Ian McEwan escreve sobre um Hamlet que ainda não nasceu


Em 'Enclausurado', o narrador é um feto cujo dilema familiar e existencial é idêntico ao do príncipe criado por Shakespeare

Por Antonio Gonçalves Filho

A epígrafe logo no começo de Eclausurado, o novo livro do inglês Ian McEwan, não deixa dúvidas: extraída da peça Hamlet, a citação – “Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito, não fosse pelos meus sonhos ruins” – prepara o leitor para um aggiornamento um tanto cínico da trama de Shakespeare, como convém ao mundo contemporâneo. Hamlet é um feto à espera de cair nesse mundo sem lei e sem alma. Elsinore é uma velha casa georgiana na zona central de Londres, sua mãe Trudy é uma versão ainda mais promíscua da rainha Gertrudes, seu tio Claude é um canalha priápico pior que o rei Cláudio e o pai, John, quase um fantasma, um editor de poetas medíocres. Trudy transa com o cunhado e afasta o marido da própria casa, alegando que precisa de tempo e espaço para ter o bebê. Conversa fiada.

Trudy e Claude pretendem mesmo é matar John e ficar com uma casa que vale milhões de libras. Bebê Hamlet, que recebe quase diariamente a visita do tio (ou parte dele) no corpo da mãe, acompanha os planos sinistros da dupla sem poder esboçar o mínimo gesto para salvar o pai. Bebês só esperam, não agem. O máximo que lhe é permitido na clausura é divagar sobre a vida e decidir se vai ou não usar o cordão umbilical para se enforcar, encurtando o dilema existencial hamletiano do ser ou não ser.

O escritor inglês Ian McEwan: Hamlet com voz de analista Foto: Monica Zaratini/Estadão
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Não é a primeira vez que se ouve a voz de um feto da barriga da mãe. Vale lembrar que o mexicano Carlos Fuentes publicou há mais ou menos 30 anos um outro livro recorrendo ao mesmo artifício, Cristóbal Nonato, sobre um jovem que resolve ter um filho programado para nascer no dia em que será proclamado o salvador da pátria. Há, evidente, algo de surrealista em tramas como essa – com as nefastas consequências que o automatismo psíquico traz.

A sorte de McEwan é ser um bom escritor, capaz de driblar uma trama que renderia, no máximo, um conto. Com Enclausurado ele acaba criando um transgênero, o “contela”, misto de conto e novela sobre o declínio da civilização ocidental – interpretado por um feto, o que é engraçado mas não muito, considerando a limitada capacidade dos fetos como narradores (o que vale também para o livro de Fuentes).

Enclausurado não é Reparação ou Amor Sem Fim, romances em que os sentimentos são genuínos e a ironia não tem lugar.

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A despeito disso, McEwan consegue falar por meio de um narrador um tanto alcoolizado (sua mãe Trudy gosta de um pinot noir) uma ou duas verdades incômodas sobre a imundície da realpolitik de um mundo cada vez mais uniformizado e corrompido. Poderia ter escrito um ensaio sobre o tema. Preferiu a ficção, na qual é melhor. 

A epígrafe logo no começo de Eclausurado, o novo livro do inglês Ian McEwan, não deixa dúvidas: extraída da peça Hamlet, a citação – “Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito, não fosse pelos meus sonhos ruins” – prepara o leitor para um aggiornamento um tanto cínico da trama de Shakespeare, como convém ao mundo contemporâneo. Hamlet é um feto à espera de cair nesse mundo sem lei e sem alma. Elsinore é uma velha casa georgiana na zona central de Londres, sua mãe Trudy é uma versão ainda mais promíscua da rainha Gertrudes, seu tio Claude é um canalha priápico pior que o rei Cláudio e o pai, John, quase um fantasma, um editor de poetas medíocres. Trudy transa com o cunhado e afasta o marido da própria casa, alegando que precisa de tempo e espaço para ter o bebê. Conversa fiada.

Trudy e Claude pretendem mesmo é matar John e ficar com uma casa que vale milhões de libras. Bebê Hamlet, que recebe quase diariamente a visita do tio (ou parte dele) no corpo da mãe, acompanha os planos sinistros da dupla sem poder esboçar o mínimo gesto para salvar o pai. Bebês só esperam, não agem. O máximo que lhe é permitido na clausura é divagar sobre a vida e decidir se vai ou não usar o cordão umbilical para se enforcar, encurtando o dilema existencial hamletiano do ser ou não ser.

O escritor inglês Ian McEwan: Hamlet com voz de analista Foto: Monica Zaratini/Estadão

Não é a primeira vez que se ouve a voz de um feto da barriga da mãe. Vale lembrar que o mexicano Carlos Fuentes publicou há mais ou menos 30 anos um outro livro recorrendo ao mesmo artifício, Cristóbal Nonato, sobre um jovem que resolve ter um filho programado para nascer no dia em que será proclamado o salvador da pátria. Há, evidente, algo de surrealista em tramas como essa – com as nefastas consequências que o automatismo psíquico traz.

A sorte de McEwan é ser um bom escritor, capaz de driblar uma trama que renderia, no máximo, um conto. Com Enclausurado ele acaba criando um transgênero, o “contela”, misto de conto e novela sobre o declínio da civilização ocidental – interpretado por um feto, o que é engraçado mas não muito, considerando a limitada capacidade dos fetos como narradores (o que vale também para o livro de Fuentes).

Enclausurado não é Reparação ou Amor Sem Fim, romances em que os sentimentos são genuínos e a ironia não tem lugar.

A despeito disso, McEwan consegue falar por meio de um narrador um tanto alcoolizado (sua mãe Trudy gosta de um pinot noir) uma ou duas verdades incômodas sobre a imundície da realpolitik de um mundo cada vez mais uniformizado e corrompido. Poderia ter escrito um ensaio sobre o tema. Preferiu a ficção, na qual é melhor. 

A epígrafe logo no começo de Eclausurado, o novo livro do inglês Ian McEwan, não deixa dúvidas: extraída da peça Hamlet, a citação – “Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito, não fosse pelos meus sonhos ruins” – prepara o leitor para um aggiornamento um tanto cínico da trama de Shakespeare, como convém ao mundo contemporâneo. Hamlet é um feto à espera de cair nesse mundo sem lei e sem alma. Elsinore é uma velha casa georgiana na zona central de Londres, sua mãe Trudy é uma versão ainda mais promíscua da rainha Gertrudes, seu tio Claude é um canalha priápico pior que o rei Cláudio e o pai, John, quase um fantasma, um editor de poetas medíocres. Trudy transa com o cunhado e afasta o marido da própria casa, alegando que precisa de tempo e espaço para ter o bebê. Conversa fiada.

Trudy e Claude pretendem mesmo é matar John e ficar com uma casa que vale milhões de libras. Bebê Hamlet, que recebe quase diariamente a visita do tio (ou parte dele) no corpo da mãe, acompanha os planos sinistros da dupla sem poder esboçar o mínimo gesto para salvar o pai. Bebês só esperam, não agem. O máximo que lhe é permitido na clausura é divagar sobre a vida e decidir se vai ou não usar o cordão umbilical para se enforcar, encurtando o dilema existencial hamletiano do ser ou não ser.

O escritor inglês Ian McEwan: Hamlet com voz de analista Foto: Monica Zaratini/Estadão

Não é a primeira vez que se ouve a voz de um feto da barriga da mãe. Vale lembrar que o mexicano Carlos Fuentes publicou há mais ou menos 30 anos um outro livro recorrendo ao mesmo artifício, Cristóbal Nonato, sobre um jovem que resolve ter um filho programado para nascer no dia em que será proclamado o salvador da pátria. Há, evidente, algo de surrealista em tramas como essa – com as nefastas consequências que o automatismo psíquico traz.

A sorte de McEwan é ser um bom escritor, capaz de driblar uma trama que renderia, no máximo, um conto. Com Enclausurado ele acaba criando um transgênero, o “contela”, misto de conto e novela sobre o declínio da civilização ocidental – interpretado por um feto, o que é engraçado mas não muito, considerando a limitada capacidade dos fetos como narradores (o que vale também para o livro de Fuentes).

Enclausurado não é Reparação ou Amor Sem Fim, romances em que os sentimentos são genuínos e a ironia não tem lugar.

A despeito disso, McEwan consegue falar por meio de um narrador um tanto alcoolizado (sua mãe Trudy gosta de um pinot noir) uma ou duas verdades incômodas sobre a imundície da realpolitik de um mundo cada vez mais uniformizado e corrompido. Poderia ter escrito um ensaio sobre o tema. Preferiu a ficção, na qual é melhor. 

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