Os herdeiros de Graciliano Ramos (1892-1953) bem que tentaram evitar que a obra do escritor alagoano entrasse em domínio público em 2024. Em 2018, acreditando que isso seria possível, eles renovaram o contrato com a Record até 2029. Depois de algumas idas e vindas que envolveram assessoria jurídica e conversas em Brasília, não houve outra alternativa a não ser aceitar que a partir do dia 1º de janeiro qualquer editora poderá publicar Vidas Secas, Angústia e São Bernardo, entre outros livros já editados ou ainda não pensados, e qualquer pessoa poderá fazer o que quiser sem autorização ou pagamento - filme, peça, musical.
Aceitar não. Acatar. “Aceitar eu não aceito, mas é a lei e tem que cumprir. Uma lei absurda”, diz ao Estadão o escritor Ricardo Ramos Filho (1954), neto de Graciliano e filho de Ricardo (1929-1992). Até agora, os direitos eram divididos em cinco partes. Ricardo e os dois irmãos abriram mão da sua fração para que a mãe pudesse receber mais. Descendentes de seus tios Luiza Ramos, Lucio Ramos, Júnio Ramos e Clara Ramos também recebem.
Ele explica que não é exatamente contra o acesso gratuito à obra de um autor no ano seguinte aos 70 anos de sua morte - como prevê a lei de direitos autorais. Poderia até acontecer antes, em sua opinião. Ele não concorda, porém, com a comercialização dessa obra onde quem ganha não é a família ou o público, mas, sim, a editora.
Diferentemente de outros autores esquecidos que acabam redescobertos neste momento em que a obra entra em domínio público, ou de escritores cuja obra acaba se popularizando nesta ocasião, como o que aconteceu com Virginia Woolf, ou se tornando mais acessível, caso de Freud, Graciliano Ramos nunca ficou de fora das prateleiras - a Record tem sido sua editora desde 1975 e já vendeu mais de 4,5 milhões de exemplares. O best-seller é Vidas Secas, com quase dois milhões de exemplares vendidos. Mais especificamente, 1.972.736 até a terceira semana de dezembro.
Vidas Secas está, justamente, na primeira leva de lançamentos que chegam às livrarias no início do ano. “Vai ser guerra”, afirma Ricardo se referindo à concorrência e à necessidade que as editoras vão ter de enriquecer suas edições para se diferenciar.
Novas edições de livros de Graciliano Ramos em 2024
Sem alarde ou divulgação, talvez ainda esperando a reação ou alguma ação da família, Todavia e Companhia das Letras trabalham para lançar os primeiros livros de suas coleções dedicadas a Graciliano Ramos. A da Todavia é coordenada por Thiago Mio Salla, especialista na obra do escritor, e será inaugurada em janeiro com Angústia e Vidas Secas. Em fevereiro, a Penguin-Companhia das Letras lança Angústia, Vidas Secas e São Bernardo.
A Record, que quer se manter como referência - e que ainda pagará os 10% do preço de capa para os herdeiros do escritor - saiu na frente das outras editoras interessadas. Até porque podia. Já está à venda um box para colecionador contendo seus três romances mais conhecidos: Angústia, Vidas Secas e São Bernardo, com prefácio, respectivamente, de Silviano Santiago, Hermenegildo Bastos e Godofredo de Oliveira Neto e texto inédito de Ivan Marques, professor de literatura brasileira, com histórias da composição dos livros e suas principais características literárias.
Em janeiro, ela lança uma edição de bolso de Vidas Secas, que deve ser mais barata.
Outro lançamento, previsto para abril, vai apresentar os relatórios que Graciliano escreveu ao governador de Alagoas, em 1928 e 1929, quando era prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, prestando contas de sua administração. A editora destaca que os documentos mostram uma radiografia dos problemas brasileiros, revelam a voz direta que caracterizou os romances do escritor e já apontam para o literário de sua escrita.
Outra novidade da Record e da família: parte dos royalties será doada à ONG Innocence Project Brasil, que auxilia pessoas condenadas e presas injustamente - como Graciliano.
Além dessas novas edições, outros livros, incluindo de crítica, devem estar no radar. E, neste sentido, o pesquisador Edilson Dias de Moura também saiu na frente. Ele acaba de lançar, pelas Edições Sesc, um livro baseado em sua tese de doutorado e que se volta à experiência do escritor na administração pública e aos ecos dessa sua atuação em seus romances.
Graciliano: Romancista, Homem Público, Antirracista resgata o período em que Graciliano foi prefeito de Palmeira dos Índios, diretor da Imprensa Oficial e diretor da Instrução Pública de Alagoas, fala sobre sua coerência, apresenta algumas de suas ações (proibiu cargos de amizade, castigo físico, garantiu material escolar, merenda e uniforme, entre outras coisas), e mostra como seus ideais progressistas aparecem também em seus romances.
Leia a seguir a entrevista concedida por Ricardo Ramos Filho às vésperas da entrada da obra de Graciliano Ramos em domínio público.
Chegou a hora do domínio público. Como você está vendo o momento?
Com muita chateação, por considerar a lei do domínio público uma excrescência. Poderia até ser menos de 70 anos se fosse para ajudar mesmo o público. O fato da obra, agora, ser disponibilizada no site Domínio Público e qualquer pessoa poder acessá-la é bacana. Sou totalmente favorável a isso. O que não sou favorável e acho que não tem nada a ver com o domínio público é uma editora comercializar a obra e ficar com todo o direito autoral sem pagar nada para família. No que o público se beneficia com isso? Em nada. Só tira da família. A editora vai cobrar mais barato pelo livro por causa disso? Não vai. Se alguém resolver fazer um filme sobre Graciliano, o ingresso do filme vai ser mais barato porque está em domínio público? Não.
Tudo o que se refere à comercialização da obra não deveria ser chamado de domínio público. É lei, temos que respeitar a lei. Vai entrar em domínio público? Paciência. Minha mãe tem 93 anos e depende de direito autoral do Graciliano Ramos. Ela só não vai deixar de receber porque temos um contrato com a Record até 2029. Mas o que for publicado por outras editoras que estarão concorrendo com a Record vai ficar tudo para a editora.
Quanto a editora vai deixaria de receber se vocês não tivessem renovado com a Record?
Não é legal falar em dinheiro, mas é um montante que é dividido por cinco ramos familiares e que dá para a minha mãe, uma senhora de 93 anos, viver muito bem. Ela recebe um quinto dos direitos, pagos trimestralmente. Eu e meu irmão abrimos mão. Então ela recebe a parte dela e a de nós três, que representa 27% do total dos direitos.
Quando a família renovou com a Record em 2018, vocês acreditaram que daria para reverter a lei?
Eu acreditava. Tentei. Conversei com deputados, que não vou dizer o nome, tentando modificar a lei. O que me foi dito na época, e eu concordo, é que não era uma pauta de esquerda. E disseram que eu teria mais chance se eu tentasse fazer isso com algum deputado de direita. Como não converso com gente direita, não fui atrás.
As novas edições devem trazer um material diferente, com textos críticos, para se diferenciarem entre si.
Vão tentar. E vai ser uma guerra. A Record, com a experiência de anos publicando Graciliano e com a obra inteira em catálogo, e outras editoras que vão tentar se diferenciar por alguma razão. Como membro da família, e não só por receber direito autoral, mas por confiar no trabalho da Record, vou apoiar e indicar as edições dela. E nós também vamos fazer coisas diferentes, com lançamentos previstos para o começo do ano.
Você tem algum receio com relação a essas edições que vão começar a ser publicadas?
Meu único receio é de fazerem de qualquer jeito. Encontramos Machado de Assis mal editado e bem editado. É livre. Nada garante que isso esteja tendo um um controle. No caso das edições da Record, o controle que sempre houve continuará havendo. Quanto às outras edições, não sei o que vão fazer nem como vão fazer. Meu receio é ver um Graciliano mal cuidado. Com o domínio público, nem a fidelidade ao original eu posso garantir.
Apesar da questão do pagamento de direitos à família, acha que a obra de Graciliano Ramos pode se beneficiar de alguma forma? Quando O Pequeno Príncipe entrou em domínio público, todas as editoras, incluindo a que publicava a obra antes, passaram a vender muito bem.
Eu teria que acreditar no princípio liberal, de que a concorrência ajuda. Mas sinceramente não acredito nisso. Não vejo por que mais editoras publicando Graciliano pode ajudar Graciliano. Algumas editoras podem fazer isso de uma maneira muito cuidadosa, mas também pode acontecer de ter muita porcaria Vai acontecer dos dois jeitos.
Entendi que a família aceitou, então, o domínio público. Mas alguma coisa ainda pode acontecer em 1º de janeiro? A família poderia tentar impedir a venda dos novos livros, por exemplo?
Aceitar eu não aceito, mas é lei e tem que cumprir. Infelizmente não tenho nenhuma carta debaixo da manga. Eu gostaria de ter e poder impedir, mas não não vai acontecer. Vai entrar normalmente em domínio público e vou continuar achando essa lei absurda. Vai entrar em domínio público como manda a lei.
Todos os livros de Graciliano
Graciliano estreou com Caetés (1933) e publicou, na sequência, São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938). Nos anos 1940, ele lançou quatro coletâneas de contos: Histórias de Alexandre (1944), Dois Dedos (1945), Histórias Incompletas (1946) e Insônia (1947). Depois de sua morte, em 1953, saiu Alexandre e Outros Heróis (1962).
Em sua bibliografia, até este momento, estão ainda os memorialísticos Infância (1945) e outro póstumo - Memórias do Cárcere (1953). Outras publicações seguiram. São elas: Viagem (1954), Linhas Tortas e Viventes das Alagoas (1962), Cartas (1980), Cartas a Heloísa (1992), Cartas inéditas de Graciliano Ramos a Seus Tradutores Argentinos (2008), Garranchos (2012) e Cangaços e Conversas (2014).