Gay Talese, aos 91 anos, reflete sobre ‘Sinatra resfriado’ e outros artigos clássicos que escreveu


No novo livro ‘Bartleby and Me’, o ‘velho escrivão’ relembra colegas manchados de tinta, compartilha segredos comerciais e vasculha divórcio do homem que explodiu mansão consigo dentro para evitar ex de lucrar

Por Alexandra Jacobs
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Gay Talese tem um tique. Quero tirar isso da frente logo porque, no geral, tenho uma tremenda admiração por ele: aquela eminência jovial do velho New Journalism que é ao mesmo tempo um marco vivo de Manhattan e seu melhor personagem.

É um tique de escritor, o hábito retrô de se referir às mulheres pela cor do cabelo, mas como substantivo e não como adjetivo. “Uma morena esbelta e atraente”. “Uma loira esbelta e estilosa com rabo de cavalo”. “Uma morena jovem e sociável”. “Uma morena alegre e muito perfumada de vestido vermelho”.

Pelo menos as velhas raposas – das quais o elegante Talese, aos 91 anos, é um excelente exemplo – têm o privilégio de serem comparadas a um animal inteligente.

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Em ‘Bartleby and Me’, o “velho escrivão” explora as nuances entre as pessoas humiles e a elite de Nova York Foto: Nathan Bajar/The New York Times

Apesar de tudo isso, se a ocasional sensação de se sentir presa dentro de um cartoon de Peter Arno é o preço para se uma ler uma nova obra de Talese, pode contar comigo. Mas só um pedaço de seu último livro, ‘Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener’ (Bartleby and Me: reflexões de um velho escrivão, em tradução livre), do qual foram extraídas as citações acima, pode ser justamente chamado de novo.

(O livro tem previsão de publicação no Brasil para 2024, ainda sem data específica, pela Companhia das Letras).

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É a Parte 3, a história de Nicholas Bartha, o médico emigrante romeno que em 2006 explodiu sua casa multimilionária no Upper East Side – se matando no processo – só para não a vender e deixar que sua ex-mulher ficasse com os lucros, como um juiz havia ordenado.

O que aconteceu depois que as 400 toneladas de destroços foram removidas envolve “uma loira glamorosa de 40 anos, nascida na Rússia e chamada Janna Bullock”, incorporadora imobiliária e habitué das colunas sociais, a quem Talese, também do Upper East Side, se refere, um tanto mais originalmente, como “a condessa dos negócios”. É uma história memorável, bem no quintal de Talese.

Intitulado em homenagem ao clássico de Herman Melville, Bartleby and Me alude tanto ao próprio status de Talese como um autodenominado “velho escrivão” quanto às figuras mais humildes que mais capturaram seu interesse ao longo da longa carreira: porteiros, motoristas, cozinheiros, balconistas, faxineiros, policiais, prostitutas (Trata-se de um escritor que parece reunir arquivos biográficos até mesmo para pedaços de pedra). Jack Vergara – velho empregado do vizinho Links Club que sentiu o cheiro de gás emanando da casa prestes a explodir, ligou para Con Ed e insistiu que apenas um café da manhã simples fosse servido aos sócios do clube naquela manhã – é o tipo de “personagem subsidiário” e indelével em que Talese se especializou.

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Capa do livro 'Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener', de Gay Talese Foto: Mariner Books

Na verdade, a relativa indiferença de Talese à celebridade foi o que garantiu sua própria fama. Muito antes do quiet quitting veio a frase de Bartleby: “Prefiro não”. É a essência do que Talese respondeu a Harold Hayes, editor da então poderosa Esquire, quando solicitado a escrever o perfil que se tornaria talvez o mais venerado na história da revista, Frank Sinatra Has a Cold (Frank Sinatra está resfriado, em tradução livre) (1966). O artigo inspiraria incontáveis talentos menores a circular em volta de qualquer famoso com quem não conseguissem conversar por meia hora e distorcer o resultado numa narrativa floreada para as revistas.

A Parte 2 de Bartleby and Me é a história por trás da história de Sinatra – e até mesmo a história por trás da história por trás da história de Sinatra: um apanhado das anotações de Talese publicado na mesma edição, onde o autor xinga e expressa sua desconfiança em Hayes.

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São reveladas algumas ferramentas e truques do ofício do escritor, entre eles os blocos de papelão, recuperados de suas camisas lavadas, que ele usa para fazer anotações, às vezes na privacidade de uma cabine de banheiro. (O hábito de Talese de negligenciar o uso do gravador, junto com interesses especiais que poderiam ser chamados de lascivos – casas de massagem e voyeurismo de motel, entre outros – gerou revolta entre alguns vigilantes do jornalismo). Outro tique mais cativante: seu método de conectar indivíduos díspares numa espécie de passagem de bastão de capítulo a capítulo.

A Parte 1 é sobre o tempo de Talese no New York Times, onde um repórter mais experiente certa vez o aconselhou: “Meu jovem, nunca entreviste ninguém por telefone, se puder”. (Comparado a e-mail, mensagem de texto e Gchat, o telefone agora parece uma relíquia sagrada).

Reconhecido por seu livro épico sobre o Times e seus líderes, The Kingdom and the Power (1969), um clássico dos estudos de mídia, Talese examina seus subordinados e subalternos – os impressores e operadores de linotipo, um número substancial daqueles “surdos-mudos” que iam buscar bebidas no Gough’s Chop House com chapéus manchados de tinta, além dos revisores, “indivíduos reservados, pensativos e ponderados”.

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Ele se concentra em um deles, Alden Whitman, que se tornou o principal redator de obituários (ele se autodenominava o “feliz remador do Estige”), que Talese também perfilou para a Esquire, com consideravelmente mais acesso do que Sinatra lhe concedera. O perfil rendeu a Whitman um lugar ao lado de Johnny Carson no The Tonight Show. Eram tempos diferentes.

Talese já havia tentado – e, sob muitos aspectos, fracassado – um livro de memórias, nomeadamente o cambaleante A Writer’s Life (2006). Bartleby and Me é mais um passeio, no qual ele parece dispensar a forma filigranando alguns de seus grandes sucessos e, em seguida, acrescentando uma detalhe ou outro. Ele fez tudo do seu jeito – e dá para imaginar ele e o fantasma de Sinatra fazendo duo num número de música e dança, dois marinheiros felizes na cidade.

Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener

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  • Editora: Mariner Books
  • Autor: Gay Talese
  • 320 páginas; Capa dura R$ 149,23 (em inglês)

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Gay Talese tem um tique. Quero tirar isso da frente logo porque, no geral, tenho uma tremenda admiração por ele: aquela eminência jovial do velho New Journalism que é ao mesmo tempo um marco vivo de Manhattan e seu melhor personagem.

É um tique de escritor, o hábito retrô de se referir às mulheres pela cor do cabelo, mas como substantivo e não como adjetivo. “Uma morena esbelta e atraente”. “Uma loira esbelta e estilosa com rabo de cavalo”. “Uma morena jovem e sociável”. “Uma morena alegre e muito perfumada de vestido vermelho”.

Pelo menos as velhas raposas – das quais o elegante Talese, aos 91 anos, é um excelente exemplo – têm o privilégio de serem comparadas a um animal inteligente.

Em ‘Bartleby and Me’, o “velho escrivão” explora as nuances entre as pessoas humiles e a elite de Nova York Foto: Nathan Bajar/The New York Times

Apesar de tudo isso, se a ocasional sensação de se sentir presa dentro de um cartoon de Peter Arno é o preço para se uma ler uma nova obra de Talese, pode contar comigo. Mas só um pedaço de seu último livro, ‘Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener’ (Bartleby and Me: reflexões de um velho escrivão, em tradução livre), do qual foram extraídas as citações acima, pode ser justamente chamado de novo.

(O livro tem previsão de publicação no Brasil para 2024, ainda sem data específica, pela Companhia das Letras).

É a Parte 3, a história de Nicholas Bartha, o médico emigrante romeno que em 2006 explodiu sua casa multimilionária no Upper East Side – se matando no processo – só para não a vender e deixar que sua ex-mulher ficasse com os lucros, como um juiz havia ordenado.

O que aconteceu depois que as 400 toneladas de destroços foram removidas envolve “uma loira glamorosa de 40 anos, nascida na Rússia e chamada Janna Bullock”, incorporadora imobiliária e habitué das colunas sociais, a quem Talese, também do Upper East Side, se refere, um tanto mais originalmente, como “a condessa dos negócios”. É uma história memorável, bem no quintal de Talese.

Intitulado em homenagem ao clássico de Herman Melville, Bartleby and Me alude tanto ao próprio status de Talese como um autodenominado “velho escrivão” quanto às figuras mais humildes que mais capturaram seu interesse ao longo da longa carreira: porteiros, motoristas, cozinheiros, balconistas, faxineiros, policiais, prostitutas (Trata-se de um escritor que parece reunir arquivos biográficos até mesmo para pedaços de pedra). Jack Vergara – velho empregado do vizinho Links Club que sentiu o cheiro de gás emanando da casa prestes a explodir, ligou para Con Ed e insistiu que apenas um café da manhã simples fosse servido aos sócios do clube naquela manhã – é o tipo de “personagem subsidiário” e indelével em que Talese se especializou.

Capa do livro 'Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener', de Gay Talese Foto: Mariner Books

Na verdade, a relativa indiferença de Talese à celebridade foi o que garantiu sua própria fama. Muito antes do quiet quitting veio a frase de Bartleby: “Prefiro não”. É a essência do que Talese respondeu a Harold Hayes, editor da então poderosa Esquire, quando solicitado a escrever o perfil que se tornaria talvez o mais venerado na história da revista, Frank Sinatra Has a Cold (Frank Sinatra está resfriado, em tradução livre) (1966). O artigo inspiraria incontáveis talentos menores a circular em volta de qualquer famoso com quem não conseguissem conversar por meia hora e distorcer o resultado numa narrativa floreada para as revistas.

A Parte 2 de Bartleby and Me é a história por trás da história de Sinatra – e até mesmo a história por trás da história por trás da história de Sinatra: um apanhado das anotações de Talese publicado na mesma edição, onde o autor xinga e expressa sua desconfiança em Hayes.

São reveladas algumas ferramentas e truques do ofício do escritor, entre eles os blocos de papelão, recuperados de suas camisas lavadas, que ele usa para fazer anotações, às vezes na privacidade de uma cabine de banheiro. (O hábito de Talese de negligenciar o uso do gravador, junto com interesses especiais que poderiam ser chamados de lascivos – casas de massagem e voyeurismo de motel, entre outros – gerou revolta entre alguns vigilantes do jornalismo). Outro tique mais cativante: seu método de conectar indivíduos díspares numa espécie de passagem de bastão de capítulo a capítulo.

A Parte 1 é sobre o tempo de Talese no New York Times, onde um repórter mais experiente certa vez o aconselhou: “Meu jovem, nunca entreviste ninguém por telefone, se puder”. (Comparado a e-mail, mensagem de texto e Gchat, o telefone agora parece uma relíquia sagrada).

Reconhecido por seu livro épico sobre o Times e seus líderes, The Kingdom and the Power (1969), um clássico dos estudos de mídia, Talese examina seus subordinados e subalternos – os impressores e operadores de linotipo, um número substancial daqueles “surdos-mudos” que iam buscar bebidas no Gough’s Chop House com chapéus manchados de tinta, além dos revisores, “indivíduos reservados, pensativos e ponderados”.

Ele se concentra em um deles, Alden Whitman, que se tornou o principal redator de obituários (ele se autodenominava o “feliz remador do Estige”), que Talese também perfilou para a Esquire, com consideravelmente mais acesso do que Sinatra lhe concedera. O perfil rendeu a Whitman um lugar ao lado de Johnny Carson no The Tonight Show. Eram tempos diferentes.

Talese já havia tentado – e, sob muitos aspectos, fracassado – um livro de memórias, nomeadamente o cambaleante A Writer’s Life (2006). Bartleby and Me é mais um passeio, no qual ele parece dispensar a forma filigranando alguns de seus grandes sucessos e, em seguida, acrescentando uma detalhe ou outro. Ele fez tudo do seu jeito – e dá para imaginar ele e o fantasma de Sinatra fazendo duo num número de música e dança, dois marinheiros felizes na cidade.

Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener

  • Editora: Mariner Books
  • Autor: Gay Talese
  • 320 páginas; Capa dura R$ 149,23 (em inglês)

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Gay Talese tem um tique. Quero tirar isso da frente logo porque, no geral, tenho uma tremenda admiração por ele: aquela eminência jovial do velho New Journalism que é ao mesmo tempo um marco vivo de Manhattan e seu melhor personagem.

É um tique de escritor, o hábito retrô de se referir às mulheres pela cor do cabelo, mas como substantivo e não como adjetivo. “Uma morena esbelta e atraente”. “Uma loira esbelta e estilosa com rabo de cavalo”. “Uma morena jovem e sociável”. “Uma morena alegre e muito perfumada de vestido vermelho”.

Pelo menos as velhas raposas – das quais o elegante Talese, aos 91 anos, é um excelente exemplo – têm o privilégio de serem comparadas a um animal inteligente.

Em ‘Bartleby and Me’, o “velho escrivão” explora as nuances entre as pessoas humiles e a elite de Nova York Foto: Nathan Bajar/The New York Times

Apesar de tudo isso, se a ocasional sensação de se sentir presa dentro de um cartoon de Peter Arno é o preço para se uma ler uma nova obra de Talese, pode contar comigo. Mas só um pedaço de seu último livro, ‘Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener’ (Bartleby and Me: reflexões de um velho escrivão, em tradução livre), do qual foram extraídas as citações acima, pode ser justamente chamado de novo.

(O livro tem previsão de publicação no Brasil para 2024, ainda sem data específica, pela Companhia das Letras).

É a Parte 3, a história de Nicholas Bartha, o médico emigrante romeno que em 2006 explodiu sua casa multimilionária no Upper East Side – se matando no processo – só para não a vender e deixar que sua ex-mulher ficasse com os lucros, como um juiz havia ordenado.

O que aconteceu depois que as 400 toneladas de destroços foram removidas envolve “uma loira glamorosa de 40 anos, nascida na Rússia e chamada Janna Bullock”, incorporadora imobiliária e habitué das colunas sociais, a quem Talese, também do Upper East Side, se refere, um tanto mais originalmente, como “a condessa dos negócios”. É uma história memorável, bem no quintal de Talese.

Intitulado em homenagem ao clássico de Herman Melville, Bartleby and Me alude tanto ao próprio status de Talese como um autodenominado “velho escrivão” quanto às figuras mais humildes que mais capturaram seu interesse ao longo da longa carreira: porteiros, motoristas, cozinheiros, balconistas, faxineiros, policiais, prostitutas (Trata-se de um escritor que parece reunir arquivos biográficos até mesmo para pedaços de pedra). Jack Vergara – velho empregado do vizinho Links Club que sentiu o cheiro de gás emanando da casa prestes a explodir, ligou para Con Ed e insistiu que apenas um café da manhã simples fosse servido aos sócios do clube naquela manhã – é o tipo de “personagem subsidiário” e indelével em que Talese se especializou.

Capa do livro 'Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener', de Gay Talese Foto: Mariner Books

Na verdade, a relativa indiferença de Talese à celebridade foi o que garantiu sua própria fama. Muito antes do quiet quitting veio a frase de Bartleby: “Prefiro não”. É a essência do que Talese respondeu a Harold Hayes, editor da então poderosa Esquire, quando solicitado a escrever o perfil que se tornaria talvez o mais venerado na história da revista, Frank Sinatra Has a Cold (Frank Sinatra está resfriado, em tradução livre) (1966). O artigo inspiraria incontáveis talentos menores a circular em volta de qualquer famoso com quem não conseguissem conversar por meia hora e distorcer o resultado numa narrativa floreada para as revistas.

A Parte 2 de Bartleby and Me é a história por trás da história de Sinatra – e até mesmo a história por trás da história por trás da história de Sinatra: um apanhado das anotações de Talese publicado na mesma edição, onde o autor xinga e expressa sua desconfiança em Hayes.

São reveladas algumas ferramentas e truques do ofício do escritor, entre eles os blocos de papelão, recuperados de suas camisas lavadas, que ele usa para fazer anotações, às vezes na privacidade de uma cabine de banheiro. (O hábito de Talese de negligenciar o uso do gravador, junto com interesses especiais que poderiam ser chamados de lascivos – casas de massagem e voyeurismo de motel, entre outros – gerou revolta entre alguns vigilantes do jornalismo). Outro tique mais cativante: seu método de conectar indivíduos díspares numa espécie de passagem de bastão de capítulo a capítulo.

A Parte 1 é sobre o tempo de Talese no New York Times, onde um repórter mais experiente certa vez o aconselhou: “Meu jovem, nunca entreviste ninguém por telefone, se puder”. (Comparado a e-mail, mensagem de texto e Gchat, o telefone agora parece uma relíquia sagrada).

Reconhecido por seu livro épico sobre o Times e seus líderes, The Kingdom and the Power (1969), um clássico dos estudos de mídia, Talese examina seus subordinados e subalternos – os impressores e operadores de linotipo, um número substancial daqueles “surdos-mudos” que iam buscar bebidas no Gough’s Chop House com chapéus manchados de tinta, além dos revisores, “indivíduos reservados, pensativos e ponderados”.

Ele se concentra em um deles, Alden Whitman, que se tornou o principal redator de obituários (ele se autodenominava o “feliz remador do Estige”), que Talese também perfilou para a Esquire, com consideravelmente mais acesso do que Sinatra lhe concedera. O perfil rendeu a Whitman um lugar ao lado de Johnny Carson no The Tonight Show. Eram tempos diferentes.

Talese já havia tentado – e, sob muitos aspectos, fracassado – um livro de memórias, nomeadamente o cambaleante A Writer’s Life (2006). Bartleby and Me é mais um passeio, no qual ele parece dispensar a forma filigranando alguns de seus grandes sucessos e, em seguida, acrescentando uma detalhe ou outro. Ele fez tudo do seu jeito – e dá para imaginar ele e o fantasma de Sinatra fazendo duo num número de música e dança, dois marinheiros felizes na cidade.

Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener

  • Editora: Mariner Books
  • Autor: Gay Talese
  • 320 páginas; Capa dura R$ 149,23 (em inglês)

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Gay Talese tem um tique. Quero tirar isso da frente logo porque, no geral, tenho uma tremenda admiração por ele: aquela eminência jovial do velho New Journalism que é ao mesmo tempo um marco vivo de Manhattan e seu melhor personagem.

É um tique de escritor, o hábito retrô de se referir às mulheres pela cor do cabelo, mas como substantivo e não como adjetivo. “Uma morena esbelta e atraente”. “Uma loira esbelta e estilosa com rabo de cavalo”. “Uma morena jovem e sociável”. “Uma morena alegre e muito perfumada de vestido vermelho”.

Pelo menos as velhas raposas – das quais o elegante Talese, aos 91 anos, é um excelente exemplo – têm o privilégio de serem comparadas a um animal inteligente.

Em ‘Bartleby and Me’, o “velho escrivão” explora as nuances entre as pessoas humiles e a elite de Nova York Foto: Nathan Bajar/The New York Times

Apesar de tudo isso, se a ocasional sensação de se sentir presa dentro de um cartoon de Peter Arno é o preço para se uma ler uma nova obra de Talese, pode contar comigo. Mas só um pedaço de seu último livro, ‘Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener’ (Bartleby and Me: reflexões de um velho escrivão, em tradução livre), do qual foram extraídas as citações acima, pode ser justamente chamado de novo.

(O livro tem previsão de publicação no Brasil para 2024, ainda sem data específica, pela Companhia das Letras).

É a Parte 3, a história de Nicholas Bartha, o médico emigrante romeno que em 2006 explodiu sua casa multimilionária no Upper East Side – se matando no processo – só para não a vender e deixar que sua ex-mulher ficasse com os lucros, como um juiz havia ordenado.

O que aconteceu depois que as 400 toneladas de destroços foram removidas envolve “uma loira glamorosa de 40 anos, nascida na Rússia e chamada Janna Bullock”, incorporadora imobiliária e habitué das colunas sociais, a quem Talese, também do Upper East Side, se refere, um tanto mais originalmente, como “a condessa dos negócios”. É uma história memorável, bem no quintal de Talese.

Intitulado em homenagem ao clássico de Herman Melville, Bartleby and Me alude tanto ao próprio status de Talese como um autodenominado “velho escrivão” quanto às figuras mais humildes que mais capturaram seu interesse ao longo da longa carreira: porteiros, motoristas, cozinheiros, balconistas, faxineiros, policiais, prostitutas (Trata-se de um escritor que parece reunir arquivos biográficos até mesmo para pedaços de pedra). Jack Vergara – velho empregado do vizinho Links Club que sentiu o cheiro de gás emanando da casa prestes a explodir, ligou para Con Ed e insistiu que apenas um café da manhã simples fosse servido aos sócios do clube naquela manhã – é o tipo de “personagem subsidiário” e indelével em que Talese se especializou.

Capa do livro 'Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener', de Gay Talese Foto: Mariner Books

Na verdade, a relativa indiferença de Talese à celebridade foi o que garantiu sua própria fama. Muito antes do quiet quitting veio a frase de Bartleby: “Prefiro não”. É a essência do que Talese respondeu a Harold Hayes, editor da então poderosa Esquire, quando solicitado a escrever o perfil que se tornaria talvez o mais venerado na história da revista, Frank Sinatra Has a Cold (Frank Sinatra está resfriado, em tradução livre) (1966). O artigo inspiraria incontáveis talentos menores a circular em volta de qualquer famoso com quem não conseguissem conversar por meia hora e distorcer o resultado numa narrativa floreada para as revistas.

A Parte 2 de Bartleby and Me é a história por trás da história de Sinatra – e até mesmo a história por trás da história por trás da história de Sinatra: um apanhado das anotações de Talese publicado na mesma edição, onde o autor xinga e expressa sua desconfiança em Hayes.

São reveladas algumas ferramentas e truques do ofício do escritor, entre eles os blocos de papelão, recuperados de suas camisas lavadas, que ele usa para fazer anotações, às vezes na privacidade de uma cabine de banheiro. (O hábito de Talese de negligenciar o uso do gravador, junto com interesses especiais que poderiam ser chamados de lascivos – casas de massagem e voyeurismo de motel, entre outros – gerou revolta entre alguns vigilantes do jornalismo). Outro tique mais cativante: seu método de conectar indivíduos díspares numa espécie de passagem de bastão de capítulo a capítulo.

A Parte 1 é sobre o tempo de Talese no New York Times, onde um repórter mais experiente certa vez o aconselhou: “Meu jovem, nunca entreviste ninguém por telefone, se puder”. (Comparado a e-mail, mensagem de texto e Gchat, o telefone agora parece uma relíquia sagrada).

Reconhecido por seu livro épico sobre o Times e seus líderes, The Kingdom and the Power (1969), um clássico dos estudos de mídia, Talese examina seus subordinados e subalternos – os impressores e operadores de linotipo, um número substancial daqueles “surdos-mudos” que iam buscar bebidas no Gough’s Chop House com chapéus manchados de tinta, além dos revisores, “indivíduos reservados, pensativos e ponderados”.

Ele se concentra em um deles, Alden Whitman, que se tornou o principal redator de obituários (ele se autodenominava o “feliz remador do Estige”), que Talese também perfilou para a Esquire, com consideravelmente mais acesso do que Sinatra lhe concedera. O perfil rendeu a Whitman um lugar ao lado de Johnny Carson no The Tonight Show. Eram tempos diferentes.

Talese já havia tentado – e, sob muitos aspectos, fracassado – um livro de memórias, nomeadamente o cambaleante A Writer’s Life (2006). Bartleby and Me é mais um passeio, no qual ele parece dispensar a forma filigranando alguns de seus grandes sucessos e, em seguida, acrescentando uma detalhe ou outro. Ele fez tudo do seu jeito – e dá para imaginar ele e o fantasma de Sinatra fazendo duo num número de música e dança, dois marinheiros felizes na cidade.

Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener

  • Editora: Mariner Books
  • Autor: Gay Talese
  • 320 páginas; Capa dura R$ 149,23 (em inglês)

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Gay Talese tem um tique. Quero tirar isso da frente logo porque, no geral, tenho uma tremenda admiração por ele: aquela eminência jovial do velho New Journalism que é ao mesmo tempo um marco vivo de Manhattan e seu melhor personagem.

É um tique de escritor, o hábito retrô de se referir às mulheres pela cor do cabelo, mas como substantivo e não como adjetivo. “Uma morena esbelta e atraente”. “Uma loira esbelta e estilosa com rabo de cavalo”. “Uma morena jovem e sociável”. “Uma morena alegre e muito perfumada de vestido vermelho”.

Pelo menos as velhas raposas – das quais o elegante Talese, aos 91 anos, é um excelente exemplo – têm o privilégio de serem comparadas a um animal inteligente.

Em ‘Bartleby and Me’, o “velho escrivão” explora as nuances entre as pessoas humiles e a elite de Nova York Foto: Nathan Bajar/The New York Times

Apesar de tudo isso, se a ocasional sensação de se sentir presa dentro de um cartoon de Peter Arno é o preço para se uma ler uma nova obra de Talese, pode contar comigo. Mas só um pedaço de seu último livro, ‘Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener’ (Bartleby and Me: reflexões de um velho escrivão, em tradução livre), do qual foram extraídas as citações acima, pode ser justamente chamado de novo.

(O livro tem previsão de publicação no Brasil para 2024, ainda sem data específica, pela Companhia das Letras).

É a Parte 3, a história de Nicholas Bartha, o médico emigrante romeno que em 2006 explodiu sua casa multimilionária no Upper East Side – se matando no processo – só para não a vender e deixar que sua ex-mulher ficasse com os lucros, como um juiz havia ordenado.

O que aconteceu depois que as 400 toneladas de destroços foram removidas envolve “uma loira glamorosa de 40 anos, nascida na Rússia e chamada Janna Bullock”, incorporadora imobiliária e habitué das colunas sociais, a quem Talese, também do Upper East Side, se refere, um tanto mais originalmente, como “a condessa dos negócios”. É uma história memorável, bem no quintal de Talese.

Intitulado em homenagem ao clássico de Herman Melville, Bartleby and Me alude tanto ao próprio status de Talese como um autodenominado “velho escrivão” quanto às figuras mais humildes que mais capturaram seu interesse ao longo da longa carreira: porteiros, motoristas, cozinheiros, balconistas, faxineiros, policiais, prostitutas (Trata-se de um escritor que parece reunir arquivos biográficos até mesmo para pedaços de pedra). Jack Vergara – velho empregado do vizinho Links Club que sentiu o cheiro de gás emanando da casa prestes a explodir, ligou para Con Ed e insistiu que apenas um café da manhã simples fosse servido aos sócios do clube naquela manhã – é o tipo de “personagem subsidiário” e indelével em que Talese se especializou.

Capa do livro 'Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener', de Gay Talese Foto: Mariner Books

Na verdade, a relativa indiferença de Talese à celebridade foi o que garantiu sua própria fama. Muito antes do quiet quitting veio a frase de Bartleby: “Prefiro não”. É a essência do que Talese respondeu a Harold Hayes, editor da então poderosa Esquire, quando solicitado a escrever o perfil que se tornaria talvez o mais venerado na história da revista, Frank Sinatra Has a Cold (Frank Sinatra está resfriado, em tradução livre) (1966). O artigo inspiraria incontáveis talentos menores a circular em volta de qualquer famoso com quem não conseguissem conversar por meia hora e distorcer o resultado numa narrativa floreada para as revistas.

A Parte 2 de Bartleby and Me é a história por trás da história de Sinatra – e até mesmo a história por trás da história por trás da história de Sinatra: um apanhado das anotações de Talese publicado na mesma edição, onde o autor xinga e expressa sua desconfiança em Hayes.

São reveladas algumas ferramentas e truques do ofício do escritor, entre eles os blocos de papelão, recuperados de suas camisas lavadas, que ele usa para fazer anotações, às vezes na privacidade de uma cabine de banheiro. (O hábito de Talese de negligenciar o uso do gravador, junto com interesses especiais que poderiam ser chamados de lascivos – casas de massagem e voyeurismo de motel, entre outros – gerou revolta entre alguns vigilantes do jornalismo). Outro tique mais cativante: seu método de conectar indivíduos díspares numa espécie de passagem de bastão de capítulo a capítulo.

A Parte 1 é sobre o tempo de Talese no New York Times, onde um repórter mais experiente certa vez o aconselhou: “Meu jovem, nunca entreviste ninguém por telefone, se puder”. (Comparado a e-mail, mensagem de texto e Gchat, o telefone agora parece uma relíquia sagrada).

Reconhecido por seu livro épico sobre o Times e seus líderes, The Kingdom and the Power (1969), um clássico dos estudos de mídia, Talese examina seus subordinados e subalternos – os impressores e operadores de linotipo, um número substancial daqueles “surdos-mudos” que iam buscar bebidas no Gough’s Chop House com chapéus manchados de tinta, além dos revisores, “indivíduos reservados, pensativos e ponderados”.

Ele se concentra em um deles, Alden Whitman, que se tornou o principal redator de obituários (ele se autodenominava o “feliz remador do Estige”), que Talese também perfilou para a Esquire, com consideravelmente mais acesso do que Sinatra lhe concedera. O perfil rendeu a Whitman um lugar ao lado de Johnny Carson no The Tonight Show. Eram tempos diferentes.

Talese já havia tentado – e, sob muitos aspectos, fracassado – um livro de memórias, nomeadamente o cambaleante A Writer’s Life (2006). Bartleby and Me é mais um passeio, no qual ele parece dispensar a forma filigranando alguns de seus grandes sucessos e, em seguida, acrescentando uma detalhe ou outro. Ele fez tudo do seu jeito – e dá para imaginar ele e o fantasma de Sinatra fazendo duo num número de música e dança, dois marinheiros felizes na cidade.

Bartleby and Me: Reflections of an Old Scrivener

  • Editora: Mariner Books
  • Autor: Gay Talese
  • 320 páginas; Capa dura R$ 149,23 (em inglês)

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