Enquanto escrevia aquela que viria ser sua primeira obra publicada, a autora Lorena Portela encontrou-se em uma encruzilhada. O que deveria ser um livro de contos que se passavam em lugares diferentes do mundo acabou ofuscado por uma única história lá de dentro, a da publicitária paulistana Gloria, acometida por um burnout e isolada em Jericoacoara para uma temporada de descompressão. Quanto mais desenvolvia a protagonista, os outros personagens e a trama, mais se via afastada da ideia original e inclinada a trabalhar em um romance.
Morando na Europa há muito tempo e sem contatos no mercado editorial brasileiro, a autora e jornalista cearense decidiu enviar uma versão de Primeiro Tive Que Morrer para uma amiga que trabalha como revisora de textos em Portugal: “Ela leu, gostou, achou que eu tinha um romance em mãos. Foi quando me falou que poderíamos trabalhar em pequenas edições, mas que a história estava praticamente pronta”, conta. O livro passou pelas mãos de outros amigos de Portela antes de ser autopublicado em 2020. “Os conhecidos para quem dei Primeiro Tive Que Morrer eram de perfis diferentes, algumas pessoas até com quem não tinha tanta intimidade, cujo distanciamento foi importante para o feedback.”
Lorena Portela recorreu a quem pôde para avaliar sua obra e, se não fossem essas pessoas, Primeiro Tive Que Morrer talvez nunca fosse lançado de maneira independente. Em uma cadeia de eventos, não seria notado pela editora Planeta, que republicou o livro em boa tiragem dois anos depois.
No mercado literário, há quem faça esse tipo de análise de maneira profissional, mas as atribuições vão além da crítica. São editores, acadêmicos, artistas, às vezes autores. Muitas vezes, esse trabalho é responsável por separar escritores verdadeiramente bons entre os que estão começando, e também por lapidar textos que estão quase lá. “Na leitura crítica, sou procurada para fazer o melhor livro possível”, afirma Vanessa Ferrari. “Faço uma edição inicial olhando para duas coisas. Primeiro nas questões estruturais, a construção de personagem, temporalidade, encadeamento, tudo que é o livro, se tem as pilastras bem fixas e bem ajustadas. Depois, nas questões estilísticas.”
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Além de uma passagem longeva pela Companhia das Letras, em que leu mais de 240 obras e revelou Mauricio Lyrio, Eliana Cardoso e Alberto Reis, Ferrari tornou-se mestre em crítica textual pela Universidade de São Paulo com um trabalho que analisa justamente os originais que foram submetidos à editora do ponto de vista da construção do narrador. O resultado foi O Lugar das Palavras: Primeiros Embates do Narrador Contemporâneo, contando suas experiências, dando conselhos e fazendo pontuações sobre linguagem e estética, lançado pela Moinhos em 2023. “Fazer um parecer crítico é dar um passo para trás e dizer: ‘esse livro não é meu, deixa eu ver o que esse autor quer, qual é a intenção da história, qual é a proposta do livro’”, explica Vanessa. “É olhar para a intenção do livro e potencializá-la para eventuais lugares onde pode melhorar.”
“O escritor iniciante precisa estar obcecado com a linguagem, muito preocupado com a essência da escrita, que é a grande locomotiva do livro. Tê-lo muito bem escrito, com uma história que faça sentido, independente do tema”, afirma. “Porque uma coisa é contar uma história, e todo mundo consegue contá-la, seja lá qual for, porque somos alfabetizados. A outra coisa é fazer da linguagem uma ferramenta estética.”
O poder do coletivo
Vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro de entretenimento neste ano com O Crime do Bom Nazista, o escritor gaúcho Samir Machado de Machado se considera “cria de oficinas de escrita criativa”. Ele conta que sua carreira de quase duas décadas como autor, além dos trabalhos como editor e tradutor, não teria começado se não fossem as aulas de Luiz Antônio de Assis Brasil e de Léa Mazina: “Ali, conheci outras pessoas que gostavam de escrever e de ler, e discutir seus textos. Fazíamos exercícios, discutíamos o que funcionava e o que não.”
Entre os colegas de Samir em Porto Alegre estavam nomes que hoje são bastante requisitados no mercado brasileiro: os editores Gustavo Faraon, Rodrigo Rosp e Antônio Xerxenesky e as autoras Luciana Thomé e Julia Dantas, alguns deles com quem fundou a Não Editora, em 2007, para lançar seus próprios livros e de outros escritores. “Os primeiros comentaristas dos meus textos foram os meus colegas de oficina, que depois se tornaram colegas editores, calcado muito no exemplo que tínhamos da Livros do Mal, do Daniel Galera e do Daniel Pelizzari”, lembra.
Com uma obra dedicada à literatura de gênero, com obras que circulam nos universos da ficção policial, romances de aventura, thriller e sci-fi, Machado afirma que a experiência das oficinas oferece menos pressão para as mentes inquietas de quem aspira ser escritor: “O mais importante de ter cada colega comentando é perceber como o mesmo texto funciona diferente para cada tipo de leitor. Porque não existe um texto necessariamente bom ou ruim. O texto funciona com este ou com aquele tipo de leitor, e você tem que saber quem quer atingir, saber como este leitor vai reagir, para poder mapear se está alcançando seu objetivo.”
“É muito importante estudar, se manter estudando”, diz Lorena Portela, que lá de Londres se conectou com a jornalista, autora e também vencedora do prêmio Jabuti, Socorro Acioli, para uma oficina criativa à distância. Dali nasceu seu segundo romance, O Amor e Sua Fome, publicado neste ano pela Todavia. A obra foi sendo aprimorada enquanto Portela, Acioli e a autora Marcela Dantés e algumas outras pessoas cursavam uma oficina com Juan Pablo Villa-Lobos: “Nós tínhamos encontros mensais em que eu levava tudo que desenvolvia naquele mês. Todo mundo lia os livros dos outros, recebia muito feedback”, conta. “Para mim, reescrever é mais importante do que escrever. É óbvio que tudo começa na escrita, mas é a reescrita que te mostra o verdadeiro livro.”
Chegando lá
Com a obra pronta ou quase lá, o autor submete seu texto para análise das editoras, e muitas vezes nem todo cuidado e rigor estético podem ser suficientes para garantir a publicação. Quando se trata do mercado, há pontos que servem como uma espécie de nota de corte para que o livro seja contratado. “O autor nacional é um nicho bem específico. Hoje, muita gente está escrevendo, e, claro, o começo é sempre difícil, porque você precisa abrir um caminho. Para as editoras, é uma aposta em um casamento de longo prazo, algo que muitos escritores não entendem”, afirma Vanessa Ferrari.
Mesmo os autores que se tornam best sellers, como foi o caso de Socorro Acioli com seu Oração Para Desaparecer, o mais vendido durante a Flip de 2023, não são fenômenos que acontecem do dia para a noite. Em seu livro, Ferrari lembra que a Companhia das Letras rejeitou o licenciamento de Harry Potter antes de ele se tornar sucesso mundial, e Samir Machado de Machado conta um caso recente envolvendo um autor nacional: “O mercado publica livros para aquela parcela que lê livros, não aquela que não está lendo ou que nem pretende ler. Então, em última instância, todo livro acaba sendo sempre uma aposta, um tiro no escuro. Torto Arado foi assim, ganhou prêmio Leya e foi publicado em Portugal, mas a própria editora não quis publicá-lo aqui, acabando sendo editado pela Todavia. E nada garantia que o livro faria sucesso quando fosse lançado.”
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O casamento de longo prazo entre o autor e a editora vai muito além da publicação e venda de um romance de estreia. Vanessa Ferrari destaca que importa muito encontrar um escritor que vai além de um livro só. “Há um olhar para o escritor de carreira, não alguém que quis fazer memórias ou contar alguma outra história, e ficar feliz de escrever um único livro.” Ela conclui: “O editor fica tentando achar elementos para aceitar um original e reconhecer um novo escritor. Isso significa perceber que ali está o primeiro livro, mas daqui a pouco virá o segundo, e então o terceiro, porque a carreira de autor também é construída ao longo de muitos anos. Veja os escritores que são consagrados hoje, eles têm carreiras de uma, duas, às vezes três décadas.”
Meu livro está pronto. E agora?
O trabalho do parecerista crítico não é o único oferecido por profissionais autônomos do mercado literário. Depois de pronta, a obra pode passar primeiro nas mãos de um revisor de texto, que vai afinar a estilística à gramática. Na hora do parecer crítico, outros aspectos serão levados em conta: “precisão, concisão, encadeamento narrativo, verossimilhança, esses fios que são abertos quando se escreve um romance”, diz Vanessa Ferrari.
O valor de uma revisão de texto tem variado entre R$ 4 e R$ 8 por lauda, de acordo com profissionais consultados, mas atenção, porque há quem ofereça os serviços para laudas de 1.400 caracteres, e outros, para laudas de 2.100 caracteres. As leituras críticas também tem preços fora da tabela, começando por algo perto de R$ 500 para obras com menos de 20 mil palavras, mas podendo custar bem mais caro, se um autor consagrado for analisar a obra.