Após publicar seu primeiro romance, a australiana Jessica Au passou dez anos escrevendo, mas nada “funcionou de verdade”. Um dos contos produzidos nessa época, contudo, ganhou força: a história de mãe e filha em viagem ao Japão. Reescrito do zero, ele se tornou o romance Frio o bastante para nevar, primeiro vencedor do Novel Prize, organizado pelas editoras New Directions, Fitzcarraldo e Giramondo.
Apesar de curto – não chega a 100 páginas –, a profundidade é a sua grande marca. Publicado no Brasil pela Fósforo em tradução de Fabiane Secches, esse mergulho que Au emprega à dinâmica mãe e filha tem influências de nomes como Annie Ernaux, Rebecca Solnit e Simone de Beauvoir. Seu estilo simples e direto acaba por tensionar as memórias e as descrições da narradora até que se fundam na paisagem.
Na entrevista a seguir, Jessica Au comenta seu processo criativo, a opção pela écfrase e a influência de suas idas ao Japão na escrita de Frio o bastante para nevar.
Há um hiato de 10 anos entre seu último romance e ‘Frio o bastante para nevar’. Você queria fazer uma pausa? Você esteve planejando esse livro?
Sempre estive escrevendo, mas foi mais o fato de que durante um tempo nada funcionou de verdade. Escrevi alguns contos, mas eles não pareciam ganhar vida como eu queria. Houve apenas um – sobre mãe e filha em viagem ao Japão – que eu senti que poderia ter algo, então decidi voltar a ele e reescrever do zero. De algum modo, porém, com aquela jornada como uma linha-mestra, e dentro do fluxo de consciência da filha, muitas das outras coisas sobre as quais eu vinha tentando escrever começaram a se encaixar. Essas se tornaram as digressões – sobre o período da filha na universidade, seu trabalho lá atrás como garçonete, seus sentimentos sobre o mundo literário e artístico, as memórias de sua irmã e por aí em diante.
O romance captura um período muito específico na relação entre mãe e filha. Como você pensou essas duas personagens e a melhor maneira de contar essa história?
Era mais um processo reverso de indagar indiretamente certas questões que eu tinha, ou o que parecia mais difícil de dizer, e seguir esses instintos. Eu tinha lido livros como “Uma morte muito suave”, de Simone de Beauvoir, “I remain in darkness” (Permaneço na escuridão, sem tradução para o português), de Annie Ernaux, e “Quem matou meu pai”, de Édouard Louis. Cada um desses livros explorava a morte de um pai ou mãe, mas também a tarefa de vê-los como alguém dentro de uma história – o que a época e as circunstâncias lhes permitiram ser ou não ser. Fiquei com algo dessas ideias e queria, à minha própria maneira, pensá-las através dessa relação em particular, na qual mãe e filha são intimamente ligadas, mas também separadas por nacionalidade, língua e memória. Eu sentia também que havia uma pungência em pensar nisso pelos olhos de uma filha adulta – onde também ocorre uma certa inversão de papéis, que envolve ambos dever e cuidado, e em que você começa a entender a verdadeira natureza do tempo.
A história se constrói em um estilo digressivo, desvelando as muitas histórias que uma cena ou um gesto escondem. Isso exige um grande esforço de descrição – paisagens, pinturas, gestos. Para você, quão importante é a descrição?
A descrição ou a beleza podem ser um grande prazer durante a leitura, mas eu tentei, onde conseguia, lembrar que qualquer coisa descrita deve estar a serviço da história também, e não apenas em causa própria. Gosto da escrita simples, direta. Então, mesmo que eu descrevesse a vista das montanhas como uma pintura na tela, ou um trabalho de arte contemporânea como uma ilusão, elas também diriam algo sobre a própria narradora – sobre como ela vê o mundo através da arte, mesmo sem nunca querer ser uma artista, ou a respeito da natureza instável da memória e da narrativa. Gosto como esse tipo de écfrase (ekphrasis) pode amplificar o sentido da coisa descrita, e talvez também dar algumas pistas sobre como a história pode ser lida.
‘Frio o bastante para nevar’ segue mãe e filha, lançando luz nas rachaduras do relacionamento entre elas. Você disse que andou lendo Annie Ernaux, Simone de Beauvoir e Rebecca Solnit enquanto o escrevia. Que papel essas leituras – e essas mulheres – desempenham na sua literatura?
Com Ernaux e de Beauvoir há essa crueza e autenticidade que vem das qualidades existenciais e autobiográficas dos seus trabalhos. Quando as leio, sinto as questões de filosofia e as questões de ficção sendo unidas. Também há algo a respeito do confessional que impele o leitor a continuar, mais que qualquer enredo. Eu li Solnit mais ou menos na época em que escrevi o primeiro rascunho do conto de mãe e filha, e embora tenha mudado muito desde então, acho que alguma coisa da qualidade da sua reportagem reflexiva certamente moldou a versão inicial, e talvez ainda esteja lá.
Há muitos detalhes nas suas descrições do Japão. Você já esteve lá? Você foi especificamente para escrever este livro?
Eu eventualmente acabei indo ao Japão, embora não especificamente para escrever Frio o bastante para nevar. Fui três vezes ao longo de alguns anos e, claro, muitos dos lugares e experiências dessas viagens depois entraram no livro, geralmente de modo um pouco diferente. A caminhada que a narradora faz, por exemplo, quando deixa sua mãe por um breve período, saiu em parte da trilha de Nakasendo entre Tóquio e Quioto. E muito das artes – James Turrell, Monet – veio de mostras ou obras que vi no Japão. Estar lá também me trouxe de volta muitas memórias da Ásia e da minha extensa família lá, o que, é claro, a narradora também sente.
Frio o bastante para nevar
96 páginas
R$64,90
Editora Fósforo