Em seu novo livro, a escritora Isabel Allende mostra que a literatura latino-americana vibra, assim como quando lançou seu romance de estreia, Casa dos Espíritos (1982), há quarenta anos. O trabalho mais recente da autora, Violeta (Record, 2022), repete o tom épico do primeiro livro, costurando as linhas que conectam personagens e episódios históricos de ambas obras.
Sugere-se portanto, dois caminhos aos leitores. Primeiro, para aqueles que já leram Casa dos Espíritos, a leitura de Violeta é praticamente obrigatória. Pode-se reler Casa dos Espíritos antes (para fruir o clássico com as lentes do tempo presente) ou não. Segundo, para quem não leu Casa dos Espíritos, leia Violeta antes e faça o caminho inverso e a experiência literária será igualmente prazerosa.
A leitura dos dois livros não serve para completar brechas, mas sim para expandir o horizonte da paisagem — humana e histórica — compartilhado pelos dois romances. Nas duas obras, Allende adota a estratégia de narrar sagas familiares e suas minúcias para culminar na denúncia da violência de estado cometida durante a ditadura militar chilena. Tal recurso literário faz com que Violeta também possua um tom épico. Este, porém, avança mais no tempo. São cem anos de história, de 1920 até 2020, anos de nascimento e morte da protagonista, Violeta, que dá título ao romance. A personagem rememora sua vida escrevendo para o neto Camilo. É através do seu próprio ponto de vista que ficamos a par dos acontecimentos da família Del Valle e também do país, o Chile.
O sobrenome indica o parentesco de Violeta com Clara, a protagonista com poderes mediúnicos de A Casa dos Espíritos: Clara é tia de Violeta. Porém, a tia não aparece na obra, sendo brevemente referenciada por meio de sua mãe, Nívea, avó de Violeta. “Fiquei sabendo que a vovó Nívea, mãe de meu pai, tinha morrido decapitada num terrível acidente de automóvel, e que sua cabeça tinha sumido num pasto; que existia uma tia capaz de falar com os espíritos, e que houve um cachorro que cresceu, cresceu, até atingir o tamanho de um dromedário”, conta a narradora sobre a excêntrica família do pai com suas mulheres de cabelos naturalmente verdes como sereias.
Os cem anos de vida de Violeta são marcados por duas pandemias. A primeira, em 1920, com a gripe espanhola. Como a própria narradora explica, a influenza chegou ao Chile com quase dois anos de atraso. “Segundo a comunidade científica, tínhamos ficado livres do contágio graças ao isolamento geográfico, com a barreira natural das montanhas por um lado e do oceano pelo outro”, explica Violeta para Camilo. A narradora conta ao neto aquilo que lembrava ter escutado da família sobre o ano de seu nascimento: o hábito do pai de higienizar as mãos com álcool, o isolamento da família para evitar contatos e até o uso de máscaras. Tais hábitos eram impostos pelo seu pai, que lia os jornais europeus. Depois, a segunda pandemia, a do coronavírus, em 2020. “O mundo está paralisado, e a humanidade, em quarentena. É uma estranha simetria eu ter nascido numa pandemia e morrer em outra”, escreve Violeta nos seus últimos dias de vida.
Além das pandemias, Allende também toca em outros temas socialmente relevantes como o feminismo e a causa LGBTQ+. As personagens Josephine Taylor e Teresa Rivas formam um casal lésbico que luta pelo sufrágio feminino e direitos dos trabalhadores. O livro menciona rapidamente o episódio conhecido como o massacre de Iquique, ocorrido antes do nascimento de Violeta, em 1907, quando centenas de trabalhadores em greve foram mortos pelo Exército em Iquique. O massacre foi retratado no romance histórico Hijo del Salitre (1952), do escritor chileno Volodia Teitelboim, até hoje sem tradução no Brasil.
Violeta é uma narradora que acorda para a crueza da realidade social chilena apenas quando é atingida diretamente. Apesar de ser uma mulher forte — que enfrenta tabus como o divórcio, que era ilegal, e a independência financeira, que era exclusividade masculina —, nasceu com privilégios de mulher branca pertencente a uma família politicamente conservadora. Quando seu filho Juan é perseguido pela ditadura de Pinochet (o ditador não é nomeado no livro, assim como em a Casa dos Espíritos), Violeta finalmente desperta politicamente em um processo semelhante ao da personagem Alicia, do indispensável filme argentino A História Oficial (1985). “Agora sabemos, Camilo, da infame Operação Condor, criada nos Estados Unidos para estabelecer ditaduras de direita em nosso continente e coordenar as estratégias mais cruéis para acabar com os dissidentes”, escreve Violeta ao neto. Ela passa a encabeçar protestos para identificar corpos de desaparecidos e mais tarde cria uma fundação para promover os direitos das mulheres.
Se o filho Juan lutou contra a ditadura, a filha Nieves viveu e efervescência da contracultura e juntou-se a grupos hippies nos Estados Unidos. “Nieves imergiu naquele grupo vistoso de rapazes e moças brancos de classe média, que optavam por viver como mendigos, em promiscuidade, com música psicodélica e drogas”, descreve Violeta ao neto. Camilo, aliás, é filho de Nieves. As cenas lembram o clássico ensaio Rastejando até Belém, de Joan Didion, publicado originalmente em 1967.
A tradução de Violeta do espanhol para o português brasileiro, feita por Ivone Benedetti, é elogiável. Chama atenção a escolha do termo periguete para substituir pindonga, palavra de idêntica grafia e sentido em português. Porém, de acordo com o contexto, em que Violeta escreve para o neto, parece uma opção acertada da tradução.
Ao narrar a história dos Del Valle mais uma vez, agora com a voz de Violeta, Allende conseguiu contar não somente a história da família, mas dos últimos cem anos de América Latina.
Serviço
Livro: Violeta Autora: Isabel Allende Editora: Record 322 págs. R$ 59,90
* Crítica literária e jornalista. Doutora em Letras com pós-doutorado na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).