O livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, está no centro de um debate sobre censura desde que a diretora de uma escola estadual em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, publicou um vídeo criticando a obra. O Avesso da Pele, que aborda a questão do racismo estrutural, foi considerado o melhor romance do Prêmio Jabuti em 2021. O caso veio a público no fim de semana gerando um acalorado debate nas redes sociais e mobilizando nomes como Leandro Karnal e Lilia Schwarcz, ambos historiadores e professores.
Tenório conversou com o Estadão nesta segunda, 4, destacou a má interpretação do propósito da obra e contextualizou-a dentro de um cenário mais amplo de conservadorismo e resistência à discussão de questões sociais urgentes. ”Há um recrudescimento de um discurso conservador, uma visão que se recusa a encarar as questões cruciais da sociedade”, afirmou.
O que aconteceu?
A diretora da Escola Estadual Ernesto Alves de Oliveira, Janaína Venzon, criticou publicamente a obra em um vídeo divulgado em suas redes sociais. Venzon condenou o que ela considerou “vocabulários de tão baixo nível” presentes no livro, questionando a decisão do governo federal de incluir tal material no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para alunos do Ensino Médio. São as próprias escolas que indicam os livros que consideram importantes, e então eles são comprados.
Sobre o que é O Avesso da Pele
O Avesso da Pele conta a história de Pedro que, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família e refazer os caminhos paternos. A narrativa retrata um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido ao narrar as relações entre pais e filhos.
O que Jeferson Tenório diz
Em entrevista ao Estadão, Tenório esclareceu que a narrativa não se centra em temas de sexualidade de forma gratuita e que buscou abordar, com profundidade, justamente as questões de racismo estrutural, de violência policial assim como as deficiências do sistema de ensino.
“A inclusão de linguagem vulgar e cenas de natureza sexual é intencional, refletindo os efeitos do racismo nas vidas das personagens e como a sociedade as percebe. Entendo que há uma má fé das pessoas em pinçar justamente esses trechos, colocando-os de modo descontextualizado e insinuando que o livro é sobre sexo para crianças, o que não é verdade,” explicou. Segundo o autor, esta escolha narrativa visa ilustrar a complexidade das experiências das personagens negras, desafiando a percepção de que o livro possa ser reduzido a seu conteúdo explícito.
Jeferson Tenório também falou em censura, e mencionou que ela seria parte de uma tendência conservadora que se opõe à discussão de temas sociais urgentes. “Observamos um aumento no discurso conservador que evita confrontar as realidades do racismo, machismo e violência policial, não apenas no Brasil, mas globalmente,” afirmou. Ele destacou que a resistência a obras que exploram tais temas reflete um desejo de proteger as crianças de linguagem e ideias consideradas inapropriadas, ignorando o valor educativo da literatura em provocar reflexão e diálogo.
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Tenório defendeu a importância da literatura como um recurso pedagógico para tratar de questões delicadas de maneira responsável e ética. Diferentemente do acesso irrestrito a informações muitas vezes descontextualizadas na internet, a literatura oferece um espaço seguro para jovens leitores explorarem e refletirem sobre tópicos complexos, promovendo um entendimento aprofundado e responsabilidade ética.
“A grande contribuição (da literatura) é que toda vez que uma arte ou um livro traz uma discussão delicada como o luto, a morte, a perda, a sexualidade, ela não vem gratuitamente. Vem revestido de uma discussão, de uma reflexão crítica, responsável, ética, que é muito diferente se essa criança ou adolescente for procurar isso, por exemplo, na internet”, disse ele.
O que diz a escola
Em entrevista para o Estadão, a diretora da Escola Estadual Ernesto Alves de Oliveira, Janaína Venzon, nega que tenha censurado a obra, e reafirma suas preocupações em relação à polêmica envolvendo o livro. “As coisas foram tomando uma proporção tão grande, distorcendo situações, inventando coisas. Dizem que a escola está censurando. Não, não houve em nenhum momento essa questão da censura. A obra é elogiável quanto à discussão sobre o racismo estrutural”, diz.
Ela afirma não questionar a qualidade da obra, mas destaca as dificuldades práticas que a escola enfrenta ao lidar com o conteúdo do livro, especialmente devido ao vocabulário que ela considera inadequado para os alunos do Ensino Médio. “Eu não tiro o mérito do livro. Eu li o livro. É uma história linda. Mas eu estou questionando a terminologia do que está nesse livro. Somente isso. As pessoas que defendem o uso do livro na escola são as mesmas pessoas que chegam a fazer ameaças a uma cidadã, uma professora de uma escola”, disse.
Janaína afirma ainda que a escola é um ambiente em que a diversidade literária e a liberdade de expressão são bem-vindas, mas que “a diversidade tem que estar de acordo com a idade dos estudantes”.
“Os livros não podem trazer aquelas informações, algo que realmente estamos tentando organizar, construir a questão da boa conduta, dos valores éticos. Essa é a questão. Não estou dizendo que o livro é antiético. Ele é sim para ser lido. Mas a questão que coloco é a forma de trabalhar com essas terminologias dentro do Ensino Médio. Vai tudo ao desencontro de todo o trabalho pedagógico, todo o trabalho educacional que vem sendo feito na nossa escola”, disse.
Contudo, Venzon considera haver espaço para reconsiderar a adoção da obra para o trabalho na escola. “Temos que dialogar. Precisamos entender essa situação e ter aprovação dos pais. Eu acredito que, sim, existe essa possibilidade. De repente, nós podemos ter uma conversa com o autor. Estamos sempre abertos.”
Em resposta à posição de Venzon, o Ministério da Educação (MEC) esclareceu que a inclusão de O Avesso da Pele no PNLD ocorreu durante a gestão de Jair Bolsonaro, em 2022, enfatizando que as obras são enviadas às escolas apenas após solicitação dos próprios educadores.
O que a ministra da Cultura diz
Durante um café com jornalistas na manhã desta segunda-feira, 4, a ministra Margareth Menezes criticou a censura ao livro de Jeferson Tenório.
“Nosso total repúdio a qualquer tipo de censura em relação à nossa literatura. E o que pudermos fazer, que estiver dentro do escopo do Ministério da Cultura e dentro da legalidade para combater esse tipo de ação, nós faremos”, disse Margareth.
A ministra defendeu que o livre acesso à cultura é um dos pilares da democracia.
“Não existe democracia sem liberdade cultural, sem liberdade de acesso, sem as pessoas poderem contemplar os pensamentos que existem. Somos absolutamente contra qualquer tipo de repreensão à possibilidade de levar o acesso dos livros às escolas”, afirmou. / COLABOROU PAULA FERREIRA, DE BRASÍLIA