BOLONHA - É com um misto de sentimento de culpa, por terem conseguido fugir da guerra, e de missão de vida renovada que duas editoras ucranianas estão na Feira do Livro Infantil de Bolonha enquanto seu país está sob ataque da Rússia. Ainda assustadas com a escalada da violência e com o risco que seus amigos e familiares correm, elas conversaram com o Estadão sobre a necessidade de retratar em livro essa tragédia, de oferecer histórias aos que se protegem em suas cidades e aos que recomeçam em outro país e de ajudar os editores que ficaram para trás.
Aos 35 anos, Nataliia Mospan tinha um café com livraria e uma editora em Kiev, a My Bookshelf. Ela estava com o marido e os três filhos (o mais velho é uma pré-adolescente; o mais novo não tem mais do que 2 anos) em uma casa no interior, perto de uma base militar, e quando ouviu o primeiro estrondo logo chamou as crianças e disse que a guerra tinha começado. Foram para o porão, viram aviões sobrevoando. Quando as notícias começaram a chegar, entraram no carro com o cachorro e as crianças de pijama e seguiram para a casa de sua avó. Um pouco depois, chegavam à Croácia.
Nataliia vai contando sua história abraçada a um livro que ela fez em nove dias – The War: The Children Who Will Never Get To Read Stories. É muito forte, chocante – e a editora diz que tem de ser assim mesmo.
O livro traz histórias reais, de algumas das mais de 100 crianças que já morreram na Ucrânia desde o começo da guerra – soterradas, atingidas nos bombardeios. Foi escrito por um jornalista e QR codes no fim do volume levam o leitor até a história original. É indicado para crianças a partir dos 10 anos. A filha mais velha de Nataliia leu. “Meu filhos viram a guerra. Estávamos no meio dela e fugimos. Eles só me perguntavam: mãe, como isso foi acontecer? Quem fez isso e por quê? Eles precisavam da informação completa e não de me ouvir dizendo que a guerra é ruim, que traz dor. As crianças têm que sentir. Sei que isso pode feri-los, que eles terão uma cicatriz em suas almas. Mas eles levarão essas histórias para os seus filhos para que isso não se repita mais.”
Outro desafio de Nataliia agora, além de publicar este livro em uma tiragem maior, é convencer o marido a ficar com a família na Croácia. Ele quer voltar para lutar, mas ela acha que ele, arquiteto, tem de sobreviver também para ajudar a reconstruir o país. “Eu também sinto que eu deveria estar lá, mas tenho de salvar minhas crianças. E estar aqui na feira, agora, não me diz nada. Eu olho para esses livros maravilhosos e não sinto nada”, diz a editora que, mesmo em segurança, ainda não consegue sorrir. Natallia sabe que a livraria está de pé. “Mas isso não importa. Só o que importa agora é vencer essa guerra e destruir a Rússia. Se ela só acabar, viveremos isso de novo e de novo.”
Outra editora, Yullia Laktionova, de 37 anos, demorou um pouco mais para entender o que estava acontecendo. E então a guerra a acordou numa madrugada. Ela e a filha de 11 anos até tentaram embarcar com o cachorro em algum trem para a Polônia no segundo dia da invasão.
Havia pânico por toda parte, parecia a cena do Titanic, ela conta. Voltaram para trás. Elas poderiam ter seguido com uma amiga para um lugar perto de Chernobyl, onde o abrigo antibomba as protegeria também de radiação, mas por questão de minutos o plano não deu certo.
Os três acabaram na casa de uma artista gráfica com quem Yuliia, diretora editorial da Yakaboo, uma grande plataforma de livros e editora, já havia trabalhado. Esta amiga, Tatiana Kremen, não quis sair quando Yuliia entendeu que não dava mais para ficar – ela tinha um cachorro e quatro gatos. Yuliia seguiu viagem com outra amiga e seus dois filhos. Passaram por quatro países e hoje, vivendo em Varsóvia, na casa de um amigo escritor, a editora perde o sono pensando em onde vai viver com a filha depois disso. Fala diariamente com as duas amigas que ficaram na Ucrânia. A que está perto de Chernobyl está num lugar sitiado, já passou cinco dias sem eletricidade e gasta horas do dia na fila do leite. A de Kiev está cada dia mais distante de um plano de fuga: agora ela tem quatro cachorros e nove gatos – e trabalha numa graphic novel sobre sua vida na guerra, cujo começo Yullia trouxe para apresentar a editores.
A editora, também autora de livros para crianças, quer ajudar para que editores ucranianos continuem produzindo e se oferece para imprimir seus livros em países vizinhos. A primeira ação, no entanto, por meio da Yakaboo, foi pedir e-books para 50 editores e oferecê-los gratuitamente em sua plataforma para quem ainda estivesse na Ucrânia. Yuliia mostra a foto de um amigo que trabalhava com educação e que mandou uma mensagem agradecendo por esses livros. “Olha só como ele parecia um cantor antes da guerra. Agora, com uniforme do exército, se tornou um corajoso soldado voluntário que lê livros como um momento de respiro.”
E como mais a literatura pode ajudar? “Os refugiados sentem falta de casa e poder ler livros em sua língua é voltar a se sentir em casa. E quando você abre um livro, ou um app, e lê para seu filho antes de dormir, de alguma forma ele sente que está tudo normal”, ela comenta, justificando esse desejo de ajudar a imprimir livros ucranianos em outros locais. “Para os que ficaram na Ucrânia e estão sentindo tantas coisas horríveis, ajuda a relaxar, a pensar em alguma outra coisa que não seja sua própria morte. Quando lemos podemos estar em diferentes lugares, viajamos para outros tempos. Pode ser uma fuga dessa situação terrível.”
*A jornalista viajou a convite da organização da Feira Infantil do Livro de Bolonha