Teve de tudo nesses cinco dias de Festa Literária Internacional de Paraty (Flip 2023), a ponto de brincarem a chamando de Apocaflipse. Calor sufocante, tempestade, alagamento, apagão, frio, mais chuva, calor de novo. Nas ruas, falava-se mais sobre as intempéries do que sobre as mesas de debate. Em 2024, ela deve ser realizada em setembro.
Mas esta era a Flip de Itamar Vieira Junior, na programação principal, e de Conceição Evaristo, que levou pequenas multidões para as várias casas de editoras e instituições por onde passou. Neste domingo, 26, por exemplo, enquanto autografava na Encruza Literária, da Oficina Raquel, sua releitura de Macabéa, a personagem de Clarice Lispector, o Sesc já estava lotado - ela só chegaria uma hora e meia depois, para uma conversa com Sérgio Vaz e Roberta Estrela D’Alva.
O motorista Luciano Poz, de 53 anos, que frequenta a Flip há 18 anos, disse que o ponto alto desta edição, para ele, foi justamente ver Conceição Evaristo na Casa da Utopia e na Casa Estante Virtual. Para sua mulher, certamente foi estar na plateia da única mesa da Flip que esgotou antes do início do festival: a que reuniu, na manhã deste domingo, Itamar Vieira Junior, Glicéria Tupinambá e Miriam Esposito. Enquanto ela via e ouvia o autor de Torto Arado, Luciano guardava o primeiro lugar na fila de autógrafos, na Livraria da Travessa - porque ela é realmente fã e porque ele ainda dirigiria 600 quilômetros até Italva, no interior do Rio.
Luciano acha que o clima atrapalhou a Flip, mas ele, que guarda com carinho a lembrança de ter visto Chico Buarque por aqui anos atrás, celebrou a diversidade do festival, lamentou apenas não ter conseguido um autógrafo de Conceição e sugeriu que a organização melhorasse a estrutura do outro lado da ponte, onde os visitantes encontram bancas de editoras independentes, a Flipei (a Flip Pirata), barraquinhas de artesanato e comida e o auditório do patrocinador.
Vilson Ferreira, editor da Proverbo, de Maricá, coincidentemente a cidade onde Conceição Evaristo vive, veio pela primeira vez como expositor, estava nesta área do lado de lá e não gostou. Apenas no sábado, 25, ele contou, foi que colocaram pedras no chão para amenizar as poças e a lama. “Eu tinha a impressão de que as pessoas compravam livros na Flip. Como não estava vendendo nada, até saímos com os livros pelo centro histórico, na tentativa de vender alguma coisa”, conta. Ele, no entanto, vai embora no prejuízo. Ferreira conta que gastou cerca de R$ 7.500 para estar aqui - R$ 2.500 dos quais pagos para a Flip - pela mesa e espaço - e faturou 2.500.
Segundo os organizadores, que citaram a Prefeitura, a Flip recebeu 27 mil pessoas este ano, um público 10% maior do que em 2022. Mauro Munhoz, diretor da Casa Azul, a venda de ingressos foi 10% menor, e a cota de gratuidade cresceu 25%. O ingresso, este ano, teve o maior valor da história da Flip: R$ 130 por mesa. “Quem pode pagar paga, mas quem não pode tem acesso”, disse Munhoz. É possível acompanhar a transmissão de toda a programação principal, gratuitamente, pelo Auditório da Praça e pelo YouTube. Este ano o canal registrou 25 mil visualizações, ainda segundo Munhoz, contra 18 mil do ano passado.
Milena Britto e Fernanda Bastos deixam a curadoria com o encerramento desta edição. Os organizadores justificaram dizendo que a Flip tem a tradição de trocar, mesmo, os curadores a cada dois anos. Na coletiva de encerramento, Munhoz contou também que aprendeu muito com elas.
Fernanda relembrou que a proposta, este ano, foi trabalhar com outros aspectos da mente, o dissenso e as variadas linguagens e ressaltou o avanço que foi, para a Flip, ter duas mulheres negras como curadoras. Milena disse que cumpriram tudo o que sonharam, e muito mais. Comentou que as mesas ganharam vida própria e dialogaram entre si e falou em como foi especial a participação do ucraniano Ilya Kaminsky, que é surdo.
Mesas
A Flip começou na noite de quarta-feira, 22, com uma discussão entre o pesquisador americano David Jackson e a escritora brasileira Adriana Armony, que apresentaram Pagu como uma intelectual de vanguarda, complexa e interessante. Algo que daria o tom aos demais eventos paralelos que acompanharam a homenagem da Flip. Pagu foi tema, ainda, de um show de Adriana Calcanhotto criado especialmente para a abertura da Flip, que foi mais conceitual do que festivo, e essa era a ideia, segundo as curadoras.
Na quinta, dia da tempestade e do apagão, o ar não dava conta do calor ao meio-dia (a sensação térmica era de 39º), e o belo encontro entre Socorro Acioli, Felipe Charbel e Leda Cartum, sobre seus processos e suas obras consideradas inclassificáveis, transcorreu no movimento dos leques do público.
Socorro conquistou o público com suas histórias e fez o público rir. Não à toa, foi a autora mais vendida na Livraria da Travessa, a oficial do evento. As vendas seguem até as 20h, mas uma prévia mostrava Oração Para Desaparecer em primeiro lugar e Cabeça de Santo em terceiro. Entre um e outro, Autobiografia Precoce, de Pagu. Itamar Vieira Junior já vendeu um milhão de cópias de Torto Arado desde o lançamento. Então já era esperado que o livro não ficasse nas primeiras colocações - nesta prévia, ele ocupava o 7º lugar. Mas Salvar o Fogo, seu lançamento mais recente, estava na 4ª posição. Veja a lista abaixo.
Rui Campos, o proprietário, contou ao Estadão que as vendas ficaram um pouco abaixo do que foi registrado em 2022. Na maioria das casas parceiras é possível comprar livros, e comprá-los com desconto.
Outros destaques foram a equatoriana Mónica Ojeda e a espanhola Alana S. Portero, que também protagonizaram um momento especial em que falaram sobre violência, corpos e literatura. Ojeda é autora de Mandíbula, um livro tratado como terror mas que supera esta classificação, e Alana está estreando no Brasil com Mau Hábito, que inaugura o selo Amarcord, criado pela Record para livros incomuns.
No palco, conversas sobre como experiências reais estão sendo investigadas por meio da literatura e como processos individuais se tornam coletivos mobilizaram muitos dos debates, incluindo a conversa entre a ensaísta irlandesa Sinéad Gleeson e a brasileira Natalia Timerman e, em outro momento, entre o brasileiro José Henrique Bortoluci e a alemã Nora Krug.
Augusto de Campos, um dos maiores poetas brasileiros e responsável por recuperar Pagu nos anos 1980, com a biografia que ele escreveu, foi o autor de destaque desta edição e a Flip exibiu, no telão, uma conversa pré-gravada entre ele e Caetano Veloso. Cid Campos, músico e poeta, e seu filho, se apresentou com Adriana Calcanhotto e fez uma performance na tarde do sábado, antes da exibição do vídeo.
O melhor da Flip
Homenagem a Pagu
- A mesa de abertura, com o pesquisador americano David Jackson, e a escritora brasileira Adriana Armony, foi justa ao apresentar Pagu como uma intelectual de vanguarda e deixar de lado a ideia de musa do modernismo. E a homenagem deu força a um processo de resgate e valorização iniciado há alguns anos por grupos feministas e que ganha novos contornos com lançamento de textos jornalísticos, manuscritos inéditos e discussões valiosas.
Autoras e autores
- A ensaísta irlandesa Sinéad Gleeson, a escritora equatoriana Mónica Ojeda, Itamar Vieira Júnior, Glicéria Tupinambá, Socorro Acioli e Luiza Romão encantaram a plateia.
Outras Flips
- A programação paralela, feita por editoras, coletivos de editoras e outras instituições, promoveu discussões importantes, com nomes relevantes da literatura e da Academia. Havia sempre algum evento acontecendo; difícil, muitas vezes, era conseguir um lugarzinho para sentar.
Refúgios
- Essas casas também se tornaram refúgios na hora do calor extremo, da tempestade ou da garoa
Cidade mais vazia
Ou sensação de cidade mais vazia. Segundo a organização, esta edição recebeu mais gente do que no ano passado, mas a Flip estava ainda estava mais confortável do que antes da pandemia.
Curadoria
Mais mulheres na programação, mais diversidade, mesas que se conectaram
Augusto de Campos
Uma homenagem em vida
O pior da Flip
Preço dos ingressos
- Custando R$ 130 por mesa, inviabiliza, para um grande número de visitantes, o encontro ao vivo com os escritores
Menos estrelas
- O público acompanhou encontros bonitos e descobriu novos escritores, mas faltam ‘nomões’
Data
- Pelo segundo ano, a Flip ocorre em novembro - ainda reflexo da pandemia e dos prazos de captação. No ano passado o público já tinha experimentado uma Flip desconfortável, pelo calor. Este ano, nos primeiros dias, a sensação térmica chegou a 39º. Ao meio-dia, o ar condicionado da tenda principal não dava conta. Mas Flip em novembro é ruim não apenas pelo calor ou pela chuva. Em julho, havia mais professores e estudantes de fora da cidade
Livros mais vendidos na Flip 2023
Os dados se referem às vendas na Livraria da Travessa no evento
- Oração para desaparecer, de Socorro Acioli (Companhia das Letras)
- Autobiografia Precoce, de Pagu (Companhia das Letras)
- A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli (Companhia das Letras)
- salvar o Fogo, de Itamar Vieira Junior (Todavia)
- Me Chama de Cassandra, de Marcial Gala (Biblioteca Azul)
- Se a Cidade Fosse Nossa, de Joice Berth (Paz e Terra)
- Também Guardamos Pedras Aqui, de Luiza Romão (Nós)
- Decolonizando Afetos, de Geni Nunez (Paidós)
- Pagu: Vida Obra, de Augusto de Campos (Companhia das Letras)
- As Pequenas Chances, de Natalia Timerman (Todavia)
- Parque Industrial, de Pagu (Companhia das Letras)
- Voladoras, de Mónica Ojeda (Autêntica Contemporânea)
- Mau Hábito, de Alana Portero (Record)
- Saia da Frente do Meu Sol, de Felipe Charbel (Autêntica Contemporânea)
- Água Doce, de Akwaeke Emezi (Kapulana)
- Macabéa Flor de Mulungu, de Conceição Evaristo (Oficina Raquel)
- Constelações: Ensaios do Corpo, de Sinéad Gleeson (Relicário)
- O Que é Meu, de José Henrique Bertoluci (Fósforo)