Henry Kissinger e o Brasil: biógrafo explica relação do mestre da diplomacia com Pelé e militares


‘Tal como só o século 20 poderia ter produzido Picasso, nenhum outro século poderia ter produzido um homem como Kissinger’, diz o historiador Niall Ferguson em entrevista ao ‘Estadão’

Por Ubiratan Brasil
Atualização:

“Você fala espanhol?”, perguntou Richard Nixon. “Não, português, mas é tudo a mesma coisa”, respondeu Pelé. O insólito diálogo foi trocado no Salão Oval da Casa Branca em maio de 1973, quando o então presidente dos Estados Unidos estava preocupado com o escândalo Watergate, que o levaria a renunciar no ano seguinte. Abrir espaço em sua atribulada agenda, portanto, ao principal representante de um esporte ainda desconhecido pelos americanos foi obra de um hábil político: Henry Kissinger, o mais influente diplomata da segunda metade do século 20, que morreu no dia 29 de novembro aos 100 anos.

O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger e o astro do futebol brasileiro Pelé posam para uma fotografia durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, no Estádio Olímpico Foto: John Stillwell/Reuters

“Kissinger era apaixonado pelo futebol - gostava de chamar o esporte de ‘football’, como os ingleses, e não de ‘soccer’, como os americanos - e Pelé foi certamente um dos brasileiros que ele mais admirava. Ele nunca perdeu seu amor pelo futebol e sempre falava comigo a respeito até o fim de sua vida”, comenta Niall Ferguson, historiador escocês que há 20 anos pesquisa a trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA.

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Uma parte do portentoso trabalho está em Kissinger 1923-1968: O Idealista, primeiro de dois volumes sobre os passos de um político que foi reverenciado e insultado com a mesma intensidade, e que chega agora ao Brasil, lançado pelo selo Crítica da Editora Planeta. O segundo livro, avisa Ferguson, deverá sair no fim de 2024 ou início de 2025.

A história de Pelé deverá constar nesse novo volume, assim como o encontro do jogador com outro presidente americano, Gerald Ford, em junho de 1975, também costurado por Kissinger. Ele preparou um detalhado dossiê sobre o brasileiro e a importância do futebol em nosso país para o prévio conhecimento do mandatário.

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Lá, além de detalhar a importância de Pelé no esporte mundial (ele acabara de ser contratado pelo Cosmos, de Nova York), Kissinger ensina ainda a como pronunciar o apelido do brasileiro: PEH-LAY. Ford, no entanto, não teve tempo de ler o documento e o que ficou para a posteridade foi a imagem de Pelé ensinando Ford a dominar uma bola.

“São as origens de Kissinger que explicam essa paixão pelo esporte”, continua Ferguson, enumerando as diversas fases da vida do diplomata: nascido em uma família judia que fugiu da Alemanha Nazista, pobre imigrante em Nova York, soldado na Batalha das Ardenas (confronto militar mais sangrento que as forças americanas enfrentaram na Segunda Guerra Mundial), interrogador de nazistas e estudante de História em Harvard.

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“Logo, ele se tornou conselheiro do empresário Nelson Rockfeller e dos presidentes John Kennedy e Richard Nixon, para o qual trabalhou como conselheiro de segurança nacional. Essas transições fizeram parte da metamorfose americana e, na verdade, da vida global, alterando as estruturas hierárquicas de meados do século 20 para algo mais flexível.”

Niall Ferguson

Foi essa constante mutabilidade que lhe garantia cada vez mais poder que convenceu o historiador a analisá-lo sob um olhar cubista, o que já inspira a concepção do novo livro. “Como o quadro Demoiselles d’Avignon, de Picasso, é preciso vê-lo de vários ângulos ao mesmo tempo para compreendê-lo completamente. E, tal como só o século 20 poderia ter produzido Picasso e tornado a sua visão não apenas inteligível mas extremamente popular, nenhum outro século poderia ter produzido um homem como Kissinger. Eu tinha que mostrar todos seus lados de uma só vez.”

Figura controversa, ele foi acusado de omissão que resultou em mortes de inocentes em países como Bangladesh, Camboja, Chile e Timor Leste. “Havia uma hierarquia de prioridades estratégicas e o próprio Kissinger dizia que política externa exigia quase sempre decidir entre escolhas maléficas”, observa Ferguson, que já trata da relação do diplomata com o Brasil neste primeiro volume.

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Em maio de 1962, Kissinger fez sua primeira visita ao País e logo concluiu que o então presidente João Goulart, assim como seu antecessor Jânio Quadros, pretendia dar uma guinada para esquerda. “As perspectivas do Brasil no curto prazo eram bastante desanimadoras”, observou Kissinger.

O golpe militar em 1964, portanto, foi visto com bons olhos. “Para um homem que combatia a Guerra Fria, todo radical aparentava ser uma ferramenta soviética, toda revolução um golpe da KGB (serviço de inteligência soviético)”, escreve o historiador.

Antônio Azeredo da Silva e Henry Kissinger no Departamento de Estado, em Washington, saindo do primeiro encontro entre os dois, em abril de 1974 Foto: Arquivo Azeredo da Silveira/CPDOC/FGV
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Além de Pelé, ele menciona outro brasileiro estimado pelo diplomata americano: Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). “Não se tratava de uma amizade próxima, mas sim uma decisão estratégica para dar prioridade ao Brasil. E Azeredo também entendia perfeitamente isso.”

Tal polivalência no trato com diferentes tipos de líderes fez com que Ferguson comparasse Kissinger a Zelig, personagem de um filme de 1983 de Woody Allen cujo talento único para o mimetismo permite que ele agrade pessoas de todos os setores da sociedade.

O historiador, porém, nega a análise de vários críticos que viam Kissinger como inspiração para o general alemão do filme Dr. Fantástico (1964), clássica sátira de guerra de Stanley Kubrick. Para ele, não há proximidade. “Kissinger não se encaixa no papel porque o personagem é obviamente um ex-nazista. Havia um grande número de alemães envolvidos na política nuclear, portanto, existiam outros candidatos mais inspiradores ao papel.”

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A longevidade do ex-secretário de Estado é creditada pelo biógrafo ao seu histórico familiar, pois os pais, além de ultrapassar os 90 anos de idade, nunca sofreram qualquer deterioração mental grave. “Kissinger também nunca parou de se envolver, de ler, de pensar, de viajar, de fazer conexões, nunca parou de negociar. Após seu aniversário de 100 anos, em maio deste ano, ele foi para a China, onde foi recebido com tapete vermelho e se encontrou com Xi Jinping. Com isso, terminou como a própria personificação do século 20.”

Capa de 'Kissinger 1923-1968: O Idealista', de Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador da trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA CRÉDITO: Crítica Foto: Crítica

“Você fala espanhol?”, perguntou Richard Nixon. “Não, português, mas é tudo a mesma coisa”, respondeu Pelé. O insólito diálogo foi trocado no Salão Oval da Casa Branca em maio de 1973, quando o então presidente dos Estados Unidos estava preocupado com o escândalo Watergate, que o levaria a renunciar no ano seguinte. Abrir espaço em sua atribulada agenda, portanto, ao principal representante de um esporte ainda desconhecido pelos americanos foi obra de um hábil político: Henry Kissinger, o mais influente diplomata da segunda metade do século 20, que morreu no dia 29 de novembro aos 100 anos.

O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger e o astro do futebol brasileiro Pelé posam para uma fotografia durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, no Estádio Olímpico Foto: John Stillwell/Reuters

“Kissinger era apaixonado pelo futebol - gostava de chamar o esporte de ‘football’, como os ingleses, e não de ‘soccer’, como os americanos - e Pelé foi certamente um dos brasileiros que ele mais admirava. Ele nunca perdeu seu amor pelo futebol e sempre falava comigo a respeito até o fim de sua vida”, comenta Niall Ferguson, historiador escocês que há 20 anos pesquisa a trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA.

Uma parte do portentoso trabalho está em Kissinger 1923-1968: O Idealista, primeiro de dois volumes sobre os passos de um político que foi reverenciado e insultado com a mesma intensidade, e que chega agora ao Brasil, lançado pelo selo Crítica da Editora Planeta. O segundo livro, avisa Ferguson, deverá sair no fim de 2024 ou início de 2025.

A história de Pelé deverá constar nesse novo volume, assim como o encontro do jogador com outro presidente americano, Gerald Ford, em junho de 1975, também costurado por Kissinger. Ele preparou um detalhado dossiê sobre o brasileiro e a importância do futebol em nosso país para o prévio conhecimento do mandatário.

Lá, além de detalhar a importância de Pelé no esporte mundial (ele acabara de ser contratado pelo Cosmos, de Nova York), Kissinger ensina ainda a como pronunciar o apelido do brasileiro: PEH-LAY. Ford, no entanto, não teve tempo de ler o documento e o que ficou para a posteridade foi a imagem de Pelé ensinando Ford a dominar uma bola.

“São as origens de Kissinger que explicam essa paixão pelo esporte”, continua Ferguson, enumerando as diversas fases da vida do diplomata: nascido em uma família judia que fugiu da Alemanha Nazista, pobre imigrante em Nova York, soldado na Batalha das Ardenas (confronto militar mais sangrento que as forças americanas enfrentaram na Segunda Guerra Mundial), interrogador de nazistas e estudante de História em Harvard.

“Logo, ele se tornou conselheiro do empresário Nelson Rockfeller e dos presidentes John Kennedy e Richard Nixon, para o qual trabalhou como conselheiro de segurança nacional. Essas transições fizeram parte da metamorfose americana e, na verdade, da vida global, alterando as estruturas hierárquicas de meados do século 20 para algo mais flexível.”

Niall Ferguson

Foi essa constante mutabilidade que lhe garantia cada vez mais poder que convenceu o historiador a analisá-lo sob um olhar cubista, o que já inspira a concepção do novo livro. “Como o quadro Demoiselles d’Avignon, de Picasso, é preciso vê-lo de vários ângulos ao mesmo tempo para compreendê-lo completamente. E, tal como só o século 20 poderia ter produzido Picasso e tornado a sua visão não apenas inteligível mas extremamente popular, nenhum outro século poderia ter produzido um homem como Kissinger. Eu tinha que mostrar todos seus lados de uma só vez.”

Figura controversa, ele foi acusado de omissão que resultou em mortes de inocentes em países como Bangladesh, Camboja, Chile e Timor Leste. “Havia uma hierarquia de prioridades estratégicas e o próprio Kissinger dizia que política externa exigia quase sempre decidir entre escolhas maléficas”, observa Ferguson, que já trata da relação do diplomata com o Brasil neste primeiro volume.

Em maio de 1962, Kissinger fez sua primeira visita ao País e logo concluiu que o então presidente João Goulart, assim como seu antecessor Jânio Quadros, pretendia dar uma guinada para esquerda. “As perspectivas do Brasil no curto prazo eram bastante desanimadoras”, observou Kissinger.

O golpe militar em 1964, portanto, foi visto com bons olhos. “Para um homem que combatia a Guerra Fria, todo radical aparentava ser uma ferramenta soviética, toda revolução um golpe da KGB (serviço de inteligência soviético)”, escreve o historiador.

Antônio Azeredo da Silva e Henry Kissinger no Departamento de Estado, em Washington, saindo do primeiro encontro entre os dois, em abril de 1974 Foto: Arquivo Azeredo da Silveira/CPDOC/FGV

Além de Pelé, ele menciona outro brasileiro estimado pelo diplomata americano: Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). “Não se tratava de uma amizade próxima, mas sim uma decisão estratégica para dar prioridade ao Brasil. E Azeredo também entendia perfeitamente isso.”

Tal polivalência no trato com diferentes tipos de líderes fez com que Ferguson comparasse Kissinger a Zelig, personagem de um filme de 1983 de Woody Allen cujo talento único para o mimetismo permite que ele agrade pessoas de todos os setores da sociedade.

O historiador, porém, nega a análise de vários críticos que viam Kissinger como inspiração para o general alemão do filme Dr. Fantástico (1964), clássica sátira de guerra de Stanley Kubrick. Para ele, não há proximidade. “Kissinger não se encaixa no papel porque o personagem é obviamente um ex-nazista. Havia um grande número de alemães envolvidos na política nuclear, portanto, existiam outros candidatos mais inspiradores ao papel.”

A longevidade do ex-secretário de Estado é creditada pelo biógrafo ao seu histórico familiar, pois os pais, além de ultrapassar os 90 anos de idade, nunca sofreram qualquer deterioração mental grave. “Kissinger também nunca parou de se envolver, de ler, de pensar, de viajar, de fazer conexões, nunca parou de negociar. Após seu aniversário de 100 anos, em maio deste ano, ele foi para a China, onde foi recebido com tapete vermelho e se encontrou com Xi Jinping. Com isso, terminou como a própria personificação do século 20.”

Capa de 'Kissinger 1923-1968: O Idealista', de Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador da trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA CRÉDITO: Crítica Foto: Crítica

“Você fala espanhol?”, perguntou Richard Nixon. “Não, português, mas é tudo a mesma coisa”, respondeu Pelé. O insólito diálogo foi trocado no Salão Oval da Casa Branca em maio de 1973, quando o então presidente dos Estados Unidos estava preocupado com o escândalo Watergate, que o levaria a renunciar no ano seguinte. Abrir espaço em sua atribulada agenda, portanto, ao principal representante de um esporte ainda desconhecido pelos americanos foi obra de um hábil político: Henry Kissinger, o mais influente diplomata da segunda metade do século 20, que morreu no dia 29 de novembro aos 100 anos.

O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger e o astro do futebol brasileiro Pelé posam para uma fotografia durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, no Estádio Olímpico Foto: John Stillwell/Reuters

“Kissinger era apaixonado pelo futebol - gostava de chamar o esporte de ‘football’, como os ingleses, e não de ‘soccer’, como os americanos - e Pelé foi certamente um dos brasileiros que ele mais admirava. Ele nunca perdeu seu amor pelo futebol e sempre falava comigo a respeito até o fim de sua vida”, comenta Niall Ferguson, historiador escocês que há 20 anos pesquisa a trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA.

Uma parte do portentoso trabalho está em Kissinger 1923-1968: O Idealista, primeiro de dois volumes sobre os passos de um político que foi reverenciado e insultado com a mesma intensidade, e que chega agora ao Brasil, lançado pelo selo Crítica da Editora Planeta. O segundo livro, avisa Ferguson, deverá sair no fim de 2024 ou início de 2025.

A história de Pelé deverá constar nesse novo volume, assim como o encontro do jogador com outro presidente americano, Gerald Ford, em junho de 1975, também costurado por Kissinger. Ele preparou um detalhado dossiê sobre o brasileiro e a importância do futebol em nosso país para o prévio conhecimento do mandatário.

Lá, além de detalhar a importância de Pelé no esporte mundial (ele acabara de ser contratado pelo Cosmos, de Nova York), Kissinger ensina ainda a como pronunciar o apelido do brasileiro: PEH-LAY. Ford, no entanto, não teve tempo de ler o documento e o que ficou para a posteridade foi a imagem de Pelé ensinando Ford a dominar uma bola.

“São as origens de Kissinger que explicam essa paixão pelo esporte”, continua Ferguson, enumerando as diversas fases da vida do diplomata: nascido em uma família judia que fugiu da Alemanha Nazista, pobre imigrante em Nova York, soldado na Batalha das Ardenas (confronto militar mais sangrento que as forças americanas enfrentaram na Segunda Guerra Mundial), interrogador de nazistas e estudante de História em Harvard.

“Logo, ele se tornou conselheiro do empresário Nelson Rockfeller e dos presidentes John Kennedy e Richard Nixon, para o qual trabalhou como conselheiro de segurança nacional. Essas transições fizeram parte da metamorfose americana e, na verdade, da vida global, alterando as estruturas hierárquicas de meados do século 20 para algo mais flexível.”

Niall Ferguson

Foi essa constante mutabilidade que lhe garantia cada vez mais poder que convenceu o historiador a analisá-lo sob um olhar cubista, o que já inspira a concepção do novo livro. “Como o quadro Demoiselles d’Avignon, de Picasso, é preciso vê-lo de vários ângulos ao mesmo tempo para compreendê-lo completamente. E, tal como só o século 20 poderia ter produzido Picasso e tornado a sua visão não apenas inteligível mas extremamente popular, nenhum outro século poderia ter produzido um homem como Kissinger. Eu tinha que mostrar todos seus lados de uma só vez.”

Figura controversa, ele foi acusado de omissão que resultou em mortes de inocentes em países como Bangladesh, Camboja, Chile e Timor Leste. “Havia uma hierarquia de prioridades estratégicas e o próprio Kissinger dizia que política externa exigia quase sempre decidir entre escolhas maléficas”, observa Ferguson, que já trata da relação do diplomata com o Brasil neste primeiro volume.

Em maio de 1962, Kissinger fez sua primeira visita ao País e logo concluiu que o então presidente João Goulart, assim como seu antecessor Jânio Quadros, pretendia dar uma guinada para esquerda. “As perspectivas do Brasil no curto prazo eram bastante desanimadoras”, observou Kissinger.

O golpe militar em 1964, portanto, foi visto com bons olhos. “Para um homem que combatia a Guerra Fria, todo radical aparentava ser uma ferramenta soviética, toda revolução um golpe da KGB (serviço de inteligência soviético)”, escreve o historiador.

Antônio Azeredo da Silva e Henry Kissinger no Departamento de Estado, em Washington, saindo do primeiro encontro entre os dois, em abril de 1974 Foto: Arquivo Azeredo da Silveira/CPDOC/FGV

Além de Pelé, ele menciona outro brasileiro estimado pelo diplomata americano: Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). “Não se tratava de uma amizade próxima, mas sim uma decisão estratégica para dar prioridade ao Brasil. E Azeredo também entendia perfeitamente isso.”

Tal polivalência no trato com diferentes tipos de líderes fez com que Ferguson comparasse Kissinger a Zelig, personagem de um filme de 1983 de Woody Allen cujo talento único para o mimetismo permite que ele agrade pessoas de todos os setores da sociedade.

O historiador, porém, nega a análise de vários críticos que viam Kissinger como inspiração para o general alemão do filme Dr. Fantástico (1964), clássica sátira de guerra de Stanley Kubrick. Para ele, não há proximidade. “Kissinger não se encaixa no papel porque o personagem é obviamente um ex-nazista. Havia um grande número de alemães envolvidos na política nuclear, portanto, existiam outros candidatos mais inspiradores ao papel.”

A longevidade do ex-secretário de Estado é creditada pelo biógrafo ao seu histórico familiar, pois os pais, além de ultrapassar os 90 anos de idade, nunca sofreram qualquer deterioração mental grave. “Kissinger também nunca parou de se envolver, de ler, de pensar, de viajar, de fazer conexões, nunca parou de negociar. Após seu aniversário de 100 anos, em maio deste ano, ele foi para a China, onde foi recebido com tapete vermelho e se encontrou com Xi Jinping. Com isso, terminou como a própria personificação do século 20.”

Capa de 'Kissinger 1923-1968: O Idealista', de Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador da trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA CRÉDITO: Crítica Foto: Crítica

“Você fala espanhol?”, perguntou Richard Nixon. “Não, português, mas é tudo a mesma coisa”, respondeu Pelé. O insólito diálogo foi trocado no Salão Oval da Casa Branca em maio de 1973, quando o então presidente dos Estados Unidos estava preocupado com o escândalo Watergate, que o levaria a renunciar no ano seguinte. Abrir espaço em sua atribulada agenda, portanto, ao principal representante de um esporte ainda desconhecido pelos americanos foi obra de um hábil político: Henry Kissinger, o mais influente diplomata da segunda metade do século 20, que morreu no dia 29 de novembro aos 100 anos.

O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger e o astro do futebol brasileiro Pelé posam para uma fotografia durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, no Estádio Olímpico Foto: John Stillwell/Reuters

“Kissinger era apaixonado pelo futebol - gostava de chamar o esporte de ‘football’, como os ingleses, e não de ‘soccer’, como os americanos - e Pelé foi certamente um dos brasileiros que ele mais admirava. Ele nunca perdeu seu amor pelo futebol e sempre falava comigo a respeito até o fim de sua vida”, comenta Niall Ferguson, historiador escocês que há 20 anos pesquisa a trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA.

Uma parte do portentoso trabalho está em Kissinger 1923-1968: O Idealista, primeiro de dois volumes sobre os passos de um político que foi reverenciado e insultado com a mesma intensidade, e que chega agora ao Brasil, lançado pelo selo Crítica da Editora Planeta. O segundo livro, avisa Ferguson, deverá sair no fim de 2024 ou início de 2025.

A história de Pelé deverá constar nesse novo volume, assim como o encontro do jogador com outro presidente americano, Gerald Ford, em junho de 1975, também costurado por Kissinger. Ele preparou um detalhado dossiê sobre o brasileiro e a importância do futebol em nosso país para o prévio conhecimento do mandatário.

Lá, além de detalhar a importância de Pelé no esporte mundial (ele acabara de ser contratado pelo Cosmos, de Nova York), Kissinger ensina ainda a como pronunciar o apelido do brasileiro: PEH-LAY. Ford, no entanto, não teve tempo de ler o documento e o que ficou para a posteridade foi a imagem de Pelé ensinando Ford a dominar uma bola.

“São as origens de Kissinger que explicam essa paixão pelo esporte”, continua Ferguson, enumerando as diversas fases da vida do diplomata: nascido em uma família judia que fugiu da Alemanha Nazista, pobre imigrante em Nova York, soldado na Batalha das Ardenas (confronto militar mais sangrento que as forças americanas enfrentaram na Segunda Guerra Mundial), interrogador de nazistas e estudante de História em Harvard.

“Logo, ele se tornou conselheiro do empresário Nelson Rockfeller e dos presidentes John Kennedy e Richard Nixon, para o qual trabalhou como conselheiro de segurança nacional. Essas transições fizeram parte da metamorfose americana e, na verdade, da vida global, alterando as estruturas hierárquicas de meados do século 20 para algo mais flexível.”

Niall Ferguson

Foi essa constante mutabilidade que lhe garantia cada vez mais poder que convenceu o historiador a analisá-lo sob um olhar cubista, o que já inspira a concepção do novo livro. “Como o quadro Demoiselles d’Avignon, de Picasso, é preciso vê-lo de vários ângulos ao mesmo tempo para compreendê-lo completamente. E, tal como só o século 20 poderia ter produzido Picasso e tornado a sua visão não apenas inteligível mas extremamente popular, nenhum outro século poderia ter produzido um homem como Kissinger. Eu tinha que mostrar todos seus lados de uma só vez.”

Figura controversa, ele foi acusado de omissão que resultou em mortes de inocentes em países como Bangladesh, Camboja, Chile e Timor Leste. “Havia uma hierarquia de prioridades estratégicas e o próprio Kissinger dizia que política externa exigia quase sempre decidir entre escolhas maléficas”, observa Ferguson, que já trata da relação do diplomata com o Brasil neste primeiro volume.

Em maio de 1962, Kissinger fez sua primeira visita ao País e logo concluiu que o então presidente João Goulart, assim como seu antecessor Jânio Quadros, pretendia dar uma guinada para esquerda. “As perspectivas do Brasil no curto prazo eram bastante desanimadoras”, observou Kissinger.

O golpe militar em 1964, portanto, foi visto com bons olhos. “Para um homem que combatia a Guerra Fria, todo radical aparentava ser uma ferramenta soviética, toda revolução um golpe da KGB (serviço de inteligência soviético)”, escreve o historiador.

Antônio Azeredo da Silva e Henry Kissinger no Departamento de Estado, em Washington, saindo do primeiro encontro entre os dois, em abril de 1974 Foto: Arquivo Azeredo da Silveira/CPDOC/FGV

Além de Pelé, ele menciona outro brasileiro estimado pelo diplomata americano: Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). “Não se tratava de uma amizade próxima, mas sim uma decisão estratégica para dar prioridade ao Brasil. E Azeredo também entendia perfeitamente isso.”

Tal polivalência no trato com diferentes tipos de líderes fez com que Ferguson comparasse Kissinger a Zelig, personagem de um filme de 1983 de Woody Allen cujo talento único para o mimetismo permite que ele agrade pessoas de todos os setores da sociedade.

O historiador, porém, nega a análise de vários críticos que viam Kissinger como inspiração para o general alemão do filme Dr. Fantástico (1964), clássica sátira de guerra de Stanley Kubrick. Para ele, não há proximidade. “Kissinger não se encaixa no papel porque o personagem é obviamente um ex-nazista. Havia um grande número de alemães envolvidos na política nuclear, portanto, existiam outros candidatos mais inspiradores ao papel.”

A longevidade do ex-secretário de Estado é creditada pelo biógrafo ao seu histórico familiar, pois os pais, além de ultrapassar os 90 anos de idade, nunca sofreram qualquer deterioração mental grave. “Kissinger também nunca parou de se envolver, de ler, de pensar, de viajar, de fazer conexões, nunca parou de negociar. Após seu aniversário de 100 anos, em maio deste ano, ele foi para a China, onde foi recebido com tapete vermelho e se encontrou com Xi Jinping. Com isso, terminou como a própria personificação do século 20.”

Capa de 'Kissinger 1923-1968: O Idealista', de Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador da trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA CRÉDITO: Crítica Foto: Crítica

“Você fala espanhol?”, perguntou Richard Nixon. “Não, português, mas é tudo a mesma coisa”, respondeu Pelé. O insólito diálogo foi trocado no Salão Oval da Casa Branca em maio de 1973, quando o então presidente dos Estados Unidos estava preocupado com o escândalo Watergate, que o levaria a renunciar no ano seguinte. Abrir espaço em sua atribulada agenda, portanto, ao principal representante de um esporte ainda desconhecido pelos americanos foi obra de um hábil político: Henry Kissinger, o mais influente diplomata da segunda metade do século 20, que morreu no dia 29 de novembro aos 100 anos.

O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger e o astro do futebol brasileiro Pelé posam para uma fotografia durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, no Estádio Olímpico Foto: John Stillwell/Reuters

“Kissinger era apaixonado pelo futebol - gostava de chamar o esporte de ‘football’, como os ingleses, e não de ‘soccer’, como os americanos - e Pelé foi certamente um dos brasileiros que ele mais admirava. Ele nunca perdeu seu amor pelo futebol e sempre falava comigo a respeito até o fim de sua vida”, comenta Niall Ferguson, historiador escocês que há 20 anos pesquisa a trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA.

Uma parte do portentoso trabalho está em Kissinger 1923-1968: O Idealista, primeiro de dois volumes sobre os passos de um político que foi reverenciado e insultado com a mesma intensidade, e que chega agora ao Brasil, lançado pelo selo Crítica da Editora Planeta. O segundo livro, avisa Ferguson, deverá sair no fim de 2024 ou início de 2025.

A história de Pelé deverá constar nesse novo volume, assim como o encontro do jogador com outro presidente americano, Gerald Ford, em junho de 1975, também costurado por Kissinger. Ele preparou um detalhado dossiê sobre o brasileiro e a importância do futebol em nosso país para o prévio conhecimento do mandatário.

Lá, além de detalhar a importância de Pelé no esporte mundial (ele acabara de ser contratado pelo Cosmos, de Nova York), Kissinger ensina ainda a como pronunciar o apelido do brasileiro: PEH-LAY. Ford, no entanto, não teve tempo de ler o documento e o que ficou para a posteridade foi a imagem de Pelé ensinando Ford a dominar uma bola.

“São as origens de Kissinger que explicam essa paixão pelo esporte”, continua Ferguson, enumerando as diversas fases da vida do diplomata: nascido em uma família judia que fugiu da Alemanha Nazista, pobre imigrante em Nova York, soldado na Batalha das Ardenas (confronto militar mais sangrento que as forças americanas enfrentaram na Segunda Guerra Mundial), interrogador de nazistas e estudante de História em Harvard.

“Logo, ele se tornou conselheiro do empresário Nelson Rockfeller e dos presidentes John Kennedy e Richard Nixon, para o qual trabalhou como conselheiro de segurança nacional. Essas transições fizeram parte da metamorfose americana e, na verdade, da vida global, alterando as estruturas hierárquicas de meados do século 20 para algo mais flexível.”

Niall Ferguson

Foi essa constante mutabilidade que lhe garantia cada vez mais poder que convenceu o historiador a analisá-lo sob um olhar cubista, o que já inspira a concepção do novo livro. “Como o quadro Demoiselles d’Avignon, de Picasso, é preciso vê-lo de vários ângulos ao mesmo tempo para compreendê-lo completamente. E, tal como só o século 20 poderia ter produzido Picasso e tornado a sua visão não apenas inteligível mas extremamente popular, nenhum outro século poderia ter produzido um homem como Kissinger. Eu tinha que mostrar todos seus lados de uma só vez.”

Figura controversa, ele foi acusado de omissão que resultou em mortes de inocentes em países como Bangladesh, Camboja, Chile e Timor Leste. “Havia uma hierarquia de prioridades estratégicas e o próprio Kissinger dizia que política externa exigia quase sempre decidir entre escolhas maléficas”, observa Ferguson, que já trata da relação do diplomata com o Brasil neste primeiro volume.

Em maio de 1962, Kissinger fez sua primeira visita ao País e logo concluiu que o então presidente João Goulart, assim como seu antecessor Jânio Quadros, pretendia dar uma guinada para esquerda. “As perspectivas do Brasil no curto prazo eram bastante desanimadoras”, observou Kissinger.

O golpe militar em 1964, portanto, foi visto com bons olhos. “Para um homem que combatia a Guerra Fria, todo radical aparentava ser uma ferramenta soviética, toda revolução um golpe da KGB (serviço de inteligência soviético)”, escreve o historiador.

Antônio Azeredo da Silva e Henry Kissinger no Departamento de Estado, em Washington, saindo do primeiro encontro entre os dois, em abril de 1974 Foto: Arquivo Azeredo da Silveira/CPDOC/FGV

Além de Pelé, ele menciona outro brasileiro estimado pelo diplomata americano: Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). “Não se tratava de uma amizade próxima, mas sim uma decisão estratégica para dar prioridade ao Brasil. E Azeredo também entendia perfeitamente isso.”

Tal polivalência no trato com diferentes tipos de líderes fez com que Ferguson comparasse Kissinger a Zelig, personagem de um filme de 1983 de Woody Allen cujo talento único para o mimetismo permite que ele agrade pessoas de todos os setores da sociedade.

O historiador, porém, nega a análise de vários críticos que viam Kissinger como inspiração para o general alemão do filme Dr. Fantástico (1964), clássica sátira de guerra de Stanley Kubrick. Para ele, não há proximidade. “Kissinger não se encaixa no papel porque o personagem é obviamente um ex-nazista. Havia um grande número de alemães envolvidos na política nuclear, portanto, existiam outros candidatos mais inspiradores ao papel.”

A longevidade do ex-secretário de Estado é creditada pelo biógrafo ao seu histórico familiar, pois os pais, além de ultrapassar os 90 anos de idade, nunca sofreram qualquer deterioração mental grave. “Kissinger também nunca parou de se envolver, de ler, de pensar, de viajar, de fazer conexões, nunca parou de negociar. Após seu aniversário de 100 anos, em maio deste ano, ele foi para a China, onde foi recebido com tapete vermelho e se encontrou com Xi Jinping. Com isso, terminou como a própria personificação do século 20.”

Capa de 'Kissinger 1923-1968: O Idealista', de Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador da trajetória do ex-secretário de Estado dos EUA CRÉDITO: Crítica Foto: Crítica

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