Moradora de uma comunidade pobre do Estado do Rio, a enfermeira Márcia, protagonista da nova graphic novel do quadrinista niteroiense Marcello Quintanilha, todo dia faz tudo sempre igual em sua construção de uma realidade tolerável. Levanta-se às 6 da manhã, beija o marido, Aluísio, com a boca de hortelã, e vai para o serviço, mas com a cabeça em sua filha adolescente, Jaqueline. Sua incapacidade de estabelecer harmonia na relação com a jovem, que passa a ser enredada nas engrenagens do crime organizado, vira o motor de Escuta, Formosa Márcia, lançada aqui pela Veneta e classificada na Europa como a mais ousada experiência narrativa do artista gráfico.
Sua fama lá fora vem de Tungstênio, álbum premiado no Festival de Angoulême, uma espécie de Cannes dos gibis, em 2014. Quatro anos depois, aquele quadrinho virou filme, adaptado por Heitor Dhalia, o que ampliou o prestígio de seu autor, badalado no mercado editorial do Velho Mundo. Seu olhar para o cotidiano de Márcia, chega agora à França, via Ed. Çà et Là, cercada de elogios atribuídos pela revista Télérama, que destaca: “Quintanilha continua a nos surpreender”. Em sua apaixonada resenha, o crítico Stéphane Jano diz que a HQ “retrata admiravelmente pessoas comuns apanhadas em situações nada ordinárias”. “Não podemos falar em um ‘mercado europeu’, já que cada país da Europa tem sua própria especificidade no que se refere aos quadrinhos. De qualquer forma, os mercados têm se mostrado muito menos fechados do que no passado, o que, inevitavelmente, tem a ver com a facilidade na circulação de materiais proporcionada pelos meios digitais”, explica Quintanilha, em um papo por e-mail, enviado de Paris. “Tanto aqui como nos Estados Unidos, as barreiras (aos talentos estrangeiros) vêm se tornando cada dia mais tênues, mesmo com respeito à serialização, mensal ou anual, podemos encontrar uma enorme diversidade.”
Aclamado por seus diálogos curtos (de uma poesia áspera), desde sua estreia, em 1999, com Fealdade de Fabiano Gorila (Conrad), Quintanilha é um herdeiro do neorrealismo italiano, com ecos explícitos de Roberto Rossellini (1906-1977) em sua maneira liricamente documental de retratar cidades, em suas contradições sociais. Quando Tungstênio saiu laureado de Angoulême, resenhistas de lá o chamaram de “o Dino Risi do quadrinho”, em comparação com o mítico diretor das “comédias tristes” da Itália, como o sucesso Aquele Que Sabe Viver (1962). O lado Risi é explícito em Hinário Nacional, com o qual ele concorreu ao troféu Jabuti, em 2017, e também aflora na antologia Todos os Santos, de 2018. Já Escute, Formosa Márcia, tem muito de Rossellini, com um tom de Paisà (1946). “Não creio que nenhum membro da raça humana esteja a salvo desse vazio, em termos globais, nos dias que correm. No caso do Brasil, essa dimensão é agravada por uma conjuntura historicamente sustentada em sistemas de opressão”, diz Quintanilha, que já flanou por variados gêneros. “Comecei a publicar em 1988, fazendo HQs de terror e artes marciais, para as bancas. Entre quadrinhos de banca, coletâneas e álbuns, seria difícil contabilizar tudo o que publiquei, mas falando de álbuns, foram cerca de 20, acho.” No painel de conflitos que mobilizam Escuta, Formosa Márcia, o principal obstáculo a ser transposto por sua personagem central é frear os ímpetos da filha. Jaqueline não aceita se submeter a nada que a impeça de sair por aí e fazer o que quiser, sem dar satisfação a ninguém. Porém, quando a moça se enrosca com criminosas, Márcia vai chegar às últimas consequências para livrá-la do perigo. Quer Jaqueline queira, quer não.
“Em certa medida, Escuta, Formosa Márcia trata dos desdobramentos sociais e políticos a que nefastas escolhas das administrações públicas conduziram uma imensa parcela da população”, afirma Quintanilha, que falou de seu passado pessoal em Luzes de Niterói, lançado em 2019. À época, em entrevista ao blog P de Pop do Estadão, ele explicou que o realismo é a substância primordial do seu trabalho. “É dele que me aproprio para operar uma conversão em chave ficcional, frequentemente subvertendo algumas de suas premissas em favor de um resultado expressionista. Como parte indissolúvel dessa substância, a memória deixa de cumprir o papel de arquivo de experiências remotas para atuar como engrenagem da realidade tangível, uma vez que nunca me senti distanciado do meu passado.” À época, ele estava em Barcelona, onde mora desde 2002, mas sem cortar os vínculos criativos com seu país de berço. “Muito, muito pouco se alterou em mim desde a mudança para a Europa, porque nunca me senti realmente longe do Brasil”, lembra Quintanilha. “Minha visão sobre o País não se realiza ao criar relatos a partir da observação, mas ao exprimir uma série de experiências e fatores que me constituem como ser humano. Nesse sentido, a geografia deixa de ter qualquer importância.”