THE WASHINGTON POST | Quando criança, me levaram para ver uma versão em filme de animação do romance A revolução dos bichos, de George Orwell. Muito nova para entender que estava assistindo a uma alegoria sobre o stalinismo, presumi que Orwell era uma espécie de Disney pessimista, com todos aqueles desenhos assustadores de porcos ditatoriais e cavalos exaustos mandados para o abate.
Tempos depois, entendi o que Orwell queria com o livro, mas só recentemente, lendo Wifedom, de Anna Funder, descobri um novo fato (ou talvez uma nova teoria) sobre A revolução dos bichos: Orwell o escreveu em colaboração com sua primeira esposa, Eileen. “A própria forma do livro – fábula, romance, sátira – foi ideia de Eileen. Ela o dissuadiu de escrever um ensaio crítico sobre Stalin e o totalitarismo”.
Funder cita Tosco Fyvel, biógrafo de Orwell: “Se A revolução dos bichos é uma história perfeita, com seu toque leve e contenção (quase ‘não orwelliano’), acho que parte do crédito se deve à influência conversacional de Eileen e ao toque leve de sua inteligência brilhante e humorística”. Lydia Jackson, amiga íntima de Eileen, concordou: “Pessoalmente, tenho poucas dúvidas de que, de uma maneira sutil e indireta, Eileen colaborou na criação de A revolução dos bichos”.
Parte biografia e parte ficção especulativa
Eileen se casou com Orwell em 1936 e, nove anos depois, aos 39 anos de idade, adoeceu com câncer. Desmoralizada pela doença e pelas infidelidades, maldades e negligências de Orwell (de acordo com Funder), ela se considerava indigna de tratamento médico caro e de primeira linha.
Antes de uma histerectomia barata, Eileen escreveu uma carta a Orwell, que estava viajando, dizendo esperar não o incomodar com seu problema. “Uma coisa muito boa é que, quando você chegar em casa, estarei convalescente, enfim convalescente, e você não terá o pesadelo do hospital que tanto detestaria”. Ela não sobreviveu a complicações da doença.
Funder pega esse material fascinante e cria um híbrido peculiar. Wifedom é parte biografia e parte ficção especulativa escrita no tempo presente. Traz passagens de diálogo e relatos de pensamentos privados e momentos íntimos que somente as pessoas envolvidas poderiam ter registrado ou presenciado. (“O sexo é estranho. Superficial. Ou burocrático. Não parece ser um ato de comunicação nem de paixão”.)
Parte disso se baseia em cartas de Eileen para sua amiga Norah Symes Myles, mas muitas vezes é difícil dizer o que Eileen confidenciou e o que Funder – cujos livros anteriores incluem Stasiland e All That I Am – inventou.
Nossa resposta a essa abordagem pode depender de concordarmos ou não com uma frase da biografia de Mary Shelley escrita por Muriel Spark: “Nunca gostei do tipo de biografia que afirma ‘X deitou na cama e observou a vela tremeluzir nas vigas do telhado’ quando não há evidência de que X tenha feito nada disso”.
Tentativa de retratar o homem sem depreciar a obra
Na mistura de Wifedom também vêm grandes trechos de memórias em que Funder descreve sua vida doméstica: assistindo à audiência de confirmação de Brett M. Kavanaugh na Suprema Corte com seu filho, explicando o movimento #MeToo para sua filha e morando com um marido cuja gentileza talvez não compense os desequilíbrios de poder inerentes ao sistema patriarcal.
“O patriarcado é muito grande e eu sou muito pequena ou estúpida, ou simplesmente não estou pronta para a luta”, ela escreve. “A vida de esposa é um truque de mágica perverso que aprendemos a pregar em nós mesmas. Quero expor como isso é feito e assim minar seu poder perverso e enganador”.
Logo no início, Funder nos diz: “a obra de Orwell é preciosa para mim. Não quero rebaixar nem o trabalho nem o autor, de forma alguma”. Mas é difícil imaginar um rebaixamento mais feroz do que o que Funder lança com seu catálogo dos crimes terríveis de Orwell.
No Marrocos, ele pediu (e aparentemente recebeu) a permissão de Eileen para dormir com uma jovem prostituta local. Depois de anos tentando seduzir Lydia Jackson, amiga de Eileen, ele finalmente conseguiu se enfiar na cama dela. Ela se lembra de ter tentado “convencê-lo a não forçar nada”. Ele parece ter tido uma visão bastante frívola da agressão sexual e de suas tentativas de “pular em cima” das mulheres que resistiam a ele.
E seguidas vezes subestimou as contribuições de Eileen para sua vida doméstica e profissional: datilografar manuscritos, lidar com editores, cuidar dele durante as crises de saúde, limpar a latrina que, nojenta, transbordava no seu quintal. Funder cita como especialmente condenatória uma passagem do caderno de Orwell na qual ele listou “dois grandes fatos sobre as mulheres (...). Primeiro, elas eram incorrigivelmente sujas e confusas. Segundo, tinham uma sexualidade terrível e devoradora”.
A parte mais interessante do livro diz respeito ao tempo que Orwell passou lutando contra o exército de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola – experiência sobre a qual ele escreveu em Homenagem à Catalunha. Eileen também estava na Espanha naquela época, vivendo uma vida exaustiva, desafiadora e muitas vezes perigosa, trabalhando no escritório de Barcelona do Partido Trabalhista Independente Britânico, enganando espiões stalinistas, tentando ajudar amigos e colegas de trabalho que foram presos e, em alguns casos, executados.
Quando Orwell foi ferido na frente de batalha, ela correu para o lado dele, mas sua presença lá – como a maior parte do que ela fez na Espanha – passou despercebida no livro dele. “Orwell gasta mais de 2.500 palavras nos contando sobre seu tratamento no hospital sem mencionar que Eileen estava lá. Eu me pergunto o que ela sentiu, mais tarde, enquanto as datilografava”. Examinando o texto, Funder encontra 37 menções a “minha esposa”, mas “nem uma vez o nome de Eileen. Nenhum personagem pode ganhar vida sem nome. Mas de uma esposa, que é uma função, um trabalho, tudo pode ser roubado”.
Uma mulher ofuscada
Apesar das evidências esmagadoras contra Orwell, me peguei sentindo que o casamento de Eileen e George deve ter sido um pouco mais complexo do que um simples caso de tirania patriarcal, de opressor contra oprimida. Basta lembrar de outras mulheres que viveram naquela época (Jean Rhys, Rebecca West, Elsa Morante) e que conseguiram escrever algumas coisas em vez de se submeterem humildemente ao abuso emocional do gênio de plantão. Funder nunca explica totalmente: o que havia em Eileen que a tornava uma presa tão fácil, uma vítima tão indefesa?
Lendo Wifedom, me senti um pouco culpada por quantas vezes pensei no brilhante ensaio de Orwell A Política e a Língua Inglesa, no qual ele critica as falhas – imprecisão, falta de jeito, abuso do jargão e do clichê – que assolam Wifedom. Muitas passagens me deixaram imaginando o que Funder estava tentando dizer: “A primeira tarefa da imaginação, para quem escreve, é criar o eu que escreve. É um trabalho e tanto, e ajuda ter dois nessa missão: ela, acreditando em você, para que você também possa acreditar em si mesmo. Esse eu nutrido é então a mãe da obra. E a obra, por sua vez, torna-se evidência de um eu: fiz, logo existo”.
Nos capítulos finais do livro, sentimos profundamente por Eileen, mesmo quando notamos como ela era engenhosa e resiliente – até certo ponto. É comovente e triste descobrir que uma mulher que demonstrou tanta coragem e inteligência é, em Wifedom, mais uma vez ofuscada pelo mau caráter de seu talentoso marido e, em menor medida, pela intensidade do admirável e bem-intencionado – ainda que, por vezes, bombástico – acerto de contas de Funder com o patriarcado.
*Francine Prose, ilustre escritora do Bard College, é autora de inúmeras obras de ficção e não-ficção, incluindo Anne Frank: The Book, the Life, the Afterlife e, mais recentemente, Cleopatra: Her History, Her Myth.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Wifedom: Mrs. Orwell’s Invisible Life
- Editora: Knopf
- Autora: Anna Funder
- 464 páginas; R$ 165,89 (Impresso); R$ 87,23 (E-book) - Livro em inglês