Isto não é uma biografia. Desde o início, Joyce Carol Oates deixa claro o que seu livro não pretende ser. Não lhe devem cobrar nomes precisos, dados de vida pesquisados a fundo, depoimentos “objetivos” ou análises de caráter sobre a personagem. Mas então o que é Blonde? Talvez um romance de invenção, talvez um ensaio ficcional sobre Norma Jeane Baker, depois conhecida como Marilyn Monroe. Talvez ambos.
Toda vida, qualquer uma, é de uma complexidade angustiante. Ainda mais a de uma pessoa pública, que sai do nada, vira uma superestrela durante cerca de 10 anos e morre jovem, aos 36. Quem foi Marilyn Monroe? - é a pergunta irrespondível que funciona como motor interno de Blonde, obra lançada originalmente em 2000 e editada agora, no Brasil, pela HarperCollins (a Rocco lançou uma tradução em 2010).
O projeto é ambicioso ao extremo. Muito mais do que se propusesse a chamada “biografia definitiva” da atriz. Oates quer ir além. Deseja sondar não apenas os fatos exteriores da trajetória de Marilyn, mas nada menos que a sua subjetividade. A sua verdade interna, por assim dizer.
Nesse processo de descida (ou subida) à subjetividade de uma persona pública, Oates usa quase o tempo todo o recurso do monólogo interior. O romance (vamos chamá-lo assim) transcreve o que pensa Norma Jean de tudo o que lhe acontece, das pessoas que conhece, dos pequenos e grandes fatos, e, sobretudo, de si mesma. É como virar a personagem ao avesso e fazê-la pensar em voz alta uma vida interior que todos, ilusoriamente, imaginam conhecer.
Dessa forma, os fatos externos, ainda que importantes, funcionam apenas como marcas do caminho, formando uma espécie de esqueleto imperfeito daquela alma em transe. Seriam como referências “factuais” dessa vida interna em ebulição que a escritora supõe em Norma Jean. Esses fatos balizam a trajetória, em esboços rápidos. A infância com a mãe instável, Gladys. O pai desconhecido, mas a menina é induzida a pensar que se trata de figura importante em Hollywood. A internação de Gladys numa clínica psiquiátrica, a filha enviada para um lar de órfãos. A mãe que não permite a adoção definitiva, forçando a adoção temporária por um casal. O casamento precoce e rapidamente encerrado pela guerra.
A dificuldade de sobrevivência, as fotos de calendário, nuas, que lhe permitem pagar as contas, precariamente. As primeiras chances em Hollywood. O traumático abuso sexual praticado por um produtor. Algumas aparições rápidas em filmes e um papel um pouco maior - mas já marcante - em uma das obras-primas de John Huston, O Segredo das Joias (1950). Em seguida, dois papéis de protagonista em Almas Desesperadas (1952) e Torrentes de Paixão (1953). Este último, em particular, a transforma em celebridade nacional. Estrela polêmica, capaz de despertar o desejo dos homens e a ira de ligas femininas, que a denunciam como “imoral”.
O primeiro volume de Blonde se detém nesse ponto - o segundo será lançado no segundo semestre. Marilyn interpreta a fatal Rose Loomis em Torrentes de Paixão e vive, à trois, um romance com dois rapazes filhos de celebridades, Charlie Chaplin Jr. e Eddy G. (filho de Edward G. Robinson).
A ideia do livro surgiu quando Joyce Carol Oates, nome sempre lembrado para o Nobel de Literatura, viu uma foto de Norma Jeane Baker aos 15 anos, radiante e virginal, com uma coroa de flores no cabelo castanho e um medalhão no pescoço. Como essa garota iria se transformar na diva sexy e lasciva, de voz sussurrante e seios fartos, objeto de desejo do sexo masculino e de desprezo e inveja do gênero feminino?
Norma Jeane poderia ter sido uma garota americana qualquer, com um destino banal pela frente: lar, marido e filhos. Não foi assim. E por que não? Eis o mistério.
De fato, como imaginar um destino tão invulgar? E, no fundo, tão trágico? Dessa subjetividade imaginada, emerge uma personalidade tão poderosa como frágil. Capaz de abrir caminho em circunstâncias muito desfavoráveis, tendo de enfrentar o ambiente machista tóxico em que a oportunidade profissional se paga com o próprio corpo.
Garota ingênua, mas leitora de Stanislavski, Freud e Kierkegaard. Capaz de entender suas personagens melhor que o cineasta John Huston e Louis Calhern, o veterano ator shakespeariano com quem contracena em O Segredo das Joias. Cheia de inibições e complexos e, no entanto, apta a exercer com alegria a liberdade sexual descoberta após anos de repressão.
Esta é a Marilyn imaginada por Joyce Carol Oates. Uma espécie de símbolo da América, mas também a sua negação. Uma criatura sensível e inteligente, avesso do estereótipo de loira burra, lasciva e destruidora de lares. Retrato verdadeiro ou não, mas muito convincente e poderosamente escrito, Blonde nos reaproxima de Marilyn, e a coloca em outra perspectiva. Passamos a vê-la com outros olhos - e isso não é pouco. Sobre o livro, Joyce respondeu, por e-mail, às seguintes questões.
Após 20 anos de publicação, como você analisa o livro hoje?
É empolgante saber que haverá uma adaptação de Blonde a ser produzida pela Netflix em 2021. E por um ilustre cineasta, Andrew Dominik. Sua versão do meu romance concentra-se em apenas alguns episódios selecionados entre vários, mas apresenta Marilyn Monroe como uma mulher explorada, desfalcada da mais elevada reputação que deveria ter tido como excelente atriz, além de ter seus rendimentos usurpados. Os leitores contemporâneos poderão ter mais simpatia por uma protagonista feminina que suporta muitas das humilhações expostas hoje pelo movimento #MeToo.
Você acredita que Marilyn Monroe, como ícone cultural, sobreviveria às celebridades de hoje? Quais são os elementos que tornam Monroe uma figura tão duradoura?
Sim, parece que MM é atemporal. A imagem dela está no Twitter com frequência. Ela parece ser mais popular como ícone americano do que Elvis Presley e Muhammad Ali. Surpreendentemente, não há tanta atenção dada a Audrey Hepburn (que era uma séria rival de MM nos anos 1950, quando um novo tipo de beleza feminina começou a ser destacado, mais esbelta e menos “loira” do que MM). Nem mesmo a ultraglamourosa Elizabeth Taylor, tão famosa em sua época, é tão popular nas redes sociais quanto MM.
A trajetória de Marilyn Monroe continua despertando atenção e já há muitos anos, tanto antes quanto depois de sua morte. A partir de suas pesquisas, é possível explicar esse eterno fascínio? Você descobriu algo que a tenha surpreendido?
Acima de tudo, fiquei surpresa em perceber como MM era excelente atriz. Parte da minha pesquisa incluiu assistir a todos os filmes dela que estavam disponíveis - um número considerável. Ao contrário de Ava Gardner, Elizabeth Taylor e outras estrelas da época, MM estava sempre tendo aulas: atuação, canto, dança. Ela ambicionava se tornar uma atriz de teatro séria e atuar em peças de Chekhov. Outras estrelas de cinema eram indiferentes ao fato de poderem “atuar” - MM estava sempre tentando se aprimorar. Fiquei surpresa, mas também desanimada com a relutância de seus contemporâneos em Hollywood em reconhecer que MM era uma atriz tão versátil, na verdade uma comediante brilhante (basta ver Quanto Mais Quente Melhor).
Esse foi um livro emocionalmente difícil de escrever?
Sim! Vejo que você percebeu isso. Como minha protagonista estava fadada a morrer aos 36 anos, senti que ambas estávamos nos arremessando a uma espécie de túnel... Enquanto na maioria dos romances o escritor pode exercitar sua imaginação, em um livro baseado em uma vida real, não há desvio, nem destino alternativo. Além disso, meu querido pai estava morrendo enquanto eu trabalhava no romance, e a tristeza de perdê-lo permeia particularmente os últimos capítulos.
Você tem alguma ideia sobre o motivo de algumas celebridades sucumbirem às pressões, enquanto outras são capazes de lidar com isso?
Nem todos os indivíduos são tão “protegidos” psicológica e emocionalmente quanto os outros. Por não ter tido pai e sua mãe ser muito perturbada e pouco confiável, sofrendo de uma doença mental, MM não teve o amor verdadeiro dos pais, ou mesmo de uma família, o que a teria tornado uma pessoa mais confiante. Ela continuou procurando por um pai - ela chamava seus maridos de “papai” - e até mesmo seu primeiro marido, que era adolescente quando se casaram). MM era claramente muito carente, o que se traduzia em uma personalidade infinitamente desejável na tela: uma bela mulher que também era infantil, inocente e vulnerável.