Em meio à guerra, livro explica as fronteiras culturais e artísticas entre a Rússia e a Ucrânia


‘Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21′, organizado por Felipe Loureiro, conta esta história por meio de ensaios de 16 pesquisadores

Por João Marcos Coelho
Atualização:

É praticamente impossível estabelecer limites culturais e artísticos entre a Ucrânia e a Rússia, tamanho o grau em que elas historicamente estão “imbricadas”. O dicionário ensina que ser ou estar imbricado é estar estreitamente ligado ou relacionado com o outro, a ponto de ambos se confundirem mutuamente. É inegável, no entanto, que há séculos a cultura russa acolhe músicos, pintores, escritores, poetas ucranianos de um modo no mínimo discutível: carimba-os como glórias da cultura russa. Um esforço que não se deve imputar a Putin nem ao período em que ficou de pé a União Soviética, entre 1917 e 1990.

Ficamos surpresos ao saber que um dos grandes compositores russos do século 20, Sergei Prokofiev (1891-1953), é de fato ucraniano. Ele nasceu na pequena aldeia de Sontsovka, fundada em 1785 por um mandatário russo. No período soviético, virou Krasne; em 2016, quando um censo anotou 606 habitantes, voltou a ser Sontsovka.

Outros compositores genuinamente russos beberam bastante nas canções folclóricas ucranianas. Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893), por exemplo, recheia sua Segunda Sinfonia, apelidada “Rússia Pequena”, com canções ucranianas. Sua irmã mais nova, Alexandra Ilinishna, casou-se com Lev Davidov em 1860, e a propriedade Davidov em Kamenka, perto de Kiev, capital da Ucrânia, tornou-se um lar longe de casa para o compositor. O apelido dado por um crítico russo remete ao modo como a Rússia sempre tratou a Ucrânia, como “Rússia Pequena”, e a Bielorrússia, como “Rússia Branca”, opostos ao apelido do império, “Grande Rússia”.

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Outros artistas notáveis em geral apressadamente qualificados como russos incluem a maravilhosa, pungente, poeta Anna Akhmatova (1889-1966), nascida em Odessa, que sofreu barbaridades por se opor ao regime soviético. Ou o escultor e arquiteto Alexander Archipenko (1887-1964).

O compositor russo Tchaikovsky Foto: Domínio público

A leitura do Dictionnaire Amoureux de l’Ukraine, da violinista e ex-professora no Conservatório de Kiev Tetiana Andruchschuk (Ed. Plon, lançado em maio de 2022, após o início da Guerra), é mais do que memória sentimental de seu país. Tetiana, hoje radicada em Paris, desfaz distorções e constrói um poderoso e diversificado perfil cultural e artístico no qual nasceu e cresceu.

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No último ano, Valentin Silvestrov (85 anos), decano dos compositores ucranianos contemporâneos, só deixou Kiev depois de muita insistência de amigos, como o pianista russo Alexei Lubimov, que o refugiou na Polônia meses depois do início da invasão russa.

Em outubro passado, o comandante das tropas russas mandou executar o maestro ucraniano Yuriy Kerpatenko, por este recusar-se a participar de um concerto em sua cidade ocupada, Kherson. Segundo o ministro da Cultura ucraniano, Kerpatenko recusou-se a reger a orquestra de Camara Gileya “num concerto concebido pelos invasores para demonstrar a melhora e a vida pacífica em Kherson depois da chegada das tropas russas”. Desde maio passado, Kerpatenko vinha postando mensagens contra os invasores no Facebook. Foi executado em sua casa, diante da família.

Felipe Loureiro, historiador e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, organizou um livro coletivo precioso para se entender em todos os aspectos – políticos, ideológicos, econômicos – da guerra que recém completou seu primeiro ano sem perspectiva de término.

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Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21 (Boitempo, 2022) reúne 16 artigos de especialistas brasileiros e internacionais divididos em quatro partes: Antecedentes, A guerra e seus impactos, A guerra e o sistema internacional e A guerra e suas implicações de longo prazo para sistema internacional.

Confira trechos da entrevista

Kiev, capital da Ucrânia, foi primeira capital russa. Desde o século 10/11 as histórias dos dois países cruzam-se – na maior parte das vezes, sob tutela da Rússia. Além disso, há várias regiões em que há predominância de russos ou descendentes, que falam russo (e não ucraniano). Como distinguir, sobretudo no campo movediço da cultura e das artes, uma da outra?

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Há grandes interfaces e diálogos entre as culturas da Rússia e da Ucrânia. Essas interfaces passam, sobretudo, por histórias políticas e sociais profundamente interligadas, começando por uma base étnica semelhante (eslavos); uma estrutura linguística com enormes similaridades; o compartilhamento de organizações políticas congêneres (Rus Kievanos); e, principalmente, o peso de uma religião comum (cristianismo ortodoxo), com todo o impacto e influência que isso traz para tradições culturais de um povo.

Apesar disso, com o nascimento do moderno nacionalismo no século 19, há um esforço por parte de intelectuais nacionalistas ucranianos de sistematização e codificação de folclores e tradições populares, sobretudo de origem campesina, transformando-os em um substrato cultural distinto do da Rússia, e utilizando-os como justificativa para legitimar não somente a defesa de uma nação ucraniana distinta, mas também o direito de Kiev por um Estado nacional. Inicia-se aqui uma longa história de repressão de publicações e de expressões artísticas identificadas como ucranianas pela elite política russa, levando a fases de políticas de russificação mais ou menos intensas.

O fato de a cultura ucraniana ser permitida - e até estimulada, para se contrapor ao separatismo polonês - na porção austro-húngara do território da Ucrânia de hoje também foi usado por São Petersburgo como justificativa para reprimir duramente a cultura ucraniana em sua porção da então província da Ucrânia, tachando-se o nacionalismo ucraniano como uma conspiração de Viena para enfraquecer o império czarista. Com isso, toda e qualquer ascensão profissional e artística no império russo pré-1ª Guerra dependia da explícita incorporação da cultura russa - da língua falada e escrita a padrões estéticos e de vestimenta - como a única legítima no interior do império. Seria apenas com o surgimento da União Soviética, nos anos 1920, que se daria espaço para o florescimento de uma cultura ucraniana no território da Ucrânia de hoje, algo que, com o estalinismo nos anos 1930, e sobretudo pós-2ª Guerra Mundial, seria fortemente revertido, reiniciando-se políticas de russificação informais sobre a população da Ucrânia.

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A situação da Ucrânia em relação à Rússia é a mesma dos demais países do leste europeu? Faz sentido Putin afirmar que Ucrânia e Rússia são irmãs siamesas, ou seja, são na verdade um só país, uma só cultura?

Não, a situação da Ucrânia é diferente dos demais países da Europa do Leste. O compartilhamento cultural e os diálogos históricos entre Rússia e Ucrânia (e Belarus) são muito mais fortes. Além disso, a Rússia exerceu domínio político sobre o território de grande parte da Ucrânia de hoje desde o final do século 18, coisa que não ocorreu tão cedo para os demais territórios. O domínio russo/soviético sobre os países da Europa do Leste datou do pós-2ª Guerra Mundial.

Além disso, muitos desses Estados, como Polônia e Hungria, em particular, tiveram trajetórias bem mais longínquas do que a Ucrânia enquanto reinos independentes. Isso não quer dizer, porém, que Putin tem razão ao afirmar que as culturas russa e ucraniana seriam uma só.

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A perspectiva de Putin é hegemônica entre os nacionalistas radicais russos, que entendem a nação russa dentro de uma perspectiva pan-russa, ou seja, a nacionalidade russa englobando, como entidades subordinadas, principalmente duas outras nacionalidades: Ucrânia, vista como “Rússia Pequena”, e Belarus, “Rússia Branca”. Pesquisas de opinião mostram que essa perspectiva é rechaçada pela ampla maioria da sociedade ucraniana - e isso mesmo antes da invasão da Crimeia de 2014 e da Guerra da Ucrânia de 2022.

Bustos da iconografia soviética armazenados no Museu Nacional Andrey Sheptytsky, em Lviv, no oeste da Ucrânia, em foto de 4 de março de 2022, durante os conflitos com a Rússia. Foto: Bernat Armangue/AP Photo

A relação entre os dois países sempre foi de vassalagem ucraniana em relação à Rússia (inclusive e sobretudo no período 1917-1991, incluindo o Holodomor/Grande Fome no início dos anos 30). Não é estranho que as artes e a cultura se misturem o tempo todo?

Enquanto entidade política, Kiev esteve subordinada à Rússia em grande parte da sua história contemporânea (final do século 18 em diante). Mas houve momentos, curtos, é verdade, em que a elite política em Moscou valorizou e até incentivou o florescimento da cultura e das artes ucranianas, como se deu na década imediata após o nascimento da União Soviética.

Dito isso, é importante reconhecer que artistas e intelectuais do território da hoje Ucrânia - no período em que a região fazia parte do império russo - nasciam e cresciam imersos em um ambiente no qual expressões de particularidade cultural ucraniana eram contidas e/ou expressamente proibidas. Não à toa, muitos artistas escreverão romances e comporão obras em russo. Fazê-lo em ucraniano era não só impensável para muitos (quem leria?), como poderia significar o fim de uma carreira artística e intelectual.

Além disso, as principais formas de sociabilidade e de ascensão política e profissional para essas pessoas passavam, necessariamente, pela integração junto às elites políticas e culturais do centro do império russo, o que facilitou ainda mais o compartilhamento de padrões estéticos e de referências culturais.

Apesar disso, com o fortalecimento do nacionalismo moderno ucraniano no século 19, intelectuais nacionalistas passarão a clamar como seus, por exemplo, diversos artistas e intelectuais que nasceram e cresceram no território da então Ucrânia, mesmo que, em sua origem, esses artistas e intelectuais estivessem vinculados à única cultura legítima à época, isto é, à cultura russa.

Perto da Opera House de Odessa, o cenário é de guerra Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

Faz sentido decretar-se boicote à arte e cultura russa por causa da invasão (ou seja, por causa de Putin)? Como vê esta cena internacional conturbada, distorcida, misturando alhos com bugalhos, cancelando músicos, pintores, escritores?

Não faz sentido. As ações do governo da Rússia não podem ser identificadas com o cidadão russo, sobretudo levando em conta que estamos diante de um Estado crescentemente autoritário e cada vez mais fechado ao dissenso e à crítica. Nesse sentido, sanções econômicas e financeiras deveriam evitar ao máximo punir cidadãos comuns. Idem para artistas e intelectuais, sejam os de hoje, sejam os de ontem, que não deveriam ter suas obras e produções identificadas com o expansionismo e o militarismo russos.

Entendo que o tema ganha complexidade se estivéssemos falando (o que não é caso) de uma sociedade fascista, na qual, por exemplo, tivesse havido a clara cooptação de elites artísticas e intelectuais em prol de um projeto expansionista nacional e em apoio a políticas que estivessem produzindo gravíssimas violações de direitos humanos - como se deu durante a Alemanha nazista, por exemplo.

Mesmo nesse último caso, porém, entendo que só faria sentido discutir sanções para os artistas que estivessem diretamente vinculados ao projeto político fascista, e não para aqueles que, no presente e sobretudo no passado, nada tivessem a ver com tais questões.

É praticamente impossível estabelecer limites culturais e artísticos entre a Ucrânia e a Rússia, tamanho o grau em que elas historicamente estão “imbricadas”. O dicionário ensina que ser ou estar imbricado é estar estreitamente ligado ou relacionado com o outro, a ponto de ambos se confundirem mutuamente. É inegável, no entanto, que há séculos a cultura russa acolhe músicos, pintores, escritores, poetas ucranianos de um modo no mínimo discutível: carimba-os como glórias da cultura russa. Um esforço que não se deve imputar a Putin nem ao período em que ficou de pé a União Soviética, entre 1917 e 1990.

Ficamos surpresos ao saber que um dos grandes compositores russos do século 20, Sergei Prokofiev (1891-1953), é de fato ucraniano. Ele nasceu na pequena aldeia de Sontsovka, fundada em 1785 por um mandatário russo. No período soviético, virou Krasne; em 2016, quando um censo anotou 606 habitantes, voltou a ser Sontsovka.

Outros compositores genuinamente russos beberam bastante nas canções folclóricas ucranianas. Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893), por exemplo, recheia sua Segunda Sinfonia, apelidada “Rússia Pequena”, com canções ucranianas. Sua irmã mais nova, Alexandra Ilinishna, casou-se com Lev Davidov em 1860, e a propriedade Davidov em Kamenka, perto de Kiev, capital da Ucrânia, tornou-se um lar longe de casa para o compositor. O apelido dado por um crítico russo remete ao modo como a Rússia sempre tratou a Ucrânia, como “Rússia Pequena”, e a Bielorrússia, como “Rússia Branca”, opostos ao apelido do império, “Grande Rússia”.

Outros artistas notáveis em geral apressadamente qualificados como russos incluem a maravilhosa, pungente, poeta Anna Akhmatova (1889-1966), nascida em Odessa, que sofreu barbaridades por se opor ao regime soviético. Ou o escultor e arquiteto Alexander Archipenko (1887-1964).

O compositor russo Tchaikovsky Foto: Domínio público

A leitura do Dictionnaire Amoureux de l’Ukraine, da violinista e ex-professora no Conservatório de Kiev Tetiana Andruchschuk (Ed. Plon, lançado em maio de 2022, após o início da Guerra), é mais do que memória sentimental de seu país. Tetiana, hoje radicada em Paris, desfaz distorções e constrói um poderoso e diversificado perfil cultural e artístico no qual nasceu e cresceu.

No último ano, Valentin Silvestrov (85 anos), decano dos compositores ucranianos contemporâneos, só deixou Kiev depois de muita insistência de amigos, como o pianista russo Alexei Lubimov, que o refugiou na Polônia meses depois do início da invasão russa.

Em outubro passado, o comandante das tropas russas mandou executar o maestro ucraniano Yuriy Kerpatenko, por este recusar-se a participar de um concerto em sua cidade ocupada, Kherson. Segundo o ministro da Cultura ucraniano, Kerpatenko recusou-se a reger a orquestra de Camara Gileya “num concerto concebido pelos invasores para demonstrar a melhora e a vida pacífica em Kherson depois da chegada das tropas russas”. Desde maio passado, Kerpatenko vinha postando mensagens contra os invasores no Facebook. Foi executado em sua casa, diante da família.

Felipe Loureiro, historiador e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, organizou um livro coletivo precioso para se entender em todos os aspectos – políticos, ideológicos, econômicos – da guerra que recém completou seu primeiro ano sem perspectiva de término.

Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21 (Boitempo, 2022) reúne 16 artigos de especialistas brasileiros e internacionais divididos em quatro partes: Antecedentes, A guerra e seus impactos, A guerra e o sistema internacional e A guerra e suas implicações de longo prazo para sistema internacional.

Confira trechos da entrevista

Kiev, capital da Ucrânia, foi primeira capital russa. Desde o século 10/11 as histórias dos dois países cruzam-se – na maior parte das vezes, sob tutela da Rússia. Além disso, há várias regiões em que há predominância de russos ou descendentes, que falam russo (e não ucraniano). Como distinguir, sobretudo no campo movediço da cultura e das artes, uma da outra?

Há grandes interfaces e diálogos entre as culturas da Rússia e da Ucrânia. Essas interfaces passam, sobretudo, por histórias políticas e sociais profundamente interligadas, começando por uma base étnica semelhante (eslavos); uma estrutura linguística com enormes similaridades; o compartilhamento de organizações políticas congêneres (Rus Kievanos); e, principalmente, o peso de uma religião comum (cristianismo ortodoxo), com todo o impacto e influência que isso traz para tradições culturais de um povo.

Apesar disso, com o nascimento do moderno nacionalismo no século 19, há um esforço por parte de intelectuais nacionalistas ucranianos de sistematização e codificação de folclores e tradições populares, sobretudo de origem campesina, transformando-os em um substrato cultural distinto do da Rússia, e utilizando-os como justificativa para legitimar não somente a defesa de uma nação ucraniana distinta, mas também o direito de Kiev por um Estado nacional. Inicia-se aqui uma longa história de repressão de publicações e de expressões artísticas identificadas como ucranianas pela elite política russa, levando a fases de políticas de russificação mais ou menos intensas.

O fato de a cultura ucraniana ser permitida - e até estimulada, para se contrapor ao separatismo polonês - na porção austro-húngara do território da Ucrânia de hoje também foi usado por São Petersburgo como justificativa para reprimir duramente a cultura ucraniana em sua porção da então província da Ucrânia, tachando-se o nacionalismo ucraniano como uma conspiração de Viena para enfraquecer o império czarista. Com isso, toda e qualquer ascensão profissional e artística no império russo pré-1ª Guerra dependia da explícita incorporação da cultura russa - da língua falada e escrita a padrões estéticos e de vestimenta - como a única legítima no interior do império. Seria apenas com o surgimento da União Soviética, nos anos 1920, que se daria espaço para o florescimento de uma cultura ucraniana no território da Ucrânia de hoje, algo que, com o estalinismo nos anos 1930, e sobretudo pós-2ª Guerra Mundial, seria fortemente revertido, reiniciando-se políticas de russificação informais sobre a população da Ucrânia.

A situação da Ucrânia em relação à Rússia é a mesma dos demais países do leste europeu? Faz sentido Putin afirmar que Ucrânia e Rússia são irmãs siamesas, ou seja, são na verdade um só país, uma só cultura?

Não, a situação da Ucrânia é diferente dos demais países da Europa do Leste. O compartilhamento cultural e os diálogos históricos entre Rússia e Ucrânia (e Belarus) são muito mais fortes. Além disso, a Rússia exerceu domínio político sobre o território de grande parte da Ucrânia de hoje desde o final do século 18, coisa que não ocorreu tão cedo para os demais territórios. O domínio russo/soviético sobre os países da Europa do Leste datou do pós-2ª Guerra Mundial.

Além disso, muitos desses Estados, como Polônia e Hungria, em particular, tiveram trajetórias bem mais longínquas do que a Ucrânia enquanto reinos independentes. Isso não quer dizer, porém, que Putin tem razão ao afirmar que as culturas russa e ucraniana seriam uma só.

A perspectiva de Putin é hegemônica entre os nacionalistas radicais russos, que entendem a nação russa dentro de uma perspectiva pan-russa, ou seja, a nacionalidade russa englobando, como entidades subordinadas, principalmente duas outras nacionalidades: Ucrânia, vista como “Rússia Pequena”, e Belarus, “Rússia Branca”. Pesquisas de opinião mostram que essa perspectiva é rechaçada pela ampla maioria da sociedade ucraniana - e isso mesmo antes da invasão da Crimeia de 2014 e da Guerra da Ucrânia de 2022.

Bustos da iconografia soviética armazenados no Museu Nacional Andrey Sheptytsky, em Lviv, no oeste da Ucrânia, em foto de 4 de março de 2022, durante os conflitos com a Rússia. Foto: Bernat Armangue/AP Photo

A relação entre os dois países sempre foi de vassalagem ucraniana em relação à Rússia (inclusive e sobretudo no período 1917-1991, incluindo o Holodomor/Grande Fome no início dos anos 30). Não é estranho que as artes e a cultura se misturem o tempo todo?

Enquanto entidade política, Kiev esteve subordinada à Rússia em grande parte da sua história contemporânea (final do século 18 em diante). Mas houve momentos, curtos, é verdade, em que a elite política em Moscou valorizou e até incentivou o florescimento da cultura e das artes ucranianas, como se deu na década imediata após o nascimento da União Soviética.

Dito isso, é importante reconhecer que artistas e intelectuais do território da hoje Ucrânia - no período em que a região fazia parte do império russo - nasciam e cresciam imersos em um ambiente no qual expressões de particularidade cultural ucraniana eram contidas e/ou expressamente proibidas. Não à toa, muitos artistas escreverão romances e comporão obras em russo. Fazê-lo em ucraniano era não só impensável para muitos (quem leria?), como poderia significar o fim de uma carreira artística e intelectual.

Além disso, as principais formas de sociabilidade e de ascensão política e profissional para essas pessoas passavam, necessariamente, pela integração junto às elites políticas e culturais do centro do império russo, o que facilitou ainda mais o compartilhamento de padrões estéticos e de referências culturais.

Apesar disso, com o fortalecimento do nacionalismo moderno ucraniano no século 19, intelectuais nacionalistas passarão a clamar como seus, por exemplo, diversos artistas e intelectuais que nasceram e cresceram no território da então Ucrânia, mesmo que, em sua origem, esses artistas e intelectuais estivessem vinculados à única cultura legítima à época, isto é, à cultura russa.

Perto da Opera House de Odessa, o cenário é de guerra Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

Faz sentido decretar-se boicote à arte e cultura russa por causa da invasão (ou seja, por causa de Putin)? Como vê esta cena internacional conturbada, distorcida, misturando alhos com bugalhos, cancelando músicos, pintores, escritores?

Não faz sentido. As ações do governo da Rússia não podem ser identificadas com o cidadão russo, sobretudo levando em conta que estamos diante de um Estado crescentemente autoritário e cada vez mais fechado ao dissenso e à crítica. Nesse sentido, sanções econômicas e financeiras deveriam evitar ao máximo punir cidadãos comuns. Idem para artistas e intelectuais, sejam os de hoje, sejam os de ontem, que não deveriam ter suas obras e produções identificadas com o expansionismo e o militarismo russos.

Entendo que o tema ganha complexidade se estivéssemos falando (o que não é caso) de uma sociedade fascista, na qual, por exemplo, tivesse havido a clara cooptação de elites artísticas e intelectuais em prol de um projeto expansionista nacional e em apoio a políticas que estivessem produzindo gravíssimas violações de direitos humanos - como se deu durante a Alemanha nazista, por exemplo.

Mesmo nesse último caso, porém, entendo que só faria sentido discutir sanções para os artistas que estivessem diretamente vinculados ao projeto político fascista, e não para aqueles que, no presente e sobretudo no passado, nada tivessem a ver com tais questões.

É praticamente impossível estabelecer limites culturais e artísticos entre a Ucrânia e a Rússia, tamanho o grau em que elas historicamente estão “imbricadas”. O dicionário ensina que ser ou estar imbricado é estar estreitamente ligado ou relacionado com o outro, a ponto de ambos se confundirem mutuamente. É inegável, no entanto, que há séculos a cultura russa acolhe músicos, pintores, escritores, poetas ucranianos de um modo no mínimo discutível: carimba-os como glórias da cultura russa. Um esforço que não se deve imputar a Putin nem ao período em que ficou de pé a União Soviética, entre 1917 e 1990.

Ficamos surpresos ao saber que um dos grandes compositores russos do século 20, Sergei Prokofiev (1891-1953), é de fato ucraniano. Ele nasceu na pequena aldeia de Sontsovka, fundada em 1785 por um mandatário russo. No período soviético, virou Krasne; em 2016, quando um censo anotou 606 habitantes, voltou a ser Sontsovka.

Outros compositores genuinamente russos beberam bastante nas canções folclóricas ucranianas. Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893), por exemplo, recheia sua Segunda Sinfonia, apelidada “Rússia Pequena”, com canções ucranianas. Sua irmã mais nova, Alexandra Ilinishna, casou-se com Lev Davidov em 1860, e a propriedade Davidov em Kamenka, perto de Kiev, capital da Ucrânia, tornou-se um lar longe de casa para o compositor. O apelido dado por um crítico russo remete ao modo como a Rússia sempre tratou a Ucrânia, como “Rússia Pequena”, e a Bielorrússia, como “Rússia Branca”, opostos ao apelido do império, “Grande Rússia”.

Outros artistas notáveis em geral apressadamente qualificados como russos incluem a maravilhosa, pungente, poeta Anna Akhmatova (1889-1966), nascida em Odessa, que sofreu barbaridades por se opor ao regime soviético. Ou o escultor e arquiteto Alexander Archipenko (1887-1964).

O compositor russo Tchaikovsky Foto: Domínio público

A leitura do Dictionnaire Amoureux de l’Ukraine, da violinista e ex-professora no Conservatório de Kiev Tetiana Andruchschuk (Ed. Plon, lançado em maio de 2022, após o início da Guerra), é mais do que memória sentimental de seu país. Tetiana, hoje radicada em Paris, desfaz distorções e constrói um poderoso e diversificado perfil cultural e artístico no qual nasceu e cresceu.

No último ano, Valentin Silvestrov (85 anos), decano dos compositores ucranianos contemporâneos, só deixou Kiev depois de muita insistência de amigos, como o pianista russo Alexei Lubimov, que o refugiou na Polônia meses depois do início da invasão russa.

Em outubro passado, o comandante das tropas russas mandou executar o maestro ucraniano Yuriy Kerpatenko, por este recusar-se a participar de um concerto em sua cidade ocupada, Kherson. Segundo o ministro da Cultura ucraniano, Kerpatenko recusou-se a reger a orquestra de Camara Gileya “num concerto concebido pelos invasores para demonstrar a melhora e a vida pacífica em Kherson depois da chegada das tropas russas”. Desde maio passado, Kerpatenko vinha postando mensagens contra os invasores no Facebook. Foi executado em sua casa, diante da família.

Felipe Loureiro, historiador e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, organizou um livro coletivo precioso para se entender em todos os aspectos – políticos, ideológicos, econômicos – da guerra que recém completou seu primeiro ano sem perspectiva de término.

Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21 (Boitempo, 2022) reúne 16 artigos de especialistas brasileiros e internacionais divididos em quatro partes: Antecedentes, A guerra e seus impactos, A guerra e o sistema internacional e A guerra e suas implicações de longo prazo para sistema internacional.

Confira trechos da entrevista

Kiev, capital da Ucrânia, foi primeira capital russa. Desde o século 10/11 as histórias dos dois países cruzam-se – na maior parte das vezes, sob tutela da Rússia. Além disso, há várias regiões em que há predominância de russos ou descendentes, que falam russo (e não ucraniano). Como distinguir, sobretudo no campo movediço da cultura e das artes, uma da outra?

Há grandes interfaces e diálogos entre as culturas da Rússia e da Ucrânia. Essas interfaces passam, sobretudo, por histórias políticas e sociais profundamente interligadas, começando por uma base étnica semelhante (eslavos); uma estrutura linguística com enormes similaridades; o compartilhamento de organizações políticas congêneres (Rus Kievanos); e, principalmente, o peso de uma religião comum (cristianismo ortodoxo), com todo o impacto e influência que isso traz para tradições culturais de um povo.

Apesar disso, com o nascimento do moderno nacionalismo no século 19, há um esforço por parte de intelectuais nacionalistas ucranianos de sistematização e codificação de folclores e tradições populares, sobretudo de origem campesina, transformando-os em um substrato cultural distinto do da Rússia, e utilizando-os como justificativa para legitimar não somente a defesa de uma nação ucraniana distinta, mas também o direito de Kiev por um Estado nacional. Inicia-se aqui uma longa história de repressão de publicações e de expressões artísticas identificadas como ucranianas pela elite política russa, levando a fases de políticas de russificação mais ou menos intensas.

O fato de a cultura ucraniana ser permitida - e até estimulada, para se contrapor ao separatismo polonês - na porção austro-húngara do território da Ucrânia de hoje também foi usado por São Petersburgo como justificativa para reprimir duramente a cultura ucraniana em sua porção da então província da Ucrânia, tachando-se o nacionalismo ucraniano como uma conspiração de Viena para enfraquecer o império czarista. Com isso, toda e qualquer ascensão profissional e artística no império russo pré-1ª Guerra dependia da explícita incorporação da cultura russa - da língua falada e escrita a padrões estéticos e de vestimenta - como a única legítima no interior do império. Seria apenas com o surgimento da União Soviética, nos anos 1920, que se daria espaço para o florescimento de uma cultura ucraniana no território da Ucrânia de hoje, algo que, com o estalinismo nos anos 1930, e sobretudo pós-2ª Guerra Mundial, seria fortemente revertido, reiniciando-se políticas de russificação informais sobre a população da Ucrânia.

A situação da Ucrânia em relação à Rússia é a mesma dos demais países do leste europeu? Faz sentido Putin afirmar que Ucrânia e Rússia são irmãs siamesas, ou seja, são na verdade um só país, uma só cultura?

Não, a situação da Ucrânia é diferente dos demais países da Europa do Leste. O compartilhamento cultural e os diálogos históricos entre Rússia e Ucrânia (e Belarus) são muito mais fortes. Além disso, a Rússia exerceu domínio político sobre o território de grande parte da Ucrânia de hoje desde o final do século 18, coisa que não ocorreu tão cedo para os demais territórios. O domínio russo/soviético sobre os países da Europa do Leste datou do pós-2ª Guerra Mundial.

Além disso, muitos desses Estados, como Polônia e Hungria, em particular, tiveram trajetórias bem mais longínquas do que a Ucrânia enquanto reinos independentes. Isso não quer dizer, porém, que Putin tem razão ao afirmar que as culturas russa e ucraniana seriam uma só.

A perspectiva de Putin é hegemônica entre os nacionalistas radicais russos, que entendem a nação russa dentro de uma perspectiva pan-russa, ou seja, a nacionalidade russa englobando, como entidades subordinadas, principalmente duas outras nacionalidades: Ucrânia, vista como “Rússia Pequena”, e Belarus, “Rússia Branca”. Pesquisas de opinião mostram que essa perspectiva é rechaçada pela ampla maioria da sociedade ucraniana - e isso mesmo antes da invasão da Crimeia de 2014 e da Guerra da Ucrânia de 2022.

Bustos da iconografia soviética armazenados no Museu Nacional Andrey Sheptytsky, em Lviv, no oeste da Ucrânia, em foto de 4 de março de 2022, durante os conflitos com a Rússia. Foto: Bernat Armangue/AP Photo

A relação entre os dois países sempre foi de vassalagem ucraniana em relação à Rússia (inclusive e sobretudo no período 1917-1991, incluindo o Holodomor/Grande Fome no início dos anos 30). Não é estranho que as artes e a cultura se misturem o tempo todo?

Enquanto entidade política, Kiev esteve subordinada à Rússia em grande parte da sua história contemporânea (final do século 18 em diante). Mas houve momentos, curtos, é verdade, em que a elite política em Moscou valorizou e até incentivou o florescimento da cultura e das artes ucranianas, como se deu na década imediata após o nascimento da União Soviética.

Dito isso, é importante reconhecer que artistas e intelectuais do território da hoje Ucrânia - no período em que a região fazia parte do império russo - nasciam e cresciam imersos em um ambiente no qual expressões de particularidade cultural ucraniana eram contidas e/ou expressamente proibidas. Não à toa, muitos artistas escreverão romances e comporão obras em russo. Fazê-lo em ucraniano era não só impensável para muitos (quem leria?), como poderia significar o fim de uma carreira artística e intelectual.

Além disso, as principais formas de sociabilidade e de ascensão política e profissional para essas pessoas passavam, necessariamente, pela integração junto às elites políticas e culturais do centro do império russo, o que facilitou ainda mais o compartilhamento de padrões estéticos e de referências culturais.

Apesar disso, com o fortalecimento do nacionalismo moderno ucraniano no século 19, intelectuais nacionalistas passarão a clamar como seus, por exemplo, diversos artistas e intelectuais que nasceram e cresceram no território da então Ucrânia, mesmo que, em sua origem, esses artistas e intelectuais estivessem vinculados à única cultura legítima à época, isto é, à cultura russa.

Perto da Opera House de Odessa, o cenário é de guerra Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

Faz sentido decretar-se boicote à arte e cultura russa por causa da invasão (ou seja, por causa de Putin)? Como vê esta cena internacional conturbada, distorcida, misturando alhos com bugalhos, cancelando músicos, pintores, escritores?

Não faz sentido. As ações do governo da Rússia não podem ser identificadas com o cidadão russo, sobretudo levando em conta que estamos diante de um Estado crescentemente autoritário e cada vez mais fechado ao dissenso e à crítica. Nesse sentido, sanções econômicas e financeiras deveriam evitar ao máximo punir cidadãos comuns. Idem para artistas e intelectuais, sejam os de hoje, sejam os de ontem, que não deveriam ter suas obras e produções identificadas com o expansionismo e o militarismo russos.

Entendo que o tema ganha complexidade se estivéssemos falando (o que não é caso) de uma sociedade fascista, na qual, por exemplo, tivesse havido a clara cooptação de elites artísticas e intelectuais em prol de um projeto expansionista nacional e em apoio a políticas que estivessem produzindo gravíssimas violações de direitos humanos - como se deu durante a Alemanha nazista, por exemplo.

Mesmo nesse último caso, porém, entendo que só faria sentido discutir sanções para os artistas que estivessem diretamente vinculados ao projeto político fascista, e não para aqueles que, no presente e sobretudo no passado, nada tivessem a ver com tais questões.

É praticamente impossível estabelecer limites culturais e artísticos entre a Ucrânia e a Rússia, tamanho o grau em que elas historicamente estão “imbricadas”. O dicionário ensina que ser ou estar imbricado é estar estreitamente ligado ou relacionado com o outro, a ponto de ambos se confundirem mutuamente. É inegável, no entanto, que há séculos a cultura russa acolhe músicos, pintores, escritores, poetas ucranianos de um modo no mínimo discutível: carimba-os como glórias da cultura russa. Um esforço que não se deve imputar a Putin nem ao período em que ficou de pé a União Soviética, entre 1917 e 1990.

Ficamos surpresos ao saber que um dos grandes compositores russos do século 20, Sergei Prokofiev (1891-1953), é de fato ucraniano. Ele nasceu na pequena aldeia de Sontsovka, fundada em 1785 por um mandatário russo. No período soviético, virou Krasne; em 2016, quando um censo anotou 606 habitantes, voltou a ser Sontsovka.

Outros compositores genuinamente russos beberam bastante nas canções folclóricas ucranianas. Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893), por exemplo, recheia sua Segunda Sinfonia, apelidada “Rússia Pequena”, com canções ucranianas. Sua irmã mais nova, Alexandra Ilinishna, casou-se com Lev Davidov em 1860, e a propriedade Davidov em Kamenka, perto de Kiev, capital da Ucrânia, tornou-se um lar longe de casa para o compositor. O apelido dado por um crítico russo remete ao modo como a Rússia sempre tratou a Ucrânia, como “Rússia Pequena”, e a Bielorrússia, como “Rússia Branca”, opostos ao apelido do império, “Grande Rússia”.

Outros artistas notáveis em geral apressadamente qualificados como russos incluem a maravilhosa, pungente, poeta Anna Akhmatova (1889-1966), nascida em Odessa, que sofreu barbaridades por se opor ao regime soviético. Ou o escultor e arquiteto Alexander Archipenko (1887-1964).

O compositor russo Tchaikovsky Foto: Domínio público

A leitura do Dictionnaire Amoureux de l’Ukraine, da violinista e ex-professora no Conservatório de Kiev Tetiana Andruchschuk (Ed. Plon, lançado em maio de 2022, após o início da Guerra), é mais do que memória sentimental de seu país. Tetiana, hoje radicada em Paris, desfaz distorções e constrói um poderoso e diversificado perfil cultural e artístico no qual nasceu e cresceu.

No último ano, Valentin Silvestrov (85 anos), decano dos compositores ucranianos contemporâneos, só deixou Kiev depois de muita insistência de amigos, como o pianista russo Alexei Lubimov, que o refugiou na Polônia meses depois do início da invasão russa.

Em outubro passado, o comandante das tropas russas mandou executar o maestro ucraniano Yuriy Kerpatenko, por este recusar-se a participar de um concerto em sua cidade ocupada, Kherson. Segundo o ministro da Cultura ucraniano, Kerpatenko recusou-se a reger a orquestra de Camara Gileya “num concerto concebido pelos invasores para demonstrar a melhora e a vida pacífica em Kherson depois da chegada das tropas russas”. Desde maio passado, Kerpatenko vinha postando mensagens contra os invasores no Facebook. Foi executado em sua casa, diante da família.

Felipe Loureiro, historiador e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, organizou um livro coletivo precioso para se entender em todos os aspectos – políticos, ideológicos, econômicos – da guerra que recém completou seu primeiro ano sem perspectiva de término.

Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21 (Boitempo, 2022) reúne 16 artigos de especialistas brasileiros e internacionais divididos em quatro partes: Antecedentes, A guerra e seus impactos, A guerra e o sistema internacional e A guerra e suas implicações de longo prazo para sistema internacional.

Confira trechos da entrevista

Kiev, capital da Ucrânia, foi primeira capital russa. Desde o século 10/11 as histórias dos dois países cruzam-se – na maior parte das vezes, sob tutela da Rússia. Além disso, há várias regiões em que há predominância de russos ou descendentes, que falam russo (e não ucraniano). Como distinguir, sobretudo no campo movediço da cultura e das artes, uma da outra?

Há grandes interfaces e diálogos entre as culturas da Rússia e da Ucrânia. Essas interfaces passam, sobretudo, por histórias políticas e sociais profundamente interligadas, começando por uma base étnica semelhante (eslavos); uma estrutura linguística com enormes similaridades; o compartilhamento de organizações políticas congêneres (Rus Kievanos); e, principalmente, o peso de uma religião comum (cristianismo ortodoxo), com todo o impacto e influência que isso traz para tradições culturais de um povo.

Apesar disso, com o nascimento do moderno nacionalismo no século 19, há um esforço por parte de intelectuais nacionalistas ucranianos de sistematização e codificação de folclores e tradições populares, sobretudo de origem campesina, transformando-os em um substrato cultural distinto do da Rússia, e utilizando-os como justificativa para legitimar não somente a defesa de uma nação ucraniana distinta, mas também o direito de Kiev por um Estado nacional. Inicia-se aqui uma longa história de repressão de publicações e de expressões artísticas identificadas como ucranianas pela elite política russa, levando a fases de políticas de russificação mais ou menos intensas.

O fato de a cultura ucraniana ser permitida - e até estimulada, para se contrapor ao separatismo polonês - na porção austro-húngara do território da Ucrânia de hoje também foi usado por São Petersburgo como justificativa para reprimir duramente a cultura ucraniana em sua porção da então província da Ucrânia, tachando-se o nacionalismo ucraniano como uma conspiração de Viena para enfraquecer o império czarista. Com isso, toda e qualquer ascensão profissional e artística no império russo pré-1ª Guerra dependia da explícita incorporação da cultura russa - da língua falada e escrita a padrões estéticos e de vestimenta - como a única legítima no interior do império. Seria apenas com o surgimento da União Soviética, nos anos 1920, que se daria espaço para o florescimento de uma cultura ucraniana no território da Ucrânia de hoje, algo que, com o estalinismo nos anos 1930, e sobretudo pós-2ª Guerra Mundial, seria fortemente revertido, reiniciando-se políticas de russificação informais sobre a população da Ucrânia.

A situação da Ucrânia em relação à Rússia é a mesma dos demais países do leste europeu? Faz sentido Putin afirmar que Ucrânia e Rússia são irmãs siamesas, ou seja, são na verdade um só país, uma só cultura?

Não, a situação da Ucrânia é diferente dos demais países da Europa do Leste. O compartilhamento cultural e os diálogos históricos entre Rússia e Ucrânia (e Belarus) são muito mais fortes. Além disso, a Rússia exerceu domínio político sobre o território de grande parte da Ucrânia de hoje desde o final do século 18, coisa que não ocorreu tão cedo para os demais territórios. O domínio russo/soviético sobre os países da Europa do Leste datou do pós-2ª Guerra Mundial.

Além disso, muitos desses Estados, como Polônia e Hungria, em particular, tiveram trajetórias bem mais longínquas do que a Ucrânia enquanto reinos independentes. Isso não quer dizer, porém, que Putin tem razão ao afirmar que as culturas russa e ucraniana seriam uma só.

A perspectiva de Putin é hegemônica entre os nacionalistas radicais russos, que entendem a nação russa dentro de uma perspectiva pan-russa, ou seja, a nacionalidade russa englobando, como entidades subordinadas, principalmente duas outras nacionalidades: Ucrânia, vista como “Rússia Pequena”, e Belarus, “Rússia Branca”. Pesquisas de opinião mostram que essa perspectiva é rechaçada pela ampla maioria da sociedade ucraniana - e isso mesmo antes da invasão da Crimeia de 2014 e da Guerra da Ucrânia de 2022.

Bustos da iconografia soviética armazenados no Museu Nacional Andrey Sheptytsky, em Lviv, no oeste da Ucrânia, em foto de 4 de março de 2022, durante os conflitos com a Rússia. Foto: Bernat Armangue/AP Photo

A relação entre os dois países sempre foi de vassalagem ucraniana em relação à Rússia (inclusive e sobretudo no período 1917-1991, incluindo o Holodomor/Grande Fome no início dos anos 30). Não é estranho que as artes e a cultura se misturem o tempo todo?

Enquanto entidade política, Kiev esteve subordinada à Rússia em grande parte da sua história contemporânea (final do século 18 em diante). Mas houve momentos, curtos, é verdade, em que a elite política em Moscou valorizou e até incentivou o florescimento da cultura e das artes ucranianas, como se deu na década imediata após o nascimento da União Soviética.

Dito isso, é importante reconhecer que artistas e intelectuais do território da hoje Ucrânia - no período em que a região fazia parte do império russo - nasciam e cresciam imersos em um ambiente no qual expressões de particularidade cultural ucraniana eram contidas e/ou expressamente proibidas. Não à toa, muitos artistas escreverão romances e comporão obras em russo. Fazê-lo em ucraniano era não só impensável para muitos (quem leria?), como poderia significar o fim de uma carreira artística e intelectual.

Além disso, as principais formas de sociabilidade e de ascensão política e profissional para essas pessoas passavam, necessariamente, pela integração junto às elites políticas e culturais do centro do império russo, o que facilitou ainda mais o compartilhamento de padrões estéticos e de referências culturais.

Apesar disso, com o fortalecimento do nacionalismo moderno ucraniano no século 19, intelectuais nacionalistas passarão a clamar como seus, por exemplo, diversos artistas e intelectuais que nasceram e cresceram no território da então Ucrânia, mesmo que, em sua origem, esses artistas e intelectuais estivessem vinculados à única cultura legítima à época, isto é, à cultura russa.

Perto da Opera House de Odessa, o cenário é de guerra Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

Faz sentido decretar-se boicote à arte e cultura russa por causa da invasão (ou seja, por causa de Putin)? Como vê esta cena internacional conturbada, distorcida, misturando alhos com bugalhos, cancelando músicos, pintores, escritores?

Não faz sentido. As ações do governo da Rússia não podem ser identificadas com o cidadão russo, sobretudo levando em conta que estamos diante de um Estado crescentemente autoritário e cada vez mais fechado ao dissenso e à crítica. Nesse sentido, sanções econômicas e financeiras deveriam evitar ao máximo punir cidadãos comuns. Idem para artistas e intelectuais, sejam os de hoje, sejam os de ontem, que não deveriam ter suas obras e produções identificadas com o expansionismo e o militarismo russos.

Entendo que o tema ganha complexidade se estivéssemos falando (o que não é caso) de uma sociedade fascista, na qual, por exemplo, tivesse havido a clara cooptação de elites artísticas e intelectuais em prol de um projeto expansionista nacional e em apoio a políticas que estivessem produzindo gravíssimas violações de direitos humanos - como se deu durante a Alemanha nazista, por exemplo.

Mesmo nesse último caso, porém, entendo que só faria sentido discutir sanções para os artistas que estivessem diretamente vinculados ao projeto político fascista, e não para aqueles que, no presente e sobretudo no passado, nada tivessem a ver com tais questões.

É praticamente impossível estabelecer limites culturais e artísticos entre a Ucrânia e a Rússia, tamanho o grau em que elas historicamente estão “imbricadas”. O dicionário ensina que ser ou estar imbricado é estar estreitamente ligado ou relacionado com o outro, a ponto de ambos se confundirem mutuamente. É inegável, no entanto, que há séculos a cultura russa acolhe músicos, pintores, escritores, poetas ucranianos de um modo no mínimo discutível: carimba-os como glórias da cultura russa. Um esforço que não se deve imputar a Putin nem ao período em que ficou de pé a União Soviética, entre 1917 e 1990.

Ficamos surpresos ao saber que um dos grandes compositores russos do século 20, Sergei Prokofiev (1891-1953), é de fato ucraniano. Ele nasceu na pequena aldeia de Sontsovka, fundada em 1785 por um mandatário russo. No período soviético, virou Krasne; em 2016, quando um censo anotou 606 habitantes, voltou a ser Sontsovka.

Outros compositores genuinamente russos beberam bastante nas canções folclóricas ucranianas. Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893), por exemplo, recheia sua Segunda Sinfonia, apelidada “Rússia Pequena”, com canções ucranianas. Sua irmã mais nova, Alexandra Ilinishna, casou-se com Lev Davidov em 1860, e a propriedade Davidov em Kamenka, perto de Kiev, capital da Ucrânia, tornou-se um lar longe de casa para o compositor. O apelido dado por um crítico russo remete ao modo como a Rússia sempre tratou a Ucrânia, como “Rússia Pequena”, e a Bielorrússia, como “Rússia Branca”, opostos ao apelido do império, “Grande Rússia”.

Outros artistas notáveis em geral apressadamente qualificados como russos incluem a maravilhosa, pungente, poeta Anna Akhmatova (1889-1966), nascida em Odessa, que sofreu barbaridades por se opor ao regime soviético. Ou o escultor e arquiteto Alexander Archipenko (1887-1964).

O compositor russo Tchaikovsky Foto: Domínio público

A leitura do Dictionnaire Amoureux de l’Ukraine, da violinista e ex-professora no Conservatório de Kiev Tetiana Andruchschuk (Ed. Plon, lançado em maio de 2022, após o início da Guerra), é mais do que memória sentimental de seu país. Tetiana, hoje radicada em Paris, desfaz distorções e constrói um poderoso e diversificado perfil cultural e artístico no qual nasceu e cresceu.

No último ano, Valentin Silvestrov (85 anos), decano dos compositores ucranianos contemporâneos, só deixou Kiev depois de muita insistência de amigos, como o pianista russo Alexei Lubimov, que o refugiou na Polônia meses depois do início da invasão russa.

Em outubro passado, o comandante das tropas russas mandou executar o maestro ucraniano Yuriy Kerpatenko, por este recusar-se a participar de um concerto em sua cidade ocupada, Kherson. Segundo o ministro da Cultura ucraniano, Kerpatenko recusou-se a reger a orquestra de Camara Gileya “num concerto concebido pelos invasores para demonstrar a melhora e a vida pacífica em Kherson depois da chegada das tropas russas”. Desde maio passado, Kerpatenko vinha postando mensagens contra os invasores no Facebook. Foi executado em sua casa, diante da família.

Felipe Loureiro, historiador e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, organizou um livro coletivo precioso para se entender em todos os aspectos – políticos, ideológicos, econômicos – da guerra que recém completou seu primeiro ano sem perspectiva de término.

Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21 (Boitempo, 2022) reúne 16 artigos de especialistas brasileiros e internacionais divididos em quatro partes: Antecedentes, A guerra e seus impactos, A guerra e o sistema internacional e A guerra e suas implicações de longo prazo para sistema internacional.

Confira trechos da entrevista

Kiev, capital da Ucrânia, foi primeira capital russa. Desde o século 10/11 as histórias dos dois países cruzam-se – na maior parte das vezes, sob tutela da Rússia. Além disso, há várias regiões em que há predominância de russos ou descendentes, que falam russo (e não ucraniano). Como distinguir, sobretudo no campo movediço da cultura e das artes, uma da outra?

Há grandes interfaces e diálogos entre as culturas da Rússia e da Ucrânia. Essas interfaces passam, sobretudo, por histórias políticas e sociais profundamente interligadas, começando por uma base étnica semelhante (eslavos); uma estrutura linguística com enormes similaridades; o compartilhamento de organizações políticas congêneres (Rus Kievanos); e, principalmente, o peso de uma religião comum (cristianismo ortodoxo), com todo o impacto e influência que isso traz para tradições culturais de um povo.

Apesar disso, com o nascimento do moderno nacionalismo no século 19, há um esforço por parte de intelectuais nacionalistas ucranianos de sistematização e codificação de folclores e tradições populares, sobretudo de origem campesina, transformando-os em um substrato cultural distinto do da Rússia, e utilizando-os como justificativa para legitimar não somente a defesa de uma nação ucraniana distinta, mas também o direito de Kiev por um Estado nacional. Inicia-se aqui uma longa história de repressão de publicações e de expressões artísticas identificadas como ucranianas pela elite política russa, levando a fases de políticas de russificação mais ou menos intensas.

O fato de a cultura ucraniana ser permitida - e até estimulada, para se contrapor ao separatismo polonês - na porção austro-húngara do território da Ucrânia de hoje também foi usado por São Petersburgo como justificativa para reprimir duramente a cultura ucraniana em sua porção da então província da Ucrânia, tachando-se o nacionalismo ucraniano como uma conspiração de Viena para enfraquecer o império czarista. Com isso, toda e qualquer ascensão profissional e artística no império russo pré-1ª Guerra dependia da explícita incorporação da cultura russa - da língua falada e escrita a padrões estéticos e de vestimenta - como a única legítima no interior do império. Seria apenas com o surgimento da União Soviética, nos anos 1920, que se daria espaço para o florescimento de uma cultura ucraniana no território da Ucrânia de hoje, algo que, com o estalinismo nos anos 1930, e sobretudo pós-2ª Guerra Mundial, seria fortemente revertido, reiniciando-se políticas de russificação informais sobre a população da Ucrânia.

A situação da Ucrânia em relação à Rússia é a mesma dos demais países do leste europeu? Faz sentido Putin afirmar que Ucrânia e Rússia são irmãs siamesas, ou seja, são na verdade um só país, uma só cultura?

Não, a situação da Ucrânia é diferente dos demais países da Europa do Leste. O compartilhamento cultural e os diálogos históricos entre Rússia e Ucrânia (e Belarus) são muito mais fortes. Além disso, a Rússia exerceu domínio político sobre o território de grande parte da Ucrânia de hoje desde o final do século 18, coisa que não ocorreu tão cedo para os demais territórios. O domínio russo/soviético sobre os países da Europa do Leste datou do pós-2ª Guerra Mundial.

Além disso, muitos desses Estados, como Polônia e Hungria, em particular, tiveram trajetórias bem mais longínquas do que a Ucrânia enquanto reinos independentes. Isso não quer dizer, porém, que Putin tem razão ao afirmar que as culturas russa e ucraniana seriam uma só.

A perspectiva de Putin é hegemônica entre os nacionalistas radicais russos, que entendem a nação russa dentro de uma perspectiva pan-russa, ou seja, a nacionalidade russa englobando, como entidades subordinadas, principalmente duas outras nacionalidades: Ucrânia, vista como “Rússia Pequena”, e Belarus, “Rússia Branca”. Pesquisas de opinião mostram que essa perspectiva é rechaçada pela ampla maioria da sociedade ucraniana - e isso mesmo antes da invasão da Crimeia de 2014 e da Guerra da Ucrânia de 2022.

Bustos da iconografia soviética armazenados no Museu Nacional Andrey Sheptytsky, em Lviv, no oeste da Ucrânia, em foto de 4 de março de 2022, durante os conflitos com a Rússia. Foto: Bernat Armangue/AP Photo

A relação entre os dois países sempre foi de vassalagem ucraniana em relação à Rússia (inclusive e sobretudo no período 1917-1991, incluindo o Holodomor/Grande Fome no início dos anos 30). Não é estranho que as artes e a cultura se misturem o tempo todo?

Enquanto entidade política, Kiev esteve subordinada à Rússia em grande parte da sua história contemporânea (final do século 18 em diante). Mas houve momentos, curtos, é verdade, em que a elite política em Moscou valorizou e até incentivou o florescimento da cultura e das artes ucranianas, como se deu na década imediata após o nascimento da União Soviética.

Dito isso, é importante reconhecer que artistas e intelectuais do território da hoje Ucrânia - no período em que a região fazia parte do império russo - nasciam e cresciam imersos em um ambiente no qual expressões de particularidade cultural ucraniana eram contidas e/ou expressamente proibidas. Não à toa, muitos artistas escreverão romances e comporão obras em russo. Fazê-lo em ucraniano era não só impensável para muitos (quem leria?), como poderia significar o fim de uma carreira artística e intelectual.

Além disso, as principais formas de sociabilidade e de ascensão política e profissional para essas pessoas passavam, necessariamente, pela integração junto às elites políticas e culturais do centro do império russo, o que facilitou ainda mais o compartilhamento de padrões estéticos e de referências culturais.

Apesar disso, com o fortalecimento do nacionalismo moderno ucraniano no século 19, intelectuais nacionalistas passarão a clamar como seus, por exemplo, diversos artistas e intelectuais que nasceram e cresceram no território da então Ucrânia, mesmo que, em sua origem, esses artistas e intelectuais estivessem vinculados à única cultura legítima à época, isto é, à cultura russa.

Perto da Opera House de Odessa, o cenário é de guerra Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

Faz sentido decretar-se boicote à arte e cultura russa por causa da invasão (ou seja, por causa de Putin)? Como vê esta cena internacional conturbada, distorcida, misturando alhos com bugalhos, cancelando músicos, pintores, escritores?

Não faz sentido. As ações do governo da Rússia não podem ser identificadas com o cidadão russo, sobretudo levando em conta que estamos diante de um Estado crescentemente autoritário e cada vez mais fechado ao dissenso e à crítica. Nesse sentido, sanções econômicas e financeiras deveriam evitar ao máximo punir cidadãos comuns. Idem para artistas e intelectuais, sejam os de hoje, sejam os de ontem, que não deveriam ter suas obras e produções identificadas com o expansionismo e o militarismo russos.

Entendo que o tema ganha complexidade se estivéssemos falando (o que não é caso) de uma sociedade fascista, na qual, por exemplo, tivesse havido a clara cooptação de elites artísticas e intelectuais em prol de um projeto expansionista nacional e em apoio a políticas que estivessem produzindo gravíssimas violações de direitos humanos - como se deu durante a Alemanha nazista, por exemplo.

Mesmo nesse último caso, porém, entendo que só faria sentido discutir sanções para os artistas que estivessem diretamente vinculados ao projeto político fascista, e não para aqueles que, no presente e sobretudo no passado, nada tivessem a ver com tais questões.

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