Em ‘Autumn’, Karl Ove Knausgaard faz um guia para a vida na Terra


Ignorar ocomum para alcançar o sublime

Por Rodney Welch

Em seu monumental romance autobiográfico My Strugle – o sexto e último volume só será publicado em inglês no próximo ano –, Karl Ove Knausgaard tentou dar sentido a sua vida juntando testemunhos meticulosos e agrupando e escrutinando memórias, na esperança de dar perspectiva ao conjunto.

Em seu último livro, porém, ele muda o foco para o mundo em volta. Escrito quando ainda esperava o nascimento do quarto filho (a menina Anne), Autumn – o primeiro de quatro planejados volumes baseados nas estações – pretende ser um guia aleatório para a vida na Terra destinado ao último acréscimo a sua família. O livro reúne dezenas de miniensaios sobre as diferentes coisas que o filho vai encontrar. São coisas variadas como maçãs, vespas, sacolas plásticas, sol, solidão, goma de mascar, carros, piolhos, Van Gogh, Flaubert e outros componentes da paisagem, da sociedade e do que se passa dentro e fora o corpo. É uma versão mais enxuta de The Anatomy of Melancholy, um livro solitário que no fundo aborda a necessidade que temos de outras pessoas.

Karl Ove Knausgaard em 2012 Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times
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É também um livro tomado pela mesma questão que persegue a movimentada história de vida do autor. “O que faz a vida valer a pena?”, indaga do interlocutor não nascido, para acrescentar que “nenhuma criança se pergunta isso. Para elas, a vida é autoevidente, fluindo sem explicações. Se é boa ou ruim, não faz diferença”. Assim, cabe ao próprio Knausgaard explicar – voltar ao início e reduzir a vida a seus aspectos mais simples.

Para um escritor, isso é um desafio interessante. Em certo grau, o livro é uma série de exercícios de escrita e de proposição de temas. Escolha uma palavra e veja aonde ela o leva, assumindo que ninguém ainda a definiu. Tente ver uma coisa como se fosse a primeira vez. Procure definir uma boca, por exemplo: “Ela é feita de dois lábios que ficam horizontalmente um sobre o outro e situa-se na parte frontal da cabeça, abaixo do nariz”.

Em alguns casos, o nome da coisa o leva a pensar no alcance da própria palavra. Moldura, que “constitui o limite de um quadro e define a fronteira entre o que está e o que não está na pintura”, traz à mente limites e fronteiras. Ou outras palavras evocam memórias. Botões, “esses pequenos discos usados para manter peças de roupa junto ao corpo”, levam-no a pensar no contraste entre frugalidade e abundância. Sua mãe guardava botões para usá-los de novo, mas ele e sua mulher, como não costuram, preferem comprar uma blusa a consertar uma usada.

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E assim vai o livro, ensaio a ensaio, com Knausgaard evocando ramificações proustianas e filosóficas de uma simples palavra. Às vezes, ele atinge o alvo com estardalhaço: “Vergonha é como um cadeado, que tranca o que precisa ser trancado e é um dos mecanismos mais importantes da vida social”. Outras vezes, suas ideias parecem suspeitas, como quando ele vê o perdão estritamente em termos de luta pelo poder: “Se alguém perdoa alguém e isso não causa constrangimento entre os dois, um deles continua sendo a vítima e a parte mais frágil”.

No conjunto, essas indagações revelam uma visão mais ampla, a de que vivemos em um mundo de abundância que sustenta a vida, mas é também indiferente a ela. Nesse mundo, os seres humanos – não menos que formas inferiores de vida – são ignorantes sobre qualquer ambiente que não o seu.

Knausgaard bate nessa tecla sempre que o tema são animais. Abelhas pensam apenas na colmeia, cobras não ouvem, moscas só se preocupam com outras moscas, texugos só querem viver no chão das florestas e os humanos não se relacionam com água-vivas. As pessoas são “familiarizadas e ao mesmo tempo distantes” de si mesmas e do mundo do qual fazem parte.

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Certamente, para ele isso tudo é verdade. Ele pensa no finado pai, sem amigos; avalia as próprias limitações, considera como o tempo passou e no que ele se tornou, “um homem branco de meia-idade, com seu mundo interior congelado”. A descrição traz à lembrança outro escritor solitário, Wallace Stevens, que sentiu um calafrio semelhante ao observar uma aurora boreal descrita em The Auroras of Autumn: “O estudante, munido apenas de uma vela, vê / um esplendor ártico refulgindo na moldura / de tudo que ele é. E sente medo”.

Knausgaard tenta se isolar de uma certa depressão escandinava. Há a promessa de um novo dia, da iminente chegada de seu novo filho – e há também esse livro. “Uma das propriedades da linguagem”, escreve ele quase no fim, “é poder evocar o que não está aqui”.

Nessas meditações seculares, Knausgaard ignora o comum para alcançar o sublime – descobrindo o que está na pintura e o que ela oculta. 

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Tradução de Roberto Muniz

Em seu monumental romance autobiográfico My Strugle – o sexto e último volume só será publicado em inglês no próximo ano –, Karl Ove Knausgaard tentou dar sentido a sua vida juntando testemunhos meticulosos e agrupando e escrutinando memórias, na esperança de dar perspectiva ao conjunto.

Em seu último livro, porém, ele muda o foco para o mundo em volta. Escrito quando ainda esperava o nascimento do quarto filho (a menina Anne), Autumn – o primeiro de quatro planejados volumes baseados nas estações – pretende ser um guia aleatório para a vida na Terra destinado ao último acréscimo a sua família. O livro reúne dezenas de miniensaios sobre as diferentes coisas que o filho vai encontrar. São coisas variadas como maçãs, vespas, sacolas plásticas, sol, solidão, goma de mascar, carros, piolhos, Van Gogh, Flaubert e outros componentes da paisagem, da sociedade e do que se passa dentro e fora o corpo. É uma versão mais enxuta de The Anatomy of Melancholy, um livro solitário que no fundo aborda a necessidade que temos de outras pessoas.

Karl Ove Knausgaard em 2012 Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

É também um livro tomado pela mesma questão que persegue a movimentada história de vida do autor. “O que faz a vida valer a pena?”, indaga do interlocutor não nascido, para acrescentar que “nenhuma criança se pergunta isso. Para elas, a vida é autoevidente, fluindo sem explicações. Se é boa ou ruim, não faz diferença”. Assim, cabe ao próprio Knausgaard explicar – voltar ao início e reduzir a vida a seus aspectos mais simples.

Para um escritor, isso é um desafio interessante. Em certo grau, o livro é uma série de exercícios de escrita e de proposição de temas. Escolha uma palavra e veja aonde ela o leva, assumindo que ninguém ainda a definiu. Tente ver uma coisa como se fosse a primeira vez. Procure definir uma boca, por exemplo: “Ela é feita de dois lábios que ficam horizontalmente um sobre o outro e situa-se na parte frontal da cabeça, abaixo do nariz”.

Em alguns casos, o nome da coisa o leva a pensar no alcance da própria palavra. Moldura, que “constitui o limite de um quadro e define a fronteira entre o que está e o que não está na pintura”, traz à mente limites e fronteiras. Ou outras palavras evocam memórias. Botões, “esses pequenos discos usados para manter peças de roupa junto ao corpo”, levam-no a pensar no contraste entre frugalidade e abundância. Sua mãe guardava botões para usá-los de novo, mas ele e sua mulher, como não costuram, preferem comprar uma blusa a consertar uma usada.

E assim vai o livro, ensaio a ensaio, com Knausgaard evocando ramificações proustianas e filosóficas de uma simples palavra. Às vezes, ele atinge o alvo com estardalhaço: “Vergonha é como um cadeado, que tranca o que precisa ser trancado e é um dos mecanismos mais importantes da vida social”. Outras vezes, suas ideias parecem suspeitas, como quando ele vê o perdão estritamente em termos de luta pelo poder: “Se alguém perdoa alguém e isso não causa constrangimento entre os dois, um deles continua sendo a vítima e a parte mais frágil”.

No conjunto, essas indagações revelam uma visão mais ampla, a de que vivemos em um mundo de abundância que sustenta a vida, mas é também indiferente a ela. Nesse mundo, os seres humanos – não menos que formas inferiores de vida – são ignorantes sobre qualquer ambiente que não o seu.

Knausgaard bate nessa tecla sempre que o tema são animais. Abelhas pensam apenas na colmeia, cobras não ouvem, moscas só se preocupam com outras moscas, texugos só querem viver no chão das florestas e os humanos não se relacionam com água-vivas. As pessoas são “familiarizadas e ao mesmo tempo distantes” de si mesmas e do mundo do qual fazem parte.

Certamente, para ele isso tudo é verdade. Ele pensa no finado pai, sem amigos; avalia as próprias limitações, considera como o tempo passou e no que ele se tornou, “um homem branco de meia-idade, com seu mundo interior congelado”. A descrição traz à lembrança outro escritor solitário, Wallace Stevens, que sentiu um calafrio semelhante ao observar uma aurora boreal descrita em The Auroras of Autumn: “O estudante, munido apenas de uma vela, vê / um esplendor ártico refulgindo na moldura / de tudo que ele é. E sente medo”.

Knausgaard tenta se isolar de uma certa depressão escandinava. Há a promessa de um novo dia, da iminente chegada de seu novo filho – e há também esse livro. “Uma das propriedades da linguagem”, escreve ele quase no fim, “é poder evocar o que não está aqui”.

Nessas meditações seculares, Knausgaard ignora o comum para alcançar o sublime – descobrindo o que está na pintura e o que ela oculta. 

Tradução de Roberto Muniz

Em seu monumental romance autobiográfico My Strugle – o sexto e último volume só será publicado em inglês no próximo ano –, Karl Ove Knausgaard tentou dar sentido a sua vida juntando testemunhos meticulosos e agrupando e escrutinando memórias, na esperança de dar perspectiva ao conjunto.

Em seu último livro, porém, ele muda o foco para o mundo em volta. Escrito quando ainda esperava o nascimento do quarto filho (a menina Anne), Autumn – o primeiro de quatro planejados volumes baseados nas estações – pretende ser um guia aleatório para a vida na Terra destinado ao último acréscimo a sua família. O livro reúne dezenas de miniensaios sobre as diferentes coisas que o filho vai encontrar. São coisas variadas como maçãs, vespas, sacolas plásticas, sol, solidão, goma de mascar, carros, piolhos, Van Gogh, Flaubert e outros componentes da paisagem, da sociedade e do que se passa dentro e fora o corpo. É uma versão mais enxuta de The Anatomy of Melancholy, um livro solitário que no fundo aborda a necessidade que temos de outras pessoas.

Karl Ove Knausgaard em 2012 Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

É também um livro tomado pela mesma questão que persegue a movimentada história de vida do autor. “O que faz a vida valer a pena?”, indaga do interlocutor não nascido, para acrescentar que “nenhuma criança se pergunta isso. Para elas, a vida é autoevidente, fluindo sem explicações. Se é boa ou ruim, não faz diferença”. Assim, cabe ao próprio Knausgaard explicar – voltar ao início e reduzir a vida a seus aspectos mais simples.

Para um escritor, isso é um desafio interessante. Em certo grau, o livro é uma série de exercícios de escrita e de proposição de temas. Escolha uma palavra e veja aonde ela o leva, assumindo que ninguém ainda a definiu. Tente ver uma coisa como se fosse a primeira vez. Procure definir uma boca, por exemplo: “Ela é feita de dois lábios que ficam horizontalmente um sobre o outro e situa-se na parte frontal da cabeça, abaixo do nariz”.

Em alguns casos, o nome da coisa o leva a pensar no alcance da própria palavra. Moldura, que “constitui o limite de um quadro e define a fronteira entre o que está e o que não está na pintura”, traz à mente limites e fronteiras. Ou outras palavras evocam memórias. Botões, “esses pequenos discos usados para manter peças de roupa junto ao corpo”, levam-no a pensar no contraste entre frugalidade e abundância. Sua mãe guardava botões para usá-los de novo, mas ele e sua mulher, como não costuram, preferem comprar uma blusa a consertar uma usada.

E assim vai o livro, ensaio a ensaio, com Knausgaard evocando ramificações proustianas e filosóficas de uma simples palavra. Às vezes, ele atinge o alvo com estardalhaço: “Vergonha é como um cadeado, que tranca o que precisa ser trancado e é um dos mecanismos mais importantes da vida social”. Outras vezes, suas ideias parecem suspeitas, como quando ele vê o perdão estritamente em termos de luta pelo poder: “Se alguém perdoa alguém e isso não causa constrangimento entre os dois, um deles continua sendo a vítima e a parte mais frágil”.

No conjunto, essas indagações revelam uma visão mais ampla, a de que vivemos em um mundo de abundância que sustenta a vida, mas é também indiferente a ela. Nesse mundo, os seres humanos – não menos que formas inferiores de vida – são ignorantes sobre qualquer ambiente que não o seu.

Knausgaard bate nessa tecla sempre que o tema são animais. Abelhas pensam apenas na colmeia, cobras não ouvem, moscas só se preocupam com outras moscas, texugos só querem viver no chão das florestas e os humanos não se relacionam com água-vivas. As pessoas são “familiarizadas e ao mesmo tempo distantes” de si mesmas e do mundo do qual fazem parte.

Certamente, para ele isso tudo é verdade. Ele pensa no finado pai, sem amigos; avalia as próprias limitações, considera como o tempo passou e no que ele se tornou, “um homem branco de meia-idade, com seu mundo interior congelado”. A descrição traz à lembrança outro escritor solitário, Wallace Stevens, que sentiu um calafrio semelhante ao observar uma aurora boreal descrita em The Auroras of Autumn: “O estudante, munido apenas de uma vela, vê / um esplendor ártico refulgindo na moldura / de tudo que ele é. E sente medo”.

Knausgaard tenta se isolar de uma certa depressão escandinava. Há a promessa de um novo dia, da iminente chegada de seu novo filho – e há também esse livro. “Uma das propriedades da linguagem”, escreve ele quase no fim, “é poder evocar o que não está aqui”.

Nessas meditações seculares, Knausgaard ignora o comum para alcançar o sublime – descobrindo o que está na pintura e o que ela oculta. 

Tradução de Roberto Muniz

Em seu monumental romance autobiográfico My Strugle – o sexto e último volume só será publicado em inglês no próximo ano –, Karl Ove Knausgaard tentou dar sentido a sua vida juntando testemunhos meticulosos e agrupando e escrutinando memórias, na esperança de dar perspectiva ao conjunto.

Em seu último livro, porém, ele muda o foco para o mundo em volta. Escrito quando ainda esperava o nascimento do quarto filho (a menina Anne), Autumn – o primeiro de quatro planejados volumes baseados nas estações – pretende ser um guia aleatório para a vida na Terra destinado ao último acréscimo a sua família. O livro reúne dezenas de miniensaios sobre as diferentes coisas que o filho vai encontrar. São coisas variadas como maçãs, vespas, sacolas plásticas, sol, solidão, goma de mascar, carros, piolhos, Van Gogh, Flaubert e outros componentes da paisagem, da sociedade e do que se passa dentro e fora o corpo. É uma versão mais enxuta de The Anatomy of Melancholy, um livro solitário que no fundo aborda a necessidade que temos de outras pessoas.

Karl Ove Knausgaard em 2012 Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

É também um livro tomado pela mesma questão que persegue a movimentada história de vida do autor. “O que faz a vida valer a pena?”, indaga do interlocutor não nascido, para acrescentar que “nenhuma criança se pergunta isso. Para elas, a vida é autoevidente, fluindo sem explicações. Se é boa ou ruim, não faz diferença”. Assim, cabe ao próprio Knausgaard explicar – voltar ao início e reduzir a vida a seus aspectos mais simples.

Para um escritor, isso é um desafio interessante. Em certo grau, o livro é uma série de exercícios de escrita e de proposição de temas. Escolha uma palavra e veja aonde ela o leva, assumindo que ninguém ainda a definiu. Tente ver uma coisa como se fosse a primeira vez. Procure definir uma boca, por exemplo: “Ela é feita de dois lábios que ficam horizontalmente um sobre o outro e situa-se na parte frontal da cabeça, abaixo do nariz”.

Em alguns casos, o nome da coisa o leva a pensar no alcance da própria palavra. Moldura, que “constitui o limite de um quadro e define a fronteira entre o que está e o que não está na pintura”, traz à mente limites e fronteiras. Ou outras palavras evocam memórias. Botões, “esses pequenos discos usados para manter peças de roupa junto ao corpo”, levam-no a pensar no contraste entre frugalidade e abundância. Sua mãe guardava botões para usá-los de novo, mas ele e sua mulher, como não costuram, preferem comprar uma blusa a consertar uma usada.

E assim vai o livro, ensaio a ensaio, com Knausgaard evocando ramificações proustianas e filosóficas de uma simples palavra. Às vezes, ele atinge o alvo com estardalhaço: “Vergonha é como um cadeado, que tranca o que precisa ser trancado e é um dos mecanismos mais importantes da vida social”. Outras vezes, suas ideias parecem suspeitas, como quando ele vê o perdão estritamente em termos de luta pelo poder: “Se alguém perdoa alguém e isso não causa constrangimento entre os dois, um deles continua sendo a vítima e a parte mais frágil”.

No conjunto, essas indagações revelam uma visão mais ampla, a de que vivemos em um mundo de abundância que sustenta a vida, mas é também indiferente a ela. Nesse mundo, os seres humanos – não menos que formas inferiores de vida – são ignorantes sobre qualquer ambiente que não o seu.

Knausgaard bate nessa tecla sempre que o tema são animais. Abelhas pensam apenas na colmeia, cobras não ouvem, moscas só se preocupam com outras moscas, texugos só querem viver no chão das florestas e os humanos não se relacionam com água-vivas. As pessoas são “familiarizadas e ao mesmo tempo distantes” de si mesmas e do mundo do qual fazem parte.

Certamente, para ele isso tudo é verdade. Ele pensa no finado pai, sem amigos; avalia as próprias limitações, considera como o tempo passou e no que ele se tornou, “um homem branco de meia-idade, com seu mundo interior congelado”. A descrição traz à lembrança outro escritor solitário, Wallace Stevens, que sentiu um calafrio semelhante ao observar uma aurora boreal descrita em The Auroras of Autumn: “O estudante, munido apenas de uma vela, vê / um esplendor ártico refulgindo na moldura / de tudo que ele é. E sente medo”.

Knausgaard tenta se isolar de uma certa depressão escandinava. Há a promessa de um novo dia, da iminente chegada de seu novo filho – e há também esse livro. “Uma das propriedades da linguagem”, escreve ele quase no fim, “é poder evocar o que não está aqui”.

Nessas meditações seculares, Knausgaard ignora o comum para alcançar o sublime – descobrindo o que está na pintura e o que ela oculta. 

Tradução de Roberto Muniz

Em seu monumental romance autobiográfico My Strugle – o sexto e último volume só será publicado em inglês no próximo ano –, Karl Ove Knausgaard tentou dar sentido a sua vida juntando testemunhos meticulosos e agrupando e escrutinando memórias, na esperança de dar perspectiva ao conjunto.

Em seu último livro, porém, ele muda o foco para o mundo em volta. Escrito quando ainda esperava o nascimento do quarto filho (a menina Anne), Autumn – o primeiro de quatro planejados volumes baseados nas estações – pretende ser um guia aleatório para a vida na Terra destinado ao último acréscimo a sua família. O livro reúne dezenas de miniensaios sobre as diferentes coisas que o filho vai encontrar. São coisas variadas como maçãs, vespas, sacolas plásticas, sol, solidão, goma de mascar, carros, piolhos, Van Gogh, Flaubert e outros componentes da paisagem, da sociedade e do que se passa dentro e fora o corpo. É uma versão mais enxuta de The Anatomy of Melancholy, um livro solitário que no fundo aborda a necessidade que temos de outras pessoas.

Karl Ove Knausgaard em 2012 Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

É também um livro tomado pela mesma questão que persegue a movimentada história de vida do autor. “O que faz a vida valer a pena?”, indaga do interlocutor não nascido, para acrescentar que “nenhuma criança se pergunta isso. Para elas, a vida é autoevidente, fluindo sem explicações. Se é boa ou ruim, não faz diferença”. Assim, cabe ao próprio Knausgaard explicar – voltar ao início e reduzir a vida a seus aspectos mais simples.

Para um escritor, isso é um desafio interessante. Em certo grau, o livro é uma série de exercícios de escrita e de proposição de temas. Escolha uma palavra e veja aonde ela o leva, assumindo que ninguém ainda a definiu. Tente ver uma coisa como se fosse a primeira vez. Procure definir uma boca, por exemplo: “Ela é feita de dois lábios que ficam horizontalmente um sobre o outro e situa-se na parte frontal da cabeça, abaixo do nariz”.

Em alguns casos, o nome da coisa o leva a pensar no alcance da própria palavra. Moldura, que “constitui o limite de um quadro e define a fronteira entre o que está e o que não está na pintura”, traz à mente limites e fronteiras. Ou outras palavras evocam memórias. Botões, “esses pequenos discos usados para manter peças de roupa junto ao corpo”, levam-no a pensar no contraste entre frugalidade e abundância. Sua mãe guardava botões para usá-los de novo, mas ele e sua mulher, como não costuram, preferem comprar uma blusa a consertar uma usada.

E assim vai o livro, ensaio a ensaio, com Knausgaard evocando ramificações proustianas e filosóficas de uma simples palavra. Às vezes, ele atinge o alvo com estardalhaço: “Vergonha é como um cadeado, que tranca o que precisa ser trancado e é um dos mecanismos mais importantes da vida social”. Outras vezes, suas ideias parecem suspeitas, como quando ele vê o perdão estritamente em termos de luta pelo poder: “Se alguém perdoa alguém e isso não causa constrangimento entre os dois, um deles continua sendo a vítima e a parte mais frágil”.

No conjunto, essas indagações revelam uma visão mais ampla, a de que vivemos em um mundo de abundância que sustenta a vida, mas é também indiferente a ela. Nesse mundo, os seres humanos – não menos que formas inferiores de vida – são ignorantes sobre qualquer ambiente que não o seu.

Knausgaard bate nessa tecla sempre que o tema são animais. Abelhas pensam apenas na colmeia, cobras não ouvem, moscas só se preocupam com outras moscas, texugos só querem viver no chão das florestas e os humanos não se relacionam com água-vivas. As pessoas são “familiarizadas e ao mesmo tempo distantes” de si mesmas e do mundo do qual fazem parte.

Certamente, para ele isso tudo é verdade. Ele pensa no finado pai, sem amigos; avalia as próprias limitações, considera como o tempo passou e no que ele se tornou, “um homem branco de meia-idade, com seu mundo interior congelado”. A descrição traz à lembrança outro escritor solitário, Wallace Stevens, que sentiu um calafrio semelhante ao observar uma aurora boreal descrita em The Auroras of Autumn: “O estudante, munido apenas de uma vela, vê / um esplendor ártico refulgindo na moldura / de tudo que ele é. E sente medo”.

Knausgaard tenta se isolar de uma certa depressão escandinava. Há a promessa de um novo dia, da iminente chegada de seu novo filho – e há também esse livro. “Uma das propriedades da linguagem”, escreve ele quase no fim, “é poder evocar o que não está aqui”.

Nessas meditações seculares, Knausgaard ignora o comum para alcançar o sublime – descobrindo o que está na pintura e o que ela oculta. 

Tradução de Roberto Muniz

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