, estreou, os intelectuais não entenderam e repudiaram a obra, a qual foi rapidamente absorvida pelos presidiários de Saint Quentin, na Califórnia. Esses presidiários não tinham o repertório acadêmico dos intelectuais, mas tinham um repertório de vida.

Ulisses tem muito a dizer a nós, brasileiros. Ulisses fala de um país periférico, a Irlanda, e de uma família que representa não só a periférica Irlanda, colônia britânica, mas também os judeus, os bodes expiatórios, e outras minorias. Essa família representa as minorias contra as quais o imperialismo investe. Essas minorias também têm seus preconceitos, não são “santas”: Leopold Bloom, por exemplo, considera a sua mulher pouco inteligente e as mulheres em geral incapazes de fundar um novo “reino”. Já Molly, em troca, despreza a falta de virilidade do marido...

Alguma dica para quem vai começar a ler?

Caetano Galindo: Cabotinismo à parte, o guia Sim, eu digo sim é uma excelente introdução!

(O livro estava esgotado, mas está sendo reimpresso e deve chegar às livrarias em julho)

Marcelo Tápia: Sugiro que cada um leia o livro no seu ritmo, passo a passo, sem se inibir com a sua extensão; afinal, cada capítulo é uma surpresa, no tema e no estilo. O leitor também não deve se preocupar em esgotar, de imediato, todos os sentidos e qualidades que o texto oferece: é possível lê-lo menos profundamente, de início, e depois, se desejar, tomar contato com as muitas informações e interpretações disponíveis sobre a obra, voltando a lê-la de modo a usufruir dela mais plenamente.

Dirce Waltrick do Amarante: Começar a ler com o corpo e o espírito, como dizia Barthes ao conceituar o prazer do texto. Pode pular páginas à vontade e apreciar algumas linhas apenas. Pode começar de trás para a frente. Ler sem se preocupar com uma fórmula de leitura é o mais importante.

Qual é a melhor tradução de Ulysses para o português?

Há três traduções integrais de Ulysses no Brasil e uma quarta no prelo.

Antonio Houaiss: A primeira, de 1966, está no catálogo da Civilização Brasileira. A edição de 2021 tem 812 páginas e custa R$ 99,90 na versão impressa e R$ 39,90 na digital

Bernardina Pinheiro: Publicada em 2005, a tradução de Bernardina pode ser lida hoje num box da Nova Fronteira vendido exclusivamente pela Amazon. No total, ele tem 1.016 páginas e custa R$ 199,90. Também dá para ler em e-book, por R$ 114,99.

Caetano Galindo: Ele lançou sua tradução pela primeira vez em 2012 (Penguin-Companhia; 1.012 páginas; R$ 74,90; R$ R$ 39,90 o e-book) e uma nova edição, com ilustrações de Robert Motherwell, saiu no centenário de Ulysses, em 2022 (Companhia das Letras, R$ 189,90; R$ 49,90 o e-book; ela tem menos páginas porque o formato é maior).

No prelo: A edição da Ateliê era para ter sido lançada em 2022, mas a produção atrasou e não ainda não há previsão. O projeto é ousado. Idealizado e coordenado por Henrique P. Xavier, este ‘novo’ Ulysses tem a proposta não de traduzir, mas de transcriar o romance por meio 18 vozes - de escritores, artistas e joycianos. Veja a seguir quem são eles e o capítulo que traduziram: Aurora Fornoni Bernardini (Telêmaco); Dirce Waltrick do Amarante (Nestor); Julián Fuks (Proteu); Luisa Geisler (Calipso); Guilherme Gontijo Flores (Os Lotófagos); Carlos de Brito e Mello (Hades); João Adolfo Hansen (Éolo); Alípio Correia de Franca Neto (Os Lestrigões); José Roberto O’Shea (Cila e Caribde); Eclair Antônio Almeida Filho (As Rochas Ondulantes); Willy Corrêa de Oliveira (As Sereias); Henrique Piccinato Xavier (O Ciclope); Antonio Quinet (Nausícaa); Élide Valarini Oliver (Gado do Sol); Donaldo Schüler (Circe); Piero Eyben (Eumeu); Denise Bottmann (Ítaca) e Luci Collin (Penélope).

Qual tradução escolher?

Marcelo Tápia ressalta que as três traduções apresentam qualidades distintas e “são trabalhos absolutamente admiráveis”. “No entanto, penso que a mais recente delas, de Caetano W. Galindo, é a mais bem resolvida, resultante de um longo processo de depuração e maturação”.

Dirce Waltrick do Amarante, que integra a edição da Ateliê e é cotradutora, com o Coletivo Finnegans, de Finnegans Rivolta (Ateliê), da segunda tradução na íntegra de Finnegans Wake para o português, também diz que traduções disponíveis são excelentes.

“Como toda a tradução, há perdas e ganhos nas três. Mas, no fim, ganhamos muito com todas. São traduções de épocas diferentes (isso conta muito), com projetos editorais e comerciais diferentes e publicadas por diferentes editoras. Isso ajuda a criar o mito da pior e da melhor tradução, como se a qualidade de uma pudesse ser objetivamente avaliada com base em outra que, como disse, é de uma época diferente. Os três tradutores de Ulisses são altamente qualificados. Isso é o que importa”, disse a tradutora e autora de Metáforas da Tradução.

Programação do Bloomsday 2023

Nesta sexta-feira, 16, o 36º Bloomsday em São Paulo vai ocupar o jardim da Casa das Rosas a partir das 19h e terá como tema A volta para casa - Nostos.

  • Abertura: Marcelo Tápia e representante do Consulado da Irlanda em São Paulo, Mauricio Kinoshita (Cultural Officer)
  • Uma canção irlandesa
  • Breve apresentação sobre Dublin a partir do itinerário percorrido pelo personagem Leopold Bloom na cidade, em 1904
  • A volta para casa – breve referência ao tema do regresso na Odisseia de Homero e no romance Ulysses de Joyce
  • Evocação de Homero: leitura de fragmento do Canto XIV da Odisseia, por Marcelo Tápia
  • Performance baseada no canto XVI da Odisseia, versos 135-191, por Rodrigo Bravo e Vitória Siviero
  • Breve palestra sobre o episódio “Eumeu” do livro Ulysses, por Maria Teresa Quirino
  • Leitura, em diversos idiomas, de fragmentos do capítulo XVI de Ulysses (“Eumeu”), com Alzira Allegro, francês, Aurora Bernardini, Tereza Jardini, Julio Mendonça
  • Leitura de trecho do livro Finnicio Riovém, de Donaldo Schüler, uma adaptação para o público infantojuvenil do romance Finnegans Wake, de Joyce. Schüler comentará a obra e seu processo de criação
  • Apresentação de música irlandesa tradicional pela banda Tunas Celtic Band e pela dançarina Letícia Pires

Casa das Rosas (Av. Paulista, 37), 200 vagas, entrada gratuita, inscrições pelo site.

Ulysses (ou Ulisses), de James Joyce, é um dos mais importantes livros da literatura moderna. Lançada em 1922, a obra, que revolucionou a forma do romance, segue desafiando leitores mais de um século depois de seu lançamento.

A história toda se passa em um único dia - 16 de junho de 1904. Leopold Bloom sai de sua casa pela manhã, em Dublin, cumpre suas obrigações, e volta. Os outros personagens são Molly e Stephen Dedalus. Um dia, em nada menos do que 800 páginas (na edição brasileira mais recente, de 2022).

James Joyce (1882-1941) compôs e escreveu Ulysses entre 1914 e 1921, em 23 endereços diferentes, na Áustria, Suíça, Itália e França. Um livro diferente de tudo o que já havia sido publicado - e que só foi lançado graças à coragem de Sylvia Bleach, proprietária da livraria Shakespeare and Company. Em fevereiro, às vésperas do aniversário de 40 anos do escritor irlandês, os dois únicos exemplares dessa estranha obra foram expostos na vitrine da hoje lendária livraria.

Sylvia Beach com o escritor James Joyce na Shakespeare and Company, em Paris Foto: Noel Riley

Livro diferente. Mas... difícil de ler? “É trabalhoso”, responde Caetano W. Galindo, o mais recente tradutor de Joyce. Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa da obra do autor e tradutora de outros textos dele, diz que é preciso atravessar a barreira do desconhecido. Poeta, diretor da Rede de Museus-Casas Literários e organizador desde 1992 do Bloomsday em São Paulo, Marcelo Tápia, reconhece que o livro pode ser difícil. , ele também diz, “Ulysses permite diversos níveis de leitura”.

Neste Bloomsday, o Estadão perguntou aos três especialistas na obra de James Joyce: É mesmo tão difícil ler Ulysses?, Por que ler o romance e o que o leitor vai encontrar nele? e Quais são as dicas para quem quer começar?

O que você vai ler

  • O que é o Bloomsday
  • O que tem de especial em Ulysses e dicas de especialistas para ler o romance
  • As traduções disponíveis no Brasil
  • Programação do Bloomsday 2023 em São Paulo

O que significa Bloomsday

A primeira vez que se ouviu o nome Bloomsday foi em 1924. O próprio Joyce comentou sobre isso, sobre um grupo de pessoas que tinha se reunido em Dublin, em uma carta enviada à sua mecenas Harriet Weaver. A maior festa do Bloomsday é mesmo em Dublin, onde fãs se fantasiam e passeiam pelos cenários do romance, tomam cerveja no centenário Davy Byrnes Pub e fazem leituras da obra do cultuado autor. Em São Paulo ele é celebrado desde 1988, por iniciativa de Haroldo de Campos, mas há celebrações também em outros lugares, como Florianópolis.

Ulysses ou Ulisses?

Tanto faz. Sempre foi Ulisses, até o lançamento da edição da Companhia das Letras, que optou pela grafia antiga. Muitos joyceanos, como Dirce Waltrick do Amarante, preferem Ulisses.

É difícil ler Ulysses? Ou é impossível?

Caetano Galindo: É trabalhoso. O Ulysses é um livro que não te trata como se você fosse menos do que é. Ele prefere te tratar como se você fosse um pouco mais inteligente do que ACHA que é. E você, com tempo, paciência, e atenção ao que o livro vai ensinando, acaba se descobrindo bem mais inteligente do que pensava.

Marcelo Tápia: Ler Ulysses não só é possível como desejável, pois é um livro fascinante. Oferece dificuldades, sim, mas permite diversos níveis de leitura. Vale a pena dedicar um tempo para lê-lo, é uma experiência marcante, enriquecedora e transformadora. Não é para quem só busca entretenimento, embora seja, também, divertido.

Dirce Waltrick do Amarante: O que seria uma leitura difícil? Na minha opinião, uma leitura difícil é aquela que se faz por obrigação. Mas, é bem verdade que, parafraseando Pierre Bourdieu, só se gosta daquilo que se conhece, de maneira que, em literatura (ou em arte de um modo geral), gostamos do que conseguimos conceituar. Porém, para que isso aconteça, temos que ter certa intimidade com ela, o que só acontece quando conseguimos atravessar a barreira do desconhecido, e essa, sim, é difícil de transpor. Portanto, nosso gosto pela literatura, e aqui mais uma vez concordo com Bourdieu, começa de forma forçada e depois se naturaliza. Então, achamos que já nascemos gostando, por exemplo, de determinados livros, quando na verdade fomos instruídos a gostar deles. Com Ulisses não é diferente.

O fato é que não aprendemos a ler vanguarda na escola. Na escola lemos livros para resumir o enredo e, de preferência, para resumi-lo segundo o que foi apontado no livro didático. Ulisses não dá um enredo de mão beijada para o leitor: esse terá que se esforçar para seguir os passos de Leopold Bloom e de Stephen Dedalus pelas ruas de Dublin. Em determinado momento, ficará tão perdido quanto os dois, como se ele próprio tivesse passado a noite perambulando pelos bordeis da capital Irlandesa. Isso é Joyce, na minha opinião, no seu melhor estilo.

Uma experiência particular: todos os anos leio Ulysses e/ou Finnegans Wake, último romance do escritor, com os alunos de graduação no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina. No começo, eles ficam temerosos, mas depois se divertem. Eles leem em casa e voltam para a sala de aula dizendo que não entenderam “nada”, então, lemos mais uma vez em conjunto, em voz alta, e eles riem muito de algumas passagens, acham espirituosas, mas seguem afirmando que não compreendem o que leem, o que não é verdade, pois se acham engraçado é porque estão conectados com a obra e a entendem de alguma maneira.

O que acontece com Ulisses é que, parece-me, a academia criou o mito daquilo que só pode ser lido se houver ao lado um “ser de luz”, o único capaz de esclarecer a obra para outros mortais. Estudiosos de Joyce mundo afora fariam parte desse Olimpo, mas gosto da ideia de profanação (como explica Giorgio Agamben) e prefiro profanar os romances de Joyce para devolvê-los aos leitores, a quem eles de fato pertencem. Cada leitura da obra-prima de Joyce apresenta um novo romance e essa multiplicidade de romances em um só, a literatura dele sempre oferece.

Por que ler Ulysses? O que o leitor vai encontrar lá?

Primeira edição de Ulysses, de James Joyce, de 1922 Foto: Sotheby's

Caetano Galindo: Talvez a mais profunda e (acima de tudo) mais divertida exploração da consciência humana, em suas esquisitices, dores, verdades e mentiras. Além, claro, de ser uma viagem sem tamanho em termos de invenção formal. Acima de tudo, o leitor ou a leitora vão encontrar, Leopold Bloom, o personagem de romance que vai se tornar seu melhor amigo.

Marcelo Tápia: O Ulysses propicia ao leitor uma vivência intensa: é um livro que parece conter tudo sobre o ser humano, a vida e a morte, embora se passe num único dia. De certo modo, todos os elementos da existência estão lá representados, suscitando emoções e reflexões: amor, traição, sexo, preconceitos, estigmas, fantasia, perversão, delírio, amizade, sofrimento, prazer...

Dirce Waltrick do Amarante: Ulisses tem muitos romances em um só, como disse acima. De modo que em cada nova leitura temos um livro novo, novas conexões se formam, outras se desfazem... O leitor vai encontrar o que lhe interessar. Toda a leitura é autobiográfica. Quanto mais informações ele tiver sobre Joyce, a Irlanda, literatura, filosofia etc. melhor, mas isso não significa que não se possa ou não se deva ler sem todas essas informações prévias. Aliás, essa regra serve para tudo: quanto mais repertório temos, mais conexões conseguimos fazer. Agora, veja só, quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, estreou, os intelectuais não entenderam e repudiaram a obra, a qual foi rapidamente absorvida pelos presidiários de Saint Quentin, na Califórnia. Esses presidiários não tinham o repertório acadêmico dos intelectuais, mas tinham um repertório de vida.

Ulisses tem muito a dizer a nós, brasileiros. Ulisses fala de um país periférico, a Irlanda, e de uma família que representa não só a periférica Irlanda, colônia britânica, mas também os judeus, os bodes expiatórios, e outras minorias. Essa família representa as minorias contra as quais o imperialismo investe. Essas minorias também têm seus preconceitos, não são “santas”: Leopold Bloom, por exemplo, considera a sua mulher pouco inteligente e as mulheres em geral incapazes de fundar um novo “reino”. Já Molly, em troca, despreza a falta de virilidade do marido...

Alguma dica para quem vai começar a ler?

Caetano Galindo: Cabotinismo à parte, o guia Sim, eu digo sim é uma excelente introdução!

(O livro estava esgotado, mas está sendo reimpresso e deve chegar às livrarias em julho)

Marcelo Tápia: Sugiro que cada um leia o livro no seu ritmo, passo a passo, sem se inibir com a sua extensão; afinal, cada capítulo é uma surpresa, no tema e no estilo. O leitor também não deve se preocupar em esgotar, de imediato, todos os sentidos e qualidades que o texto oferece: é possível lê-lo menos profundamente, de início, e depois, se desejar, tomar contato com as muitas informações e interpretações disponíveis sobre a obra, voltando a lê-la de modo a usufruir dela mais plenamente.

Dirce Waltrick do Amarante: Começar a ler com o corpo e o espírito, como dizia Barthes ao conceituar o prazer do texto. Pode pular páginas à vontade e apreciar algumas linhas apenas. Pode começar de trás para a frente. Ler sem se preocupar com uma fórmula de leitura é o mais importante.

Qual é a melhor tradução de Ulysses para o português?

Há três traduções integrais de Ulysses no Brasil e uma quarta no prelo.

Antonio Houaiss: A primeira, de 1966, está no catálogo da Civilização Brasileira. A edição de 2021 tem 812 páginas e custa R$ 99,90 na versão impressa e R$ 39,90 na digital

Bernardina Pinheiro: Publicada em 2005, a tradução de Bernardina pode ser lida hoje num box da Nova Fronteira vendido exclusivamente pela Amazon. No total, ele tem 1.016 páginas e custa R$ 199,90. Também dá para ler em e-book, por R$ 114,99.

Caetano Galindo: Ele lançou sua tradução pela primeira vez em 2012 (Penguin-Companhia; 1.012 páginas; R$ 74,90; R$ R$ 39,90 o e-book) e uma nova edição, com ilustrações de Robert Motherwell, saiu no centenário de Ulysses, em 2022 (Companhia das Letras, R$ 189,90; R$ 49,90 o e-book; ela tem menos páginas porque o formato é maior).

No prelo: A edição da Ateliê era para ter sido lançada em 2022, mas a produção atrasou e não ainda não há previsão. O projeto é ousado. Idealizado e coordenado por Henrique P. Xavier, este ‘novo’ Ulysses tem a proposta não de traduzir, mas de transcriar o romance por meio 18 vozes - de escritores, artistas e joycianos. Veja a seguir quem são eles e o capítulo que traduziram: Aurora Fornoni Bernardini (Telêmaco); Dirce Waltrick do Amarante (Nestor); Julián Fuks (Proteu); Luisa Geisler (Calipso); Guilherme Gontijo Flores (Os Lotófagos); Carlos de Brito e Mello (Hades); João Adolfo Hansen (Éolo); Alípio Correia de Franca Neto (Os Lestrigões); José Roberto O’Shea (Cila e Caribde); Eclair Antônio Almeida Filho (As Rochas Ondulantes); Willy Corrêa de Oliveira (As Sereias); Henrique Piccinato Xavier (O Ciclope); Antonio Quinet (Nausícaa); Élide Valarini Oliver (Gado do Sol); Donaldo Schüler (Circe); Piero Eyben (Eumeu); Denise Bottmann (Ítaca) e Luci Collin (Penélope).

Qual tradução escolher?

Marcelo Tápia ressalta que as três traduções apresentam qualidades distintas e “são trabalhos absolutamente admiráveis”. “No entanto, penso que a mais recente delas, de Caetano W. Galindo, é a mais bem resolvida, resultante de um longo processo de depuração e maturação”.

Dirce Waltrick do Amarante, que integra a edição da Ateliê e é cotradutora, com o Coletivo Finnegans, de Finnegans Rivolta (Ateliê), da segunda tradução na íntegra de Finnegans Wake para o português, também diz que traduções disponíveis são excelentes.

“Como toda a tradução, há perdas e ganhos nas três. Mas, no fim, ganhamos muito com todas. São traduções de épocas diferentes (isso conta muito), com projetos editorais e comerciais diferentes e publicadas por diferentes editoras. Isso ajuda a criar o mito da pior e da melhor tradução, como se a qualidade de uma pudesse ser objetivamente avaliada com base em outra que, como disse, é de uma época diferente. Os três tradutores de Ulisses são altamente qualificados. Isso é o que importa”, disse a tradutora e autora de Metáforas da Tradução.

Programação do Bloomsday 2023

Nesta sexta-feira, 16, o 36º Bloomsday em São Paulo vai ocupar o jardim da Casa das Rosas a partir das 19h e terá como tema A volta para casa - Nostos.

  • Abertura: Marcelo Tápia e representante do Consulado da Irlanda em São Paulo, Mauricio Kinoshita (Cultural Officer)
  • Uma canção irlandesa
  • Breve apresentação sobre Dublin a partir do itinerário percorrido pelo personagem Leopold Bloom na cidade, em 1904
  • A volta para casa – breve referência ao tema do regresso na Odisseia de Homero e no romance Ulysses de Joyce
  • Evocação de Homero: leitura de fragmento do Canto XIV da Odisseia, por Marcelo Tápia
  • Performance baseada no canto XVI da Odisseia, versos 135-191, por Rodrigo Bravo e Vitória Siviero
  • Breve palestra sobre o episódio “Eumeu” do livro Ulysses, por Maria Teresa Quirino
  • Leitura, em diversos idiomas, de fragmentos do capítulo XVI de Ulysses (“Eumeu”), com Alzira Allegro, francês, Aurora Bernardini, Tereza Jardini, Julio Mendonça
  • Leitura de trecho do livro Finnicio Riovém, de Donaldo Schüler, uma adaptação para o público infantojuvenil do romance Finnegans Wake, de Joyce. Schüler comentará a obra e seu processo de criação
  • Apresentação de música irlandesa tradicional pela banda Tunas Celtic Band e pela dançarina Letícia Pires

Casa das Rosas (Av. Paulista, 37), 200 vagas, entrada gratuita, inscrições pelo site.

Ulysses (ou Ulisses), de James Joyce, é um dos mais importantes livros da literatura moderna. Lançada em 1922, a obra, que revolucionou a forma do romance, segue desafiando leitores mais de um século depois de seu lançamento.

A história toda se passa em um único dia - 16 de junho de 1904. Leopold Bloom sai de sua casa pela manhã, em Dublin, cumpre suas obrigações, e volta. Os outros personagens são Molly e Stephen Dedalus. Um dia, em nada menos do que 800 páginas (na edição brasileira mais recente, de 2022).

James Joyce (1882-1941) compôs e escreveu Ulysses entre 1914 e 1921, em 23 endereços diferentes, na Áustria, Suíça, Itália e França. Um livro diferente de tudo o que já havia sido publicado - e que só foi lançado graças à coragem de Sylvia Bleach, proprietária da livraria Shakespeare and Company. Em fevereiro, às vésperas do aniversário de 40 anos do escritor irlandês, os dois únicos exemplares dessa estranha obra foram expostos na vitrine da hoje lendária livraria.

Sylvia Beach com o escritor James Joyce na Shakespeare and Company, em Paris Foto: Noel Riley

Livro diferente. Mas... difícil de ler? “É trabalhoso”, responde Caetano W. Galindo, o mais recente tradutor de Joyce. Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa da obra do autor e tradutora de outros textos dele, diz que é preciso atravessar a barreira do desconhecido. Poeta, diretor da Rede de Museus-Casas Literários e organizador desde 1992 do Bloomsday em São Paulo, Marcelo Tápia, reconhece que o livro pode ser difícil. , ele também diz, “Ulysses permite diversos níveis de leitura”.

Neste Bloomsday, o Estadão perguntou aos três especialistas na obra de James Joyce: É mesmo tão difícil ler Ulysses?, Por que ler o romance e o que o leitor vai encontrar nele? e Quais são as dicas para quem quer começar?

O que você vai ler

  • O que é o Bloomsday
  • O que tem de especial em Ulysses e dicas de especialistas para ler o romance
  • As traduções disponíveis no Brasil
  • Programação do Bloomsday 2023 em São Paulo

O que significa Bloomsday

A primeira vez que se ouviu o nome Bloomsday foi em 1924. O próprio Joyce comentou sobre isso, sobre um grupo de pessoas que tinha se reunido em Dublin, em uma carta enviada à sua mecenas Harriet Weaver. A maior festa do Bloomsday é mesmo em Dublin, onde fãs se fantasiam e passeiam pelos cenários do romance, tomam cerveja no centenário Davy Byrnes Pub e fazem leituras da obra do cultuado autor. Em São Paulo ele é celebrado desde 1988, por iniciativa de Haroldo de Campos, mas há celebrações também em outros lugares, como Florianópolis.

Ulysses ou Ulisses?

Tanto faz. Sempre foi Ulisses, até o lançamento da edição da Companhia das Letras, que optou pela grafia antiga. Muitos joyceanos, como Dirce Waltrick do Amarante, preferem Ulisses.

É difícil ler Ulysses? Ou é impossível?

Caetano Galindo: É trabalhoso. O Ulysses é um livro que não te trata como se você fosse menos do que é. Ele prefere te tratar como se você fosse um pouco mais inteligente do que ACHA que é. E você, com tempo, paciência, e atenção ao que o livro vai ensinando, acaba se descobrindo bem mais inteligente do que pensava.

Marcelo Tápia: Ler Ulysses não só é possível como desejável, pois é um livro fascinante. Oferece dificuldades, sim, mas permite diversos níveis de leitura. Vale a pena dedicar um tempo para lê-lo, é uma experiência marcante, enriquecedora e transformadora. Não é para quem só busca entretenimento, embora seja, também, divertido.

Dirce Waltrick do Amarante: O que seria uma leitura difícil? Na minha opinião, uma leitura difícil é aquela que se faz por obrigação. Mas, é bem verdade que, parafraseando Pierre Bourdieu, só se gosta daquilo que se conhece, de maneira que, em literatura (ou em arte de um modo geral), gostamos do que conseguimos conceituar. Porém, para que isso aconteça, temos que ter certa intimidade com ela, o que só acontece quando conseguimos atravessar a barreira do desconhecido, e essa, sim, é difícil de transpor. Portanto, nosso gosto pela literatura, e aqui mais uma vez concordo com Bourdieu, começa de forma forçada e depois se naturaliza. Então, achamos que já nascemos gostando, por exemplo, de determinados livros, quando na verdade fomos instruídos a gostar deles. Com Ulisses não é diferente.

O fato é que não aprendemos a ler vanguarda na escola. Na escola lemos livros para resumir o enredo e, de preferência, para resumi-lo segundo o que foi apontado no livro didático. Ulisses não dá um enredo de mão beijada para o leitor: esse terá que se esforçar para seguir os passos de Leopold Bloom e de Stephen Dedalus pelas ruas de Dublin. Em determinado momento, ficará tão perdido quanto os dois, como se ele próprio tivesse passado a noite perambulando pelos bordeis da capital Irlandesa. Isso é Joyce, na minha opinião, no seu melhor estilo.

Uma experiência particular: todos os anos leio Ulysses e/ou Finnegans Wake, último romance do escritor, com os alunos de graduação no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina. No começo, eles ficam temerosos, mas depois se divertem. Eles leem em casa e voltam para a sala de aula dizendo que não entenderam “nada”, então, lemos mais uma vez em conjunto, em voz alta, e eles riem muito de algumas passagens, acham espirituosas, mas seguem afirmando que não compreendem o que leem, o que não é verdade, pois se acham engraçado é porque estão conectados com a obra e a entendem de alguma maneira.

O que acontece com Ulisses é que, parece-me, a academia criou o mito daquilo que só pode ser lido se houver ao lado um “ser de luz”, o único capaz de esclarecer a obra para outros mortais. Estudiosos de Joyce mundo afora fariam parte desse Olimpo, mas gosto da ideia de profanação (como explica Giorgio Agamben) e prefiro profanar os romances de Joyce para devolvê-los aos leitores, a quem eles de fato pertencem. Cada leitura da obra-prima de Joyce apresenta um novo romance e essa multiplicidade de romances em um só, a literatura dele sempre oferece.

Por que ler Ulysses? O que o leitor vai encontrar lá?

Primeira edição de Ulysses, de James Joyce, de 1922 Foto: Sotheby's

Caetano Galindo: Talvez a mais profunda e (acima de tudo) mais divertida exploração da consciência humana, em suas esquisitices, dores, verdades e mentiras. Além, claro, de ser uma viagem sem tamanho em termos de invenção formal. Acima de tudo, o leitor ou a leitora vão encontrar, Leopold Bloom, o personagem de romance que vai se tornar seu melhor amigo.

Marcelo Tápia: O Ulysses propicia ao leitor uma vivência intensa: é um livro que parece conter tudo sobre o ser humano, a vida e a morte, embora se passe num único dia. De certo modo, todos os elementos da existência estão lá representados, suscitando emoções e reflexões: amor, traição, sexo, preconceitos, estigmas, fantasia, perversão, delírio, amizade, sofrimento, prazer...

Dirce Waltrick do Amarante: Ulisses tem muitos romances em um só, como disse acima. De modo que em cada nova leitura temos um livro novo, novas conexões se formam, outras se desfazem... O leitor vai encontrar o que lhe interessar. Toda a leitura é autobiográfica. Quanto mais informações ele tiver sobre Joyce, a Irlanda, literatura, filosofia etc. melhor, mas isso não significa que não se possa ou não se deva ler sem todas essas informações prévias. Aliás, essa regra serve para tudo: quanto mais repertório temos, mais conexões conseguimos fazer. Agora, veja só, quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, estreou, os intelectuais não entenderam e repudiaram a obra, a qual foi rapidamente absorvida pelos presidiários de Saint Quentin, na Califórnia. Esses presidiários não tinham o repertório acadêmico dos intelectuais, mas tinham um repertório de vida.

Ulisses tem muito a dizer a nós, brasileiros. Ulisses fala de um país periférico, a Irlanda, e de uma família que representa não só a periférica Irlanda, colônia britânica, mas também os judeus, os bodes expiatórios, e outras minorias. Essa família representa as minorias contra as quais o imperialismo investe. Essas minorias também têm seus preconceitos, não são “santas”: Leopold Bloom, por exemplo, considera a sua mulher pouco inteligente e as mulheres em geral incapazes de fundar um novo “reino”. Já Molly, em troca, despreza a falta de virilidade do marido...

Alguma dica para quem vai começar a ler?

Caetano Galindo: Cabotinismo à parte, o guia Sim, eu digo sim é uma excelente introdução!

(O livro estava esgotado, mas está sendo reimpresso e deve chegar às livrarias em julho)

Marcelo Tápia: Sugiro que cada um leia o livro no seu ritmo, passo a passo, sem se inibir com a sua extensão; afinal, cada capítulo é uma surpresa, no tema e no estilo. O leitor também não deve se preocupar em esgotar, de imediato, todos os sentidos e qualidades que o texto oferece: é possível lê-lo menos profundamente, de início, e depois, se desejar, tomar contato com as muitas informações e interpretações disponíveis sobre a obra, voltando a lê-la de modo a usufruir dela mais plenamente.

Dirce Waltrick do Amarante: Começar a ler com o corpo e o espírito, como dizia Barthes ao conceituar o prazer do texto. Pode pular páginas à vontade e apreciar algumas linhas apenas. Pode começar de trás para a frente. Ler sem se preocupar com uma fórmula de leitura é o mais importante.

Qual é a melhor tradução de Ulysses para o português?

Há três traduções integrais de Ulysses no Brasil e uma quarta no prelo.

Antonio Houaiss: A primeira, de 1966, está no catálogo da Civilização Brasileira. A edição de 2021 tem 812 páginas e custa R$ 99,90 na versão impressa e R$ 39,90 na digital

Bernardina Pinheiro: Publicada em 2005, a tradução de Bernardina pode ser lida hoje num box da Nova Fronteira vendido exclusivamente pela Amazon. No total, ele tem 1.016 páginas e custa R$ 199,90. Também dá para ler em e-book, por R$ 114,99.

Caetano Galindo: Ele lançou sua tradução pela primeira vez em 2012 (Penguin-Companhia; 1.012 páginas; R$ 74,90; R$ R$ 39,90 o e-book) e uma nova edição, com ilustrações de Robert Motherwell, saiu no centenário de Ulysses, em 2022 (Companhia das Letras, R$ 189,90; R$ 49,90 o e-book; ela tem menos páginas porque o formato é maior).

No prelo: A edição da Ateliê era para ter sido lançada em 2022, mas a produção atrasou e não ainda não há previsão. O projeto é ousado. Idealizado e coordenado por Henrique P. Xavier, este ‘novo’ Ulysses tem a proposta não de traduzir, mas de transcriar o romance por meio 18 vozes - de escritores, artistas e joycianos. Veja a seguir quem são eles e o capítulo que traduziram: Aurora Fornoni Bernardini (Telêmaco); Dirce Waltrick do Amarante (Nestor); Julián Fuks (Proteu); Luisa Geisler (Calipso); Guilherme Gontijo Flores (Os Lotófagos); Carlos de Brito e Mello (Hades); João Adolfo Hansen (Éolo); Alípio Correia de Franca Neto (Os Lestrigões); José Roberto O’Shea (Cila e Caribde); Eclair Antônio Almeida Filho (As Rochas Ondulantes); Willy Corrêa de Oliveira (As Sereias); Henrique Piccinato Xavier (O Ciclope); Antonio Quinet (Nausícaa); Élide Valarini Oliver (Gado do Sol); Donaldo Schüler (Circe); Piero Eyben (Eumeu); Denise Bottmann (Ítaca) e Luci Collin (Penélope).

Qual tradução escolher?

Marcelo Tápia ressalta que as três traduções apresentam qualidades distintas e “são trabalhos absolutamente admiráveis”. “No entanto, penso que a mais recente delas, de Caetano W. Galindo, é a mais bem resolvida, resultante de um longo processo de depuração e maturação”.

Dirce Waltrick do Amarante, que integra a edição da Ateliê e é cotradutora, com o Coletivo Finnegans, de Finnegans Rivolta (Ateliê), da segunda tradução na íntegra de Finnegans Wake para o português, também diz que traduções disponíveis são excelentes.

“Como toda a tradução, há perdas e ganhos nas três. Mas, no fim, ganhamos muito com todas. São traduções de épocas diferentes (isso conta muito), com projetos editorais e comerciais diferentes e publicadas por diferentes editoras. Isso ajuda a criar o mito da pior e da melhor tradução, como se a qualidade de uma pudesse ser objetivamente avaliada com base em outra que, como disse, é de uma época diferente. Os três tradutores de Ulisses são altamente qualificados. Isso é o que importa”, disse a tradutora e autora de Metáforas da Tradução.

Programação do Bloomsday 2023

Nesta sexta-feira, 16, o 36º Bloomsday em São Paulo vai ocupar o jardim da Casa das Rosas a partir das 19h e terá como tema A volta para casa - Nostos.

  • Abertura: Marcelo Tápia e representante do Consulado da Irlanda em São Paulo, Mauricio Kinoshita (Cultural Officer)
  • Uma canção irlandesa
  • Breve apresentação sobre Dublin a partir do itinerário percorrido pelo personagem Leopold Bloom na cidade, em 1904
  • A volta para casa – breve referência ao tema do regresso na Odisseia de Homero e no romance Ulysses de Joyce
  • Evocação de Homero: leitura de fragmento do Canto XIV da Odisseia, por Marcelo Tápia
  • Performance baseada no canto XVI da Odisseia, versos 135-191, por Rodrigo Bravo e Vitória Siviero
  • Breve palestra sobre o episódio “Eumeu” do livro Ulysses, por Maria Teresa Quirino
  • Leitura, em diversos idiomas, de fragmentos do capítulo XVI de Ulysses (“Eumeu”), com Alzira Allegro, francês, Aurora Bernardini, Tereza Jardini, Julio Mendonça
  • Leitura de trecho do livro Finnicio Riovém, de Donaldo Schüler, uma adaptação para o público infantojuvenil do romance Finnegans Wake, de Joyce. Schüler comentará a obra e seu processo de criação
  • Apresentação de música irlandesa tradicional pela banda Tunas Celtic Band e pela dançarina Letícia Pires

Casa das Rosas (Av. Paulista, 37), 200 vagas, entrada gratuita, inscrições pelo site.

Ulysses (ou Ulisses), de James Joyce, é um dos mais importantes livros da literatura moderna. Lançada em 1922, a obra, que revolucionou a forma do romance, segue desafiando leitores mais de um século depois de seu lançamento.

A história toda se passa em um único dia - 16 de junho de 1904. Leopold Bloom sai de sua casa pela manhã, em Dublin, cumpre suas obrigações, e volta. Os outros personagens são Molly e Stephen Dedalus. Um dia, em nada menos do que 800 páginas (na edição brasileira mais recente, de 2022).

James Joyce (1882-1941) compôs e escreveu Ulysses entre 1914 e 1921, em 23 endereços diferentes, na Áustria, Suíça, Itália e França. Um livro diferente de tudo o que já havia sido publicado - e que só foi lançado graças à coragem de Sylvia Bleach, proprietária da livraria Shakespeare and Company. Em fevereiro, às vésperas do aniversário de 40 anos do escritor irlandês, os dois únicos exemplares dessa estranha obra foram expostos na vitrine da hoje lendária livraria.

Sylvia Beach com o escritor James Joyce na Shakespeare and Company, em Paris Foto: Noel Riley

Livro diferente. Mas... difícil de ler? “É trabalhoso”, responde Caetano W. Galindo, o mais recente tradutor de Joyce. Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa da obra do autor e tradutora de outros textos dele, diz que é preciso atravessar a barreira do desconhecido. Poeta, diretor da Rede de Museus-Casas Literários e organizador desde 1992 do Bloomsday em São Paulo, Marcelo Tápia, reconhece que o livro pode ser difícil. , ele também diz, “Ulysses permite diversos níveis de leitura”.

Neste Bloomsday, o Estadão perguntou aos três especialistas na obra de James Joyce: É mesmo tão difícil ler Ulysses?, Por que ler o romance e o que o leitor vai encontrar nele? e Quais são as dicas para quem quer começar?

O que você vai ler

  • O que é o Bloomsday
  • O que tem de especial em Ulysses e dicas de especialistas para ler o romance
  • As traduções disponíveis no Brasil
  • Programação do Bloomsday 2023 em São Paulo

O que significa Bloomsday

A primeira vez que se ouviu o nome Bloomsday foi em 1924. O próprio Joyce comentou sobre isso, sobre um grupo de pessoas que tinha se reunido em Dublin, em uma carta enviada à sua mecenas Harriet Weaver. A maior festa do Bloomsday é mesmo em Dublin, onde fãs se fantasiam e passeiam pelos cenários do romance, tomam cerveja no centenário Davy Byrnes Pub e fazem leituras da obra do cultuado autor. Em São Paulo ele é celebrado desde 1988, por iniciativa de Haroldo de Campos, mas há celebrações também em outros lugares, como Florianópolis.

Ulysses ou Ulisses?

Tanto faz. Sempre foi Ulisses, até o lançamento da edição da Companhia das Letras, que optou pela grafia antiga. Muitos joyceanos, como Dirce Waltrick do Amarante, preferem Ulisses.

É difícil ler Ulysses? Ou é impossível?

Caetano Galindo: É trabalhoso. O Ulysses é um livro que não te trata como se você fosse menos do que é. Ele prefere te tratar como se você fosse um pouco mais inteligente do que ACHA que é. E você, com tempo, paciência, e atenção ao que o livro vai ensinando, acaba se descobrindo bem mais inteligente do que pensava.

Marcelo Tápia: Ler Ulysses não só é possível como desejável, pois é um livro fascinante. Oferece dificuldades, sim, mas permite diversos níveis de leitura. Vale a pena dedicar um tempo para lê-lo, é uma experiência marcante, enriquecedora e transformadora. Não é para quem só busca entretenimento, embora seja, também, divertido.

Dirce Waltrick do Amarante: O que seria uma leitura difícil? Na minha opinião, uma leitura difícil é aquela que se faz por obrigação. Mas, é bem verdade que, parafraseando Pierre Bourdieu, só se gosta daquilo que se conhece, de maneira que, em literatura (ou em arte de um modo geral), gostamos do que conseguimos conceituar. Porém, para que isso aconteça, temos que ter certa intimidade com ela, o que só acontece quando conseguimos atravessar a barreira do desconhecido, e essa, sim, é difícil de transpor. Portanto, nosso gosto pela literatura, e aqui mais uma vez concordo com Bourdieu, começa de forma forçada e depois se naturaliza. Então, achamos que já nascemos gostando, por exemplo, de determinados livros, quando na verdade fomos instruídos a gostar deles. Com Ulisses não é diferente.

O fato é que não aprendemos a ler vanguarda na escola. Na escola lemos livros para resumir o enredo e, de preferência, para resumi-lo segundo o que foi apontado no livro didático. Ulisses não dá um enredo de mão beijada para o leitor: esse terá que se esforçar para seguir os passos de Leopold Bloom e de Stephen Dedalus pelas ruas de Dublin. Em determinado momento, ficará tão perdido quanto os dois, como se ele próprio tivesse passado a noite perambulando pelos bordeis da capital Irlandesa. Isso é Joyce, na minha opinião, no seu melhor estilo.

Uma experiência particular: todos os anos leio Ulysses e/ou Finnegans Wake, último romance do escritor, com os alunos de graduação no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina. No começo, eles ficam temerosos, mas depois se divertem. Eles leem em casa e voltam para a sala de aula dizendo que não entenderam “nada”, então, lemos mais uma vez em conjunto, em voz alta, e eles riem muito de algumas passagens, acham espirituosas, mas seguem afirmando que não compreendem o que leem, o que não é verdade, pois se acham engraçado é porque estão conectados com a obra e a entendem de alguma maneira.

O que acontece com Ulisses é que, parece-me, a academia criou o mito daquilo que só pode ser lido se houver ao lado um “ser de luz”, o único capaz de esclarecer a obra para outros mortais. Estudiosos de Joyce mundo afora fariam parte desse Olimpo, mas gosto da ideia de profanação (como explica Giorgio Agamben) e prefiro profanar os romances de Joyce para devolvê-los aos leitores, a quem eles de fato pertencem. Cada leitura da obra-prima de Joyce apresenta um novo romance e essa multiplicidade de romances em um só, a literatura dele sempre oferece.

Por que ler Ulysses? O que o leitor vai encontrar lá?

Primeira edição de Ulysses, de James Joyce, de 1922 Foto: Sotheby's

Caetano Galindo: Talvez a mais profunda e (acima de tudo) mais divertida exploração da consciência humana, em suas esquisitices, dores, verdades e mentiras. Além, claro, de ser uma viagem sem tamanho em termos de invenção formal. Acima de tudo, o leitor ou a leitora vão encontrar, Leopold Bloom, o personagem de romance que vai se tornar seu melhor amigo.

Marcelo Tápia: O Ulysses propicia ao leitor uma vivência intensa: é um livro que parece conter tudo sobre o ser humano, a vida e a morte, embora se passe num único dia. De certo modo, todos os elementos da existência estão lá representados, suscitando emoções e reflexões: amor, traição, sexo, preconceitos, estigmas, fantasia, perversão, delírio, amizade, sofrimento, prazer...

Dirce Waltrick do Amarante: Ulisses tem muitos romances em um só, como disse acima. De modo que em cada nova leitura temos um livro novo, novas conexões se formam, outras se desfazem... O leitor vai encontrar o que lhe interessar. Toda a leitura é autobiográfica. Quanto mais informações ele tiver sobre Joyce, a Irlanda, literatura, filosofia etc. melhor, mas isso não significa que não se possa ou não se deva ler sem todas essas informações prévias. Aliás, essa regra serve para tudo: quanto mais repertório temos, mais conexões conseguimos fazer. Agora, veja só, quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, estreou, os intelectuais não entenderam e repudiaram a obra, a qual foi rapidamente absorvida pelos presidiários de Saint Quentin, na Califórnia. Esses presidiários não tinham o repertório acadêmico dos intelectuais, mas tinham um repertório de vida.

Ulisses tem muito a dizer a nós, brasileiros. Ulisses fala de um país periférico, a Irlanda, e de uma família que representa não só a periférica Irlanda, colônia britânica, mas também os judeus, os bodes expiatórios, e outras minorias. Essa família representa as minorias contra as quais o imperialismo investe. Essas minorias também têm seus preconceitos, não são “santas”: Leopold Bloom, por exemplo, considera a sua mulher pouco inteligente e as mulheres em geral incapazes de fundar um novo “reino”. Já Molly, em troca, despreza a falta de virilidade do marido...

Alguma dica para quem vai começar a ler?

Caetano Galindo: Cabotinismo à parte, o guia Sim, eu digo sim é uma excelente introdução!

(O livro estava esgotado, mas está sendo reimpresso e deve chegar às livrarias em julho)

Marcelo Tápia: Sugiro que cada um leia o livro no seu ritmo, passo a passo, sem se inibir com a sua extensão; afinal, cada capítulo é uma surpresa, no tema e no estilo. O leitor também não deve se preocupar em esgotar, de imediato, todos os sentidos e qualidades que o texto oferece: é possível lê-lo menos profundamente, de início, e depois, se desejar, tomar contato com as muitas informações e interpretações disponíveis sobre a obra, voltando a lê-la de modo a usufruir dela mais plenamente.

Dirce Waltrick do Amarante: Começar a ler com o corpo e o espírito, como dizia Barthes ao conceituar o prazer do texto. Pode pular páginas à vontade e apreciar algumas linhas apenas. Pode começar de trás para a frente. Ler sem se preocupar com uma fórmula de leitura é o mais importante.

Qual é a melhor tradução de Ulysses para o português?

Há três traduções integrais de Ulysses no Brasil e uma quarta no prelo.

Antonio Houaiss: A primeira, de 1966, está no catálogo da Civilização Brasileira. A edição de 2021 tem 812 páginas e custa R$ 99,90 na versão impressa e R$ 39,90 na digital

Bernardina Pinheiro: Publicada em 2005, a tradução de Bernardina pode ser lida hoje num box da Nova Fronteira vendido exclusivamente pela Amazon. No total, ele tem 1.016 páginas e custa R$ 199,90. Também dá para ler em e-book, por R$ 114,99.

Caetano Galindo: Ele lançou sua tradução pela primeira vez em 2012 (Penguin-Companhia; 1.012 páginas; R$ 74,90; R$ R$ 39,90 o e-book) e uma nova edição, com ilustrações de Robert Motherwell, saiu no centenário de Ulysses, em 2022 (Companhia das Letras, R$ 189,90; R$ 49,90 o e-book; ela tem menos páginas porque o formato é maior).

No prelo: A edição da Ateliê era para ter sido lançada em 2022, mas a produção atrasou e não ainda não há previsão. O projeto é ousado. Idealizado e coordenado por Henrique P. Xavier, este ‘novo’ Ulysses tem a proposta não de traduzir, mas de transcriar o romance por meio 18 vozes - de escritores, artistas e joycianos. Veja a seguir quem são eles e o capítulo que traduziram: Aurora Fornoni Bernardini (Telêmaco); Dirce Waltrick do Amarante (Nestor); Julián Fuks (Proteu); Luisa Geisler (Calipso); Guilherme Gontijo Flores (Os Lotófagos); Carlos de Brito e Mello (Hades); João Adolfo Hansen (Éolo); Alípio Correia de Franca Neto (Os Lestrigões); José Roberto O’Shea (Cila e Caribde); Eclair Antônio Almeida Filho (As Rochas Ondulantes); Willy Corrêa de Oliveira (As Sereias); Henrique Piccinato Xavier (O Ciclope); Antonio Quinet (Nausícaa); Élide Valarini Oliver (Gado do Sol); Donaldo Schüler (Circe); Piero Eyben (Eumeu); Denise Bottmann (Ítaca) e Luci Collin (Penélope).

Qual tradução escolher?

Marcelo Tápia ressalta que as três traduções apresentam qualidades distintas e “são trabalhos absolutamente admiráveis”. “No entanto, penso que a mais recente delas, de Caetano W. Galindo, é a mais bem resolvida, resultante de um longo processo de depuração e maturação”.

Dirce Waltrick do Amarante, que integra a edição da Ateliê e é cotradutora, com o Coletivo Finnegans, de Finnegans Rivolta (Ateliê), da segunda tradução na íntegra de Finnegans Wake para o português, também diz que traduções disponíveis são excelentes.

“Como toda a tradução, há perdas e ganhos nas três. Mas, no fim, ganhamos muito com todas. São traduções de épocas diferentes (isso conta muito), com projetos editorais e comerciais diferentes e publicadas por diferentes editoras. Isso ajuda a criar o mito da pior e da melhor tradução, como se a qualidade de uma pudesse ser objetivamente avaliada com base em outra que, como disse, é de uma época diferente. Os três tradutores de Ulisses são altamente qualificados. Isso é o que importa”, disse a tradutora e autora de Metáforas da Tradução.

Programação do Bloomsday 2023

Nesta sexta-feira, 16, o 36º Bloomsday em São Paulo vai ocupar o jardim da Casa das Rosas a partir das 19h e terá como tema A volta para casa - Nostos.

  • Abertura: Marcelo Tápia e representante do Consulado da Irlanda em São Paulo, Mauricio Kinoshita (Cultural Officer)
  • Uma canção irlandesa
  • Breve apresentação sobre Dublin a partir do itinerário percorrido pelo personagem Leopold Bloom na cidade, em 1904
  • A volta para casa – breve referência ao tema do regresso na Odisseia de Homero e no romance Ulysses de Joyce
  • Evocação de Homero: leitura de fragmento do Canto XIV da Odisseia, por Marcelo Tápia
  • Performance baseada no canto XVI da Odisseia, versos 135-191, por Rodrigo Bravo e Vitória Siviero
  • Breve palestra sobre o episódio “Eumeu” do livro Ulysses, por Maria Teresa Quirino
  • Leitura, em diversos idiomas, de fragmentos do capítulo XVI de Ulysses (“Eumeu”), com Alzira Allegro, francês, Aurora Bernardini, Tereza Jardini, Julio Mendonça
  • Leitura de trecho do livro Finnicio Riovém, de Donaldo Schüler, uma adaptação para o público infantojuvenil do romance Finnegans Wake, de Joyce. Schüler comentará a obra e seu processo de criação
  • Apresentação de música irlandesa tradicional pela banda Tunas Celtic Band e pela dançarina Letícia Pires

Casa das Rosas (Av. Paulista, 37), 200 vagas, entrada gratuita, inscrições pelo site.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.