Ignácio de Loyola Brandão comenta sobre os 40 anos de 'Não Verás País Nenhum'


Escritor e colunista do ‘Estadão’ trata de uma sombria realidade futurista bem próxima da atual

Por Ubiratan Brasil

Os rios acabaram secando, fruto de um desmatamento desenfreado, o que resultou em uma incômoda poeira espessa espalhada em todos os cantos. Apesar de apocalíptico, o cenário se aproxima em diversos aspectos da realidade do planeta hoje, o que transformou o romance Não Verás País Nenhum, no qual reina aquele ambiente, em um potente escrito visionário. “Tem sido estudado como ficção científica, mas prefiro chamá-lo de ficção político-burocrática”, comenta seu autor, Ignácio de Loyola Brandão, colunista do Caderno 2. “Há anos, quando me pediam para autografar, eu escrevia invariavelmente: ‘tomara que tal futuro jamais aconteça’. Mas, certa vez, uma mulher me disse: ‘mas, meu caro senhor, ele já está acontecendo, olhe em volta’.”

O escritor e cronista do 'Estadão'Ignácio de Loyola Brandão Foto: Daniel Teixeira|Estadão

Não Verás País Nenhum completou 40 anos de lançamento em 2021, e a homenagem veio com uma edição especial da editora Global: além do texto original, o volume traz um apêndice de 32 páginas coloridas, nas quais Loyola apresenta o que chamou “Diário de Trabalho”. Nele, estão registrados a evolução dos textos, as descobertas, as buscas de palavras e expressões, e o questionamento do significado das cenas e o surgimento dos personagens. Registra também algumas capas publicadas no Brasil e no exterior. Isso porque o romance passou por um fervilhante processo criativo. Loyola trabalhava na Editora Abril, em 1972, quando rascunhou um conto chamado O Homem do Furo na Mão. A inspiração veio das conversas com colegas do trabalho, especialmente as que tratavam da ditadura militar que vigorava na época e suas consequências como censura, prisões, mortes. “As pessoas ‘diferentes’ incomodavam os ‘normais’”, comenta Loyola, que escreveu o conto, mas o manteve na gaveta. Com o tempo, ele passou a guardar recortes de notícias sobre devastação, poluição, enchentes, inundações, doenças estranhas causadas pelo sol. “Então, comecei a reescrever o conto que tinha oito ou dez páginas. Ele cresceu, cheguei a 50, 100, 200 páginas”, conta. “Seria um romance, a ideia pipocou meses dentro de mim: um Brasil sem árvores – o Amazonas, um deserto. O principal estava ali, delineei o País, o sistema, a natureza morta, os efeitos, a corrupção e, quando a coisa ferveu, me vi, depois de três anos, com o romance pronto.” O fio condutor do romance é a trajetória de um professor de História que, nas primeiras décadas do século 21, é aposentado como forma de punição pela direção da universidade porque insistia em publicar os fatos reais, enquanto os governantes reescreviam ao seu interesse. Para criar o título, o autor se inspirou em um verso de Olavo Bilac, do poema A Pátria, de 1904: “Criança! Não verá país nenhum como este! / Imita na grandeza a terra em que nasceste”. “Loyola releu o poema, tomou fôlego e trouxe o abismo para dentro de casa”, observa a historiadora Heloisa M. Starling, em texto publicado no livro. “Foi cirúrgico. Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.” 

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Ignácio de Loyola Brandão estreou na literatura em 1965, com o livro de contos Depois do Sol Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Loyola relembra que chegou a vacilar em relação ao tom do texto. “A certa altura, lá pela lauda 300, reli tudo e me sufoquei. Quem ia ler esse brutamontes? Imediatamente passei um fio da navalha, porque sabia que se usasse a sátira, o humor, o absurdo total o leitor respiraria, e assim foi. Levei meses reescrevendo, cheguei mesmo a cortar vários segmentos”, relembra ele ao Estadão. A fama de utópico, que colou no romance ao longo dos anos, nunca foi bem digerido pelo próprio autor. “Não antevi nada, imaginei tudo, a realidade me copiou e continua a copiar. O sucesso do livro hoje é essa estranheza. O horror dele ser possível”, comenta Loyola. “Então, os leitores percebem que está tudo à nossa volta. O livro se passa no futuro e os personagens lembram o passado, e o passado é hoje.” Loyola é autor também de outro clássico da literatura, Zero (1975), que nasceu do sufoco sob a pressão da ditadura e sua censura, violência, torturas, prisões e guerrilhas. “Veja que usei o mesmo processo para Zero, mas ao contrário. Narrei o passado verdadeiro”, afirma. “Em Não Verás, olhei para o que poderia acontecer lá na frente. Em Zero, que levou dez anos para ser escrito, guardei várias notícias que os censores proibiram na ditadura militar – eu era secretário de redação na Última Hora, e recebia direto do censor o que estava proibido.” Loyola garante que não há uma só cena inventada. “Reescrevi à minha maneira tudo que os brasileiros tinham sofrido e não puderam ler naquele período nefasto, hoje negado. Ampliei a fórmula de Bebel que a Cidade Comeu, livro que teve influência direta de Manhattan Transfer, de John Dos Passos, e Marco Zero, de Oswald de Andrade. Fragmentei tudo, porque o Brasil me parecia estilhaçado por mil bombas de terroristas e da polícia.” 

Trecho da obra 

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Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho. 

Tentaram tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos agonia continuamente. Será que tentaram? Nada conseguiram. Os caminhões, alegremente pintados em amarelo e verde, despejam mortos, noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim. 

Não há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos se abrem ao ar livre, descarregam em vagonetes, na vala seca do rio. O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne, em poucas horas. 

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O cheiro infeto dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e aos formóis. Acre, faz o nariz sangrar, em tardes de inversão atmosférica. Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca, os olhos lacrimejam, racha a pele. Ao nível do chão, os animais morrem. 

Forma-se uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites do oikoumenê, palavra que os sociólogos, ociosos, recuperaram da antiguidade, a fim de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos? 

Virei-me assustado. Adelaide nunca tinha dado um grito em trinta e dois anos de casados. Treze para as oito. Em quatro minutos devia estar no ponto, ou perderia o S-7.58, minha condução autorizada. Estranho, ela sabia. E por que então resolvia me atrasar ainda mais?  

Os rios acabaram secando, fruto de um desmatamento desenfreado, o que resultou em uma incômoda poeira espessa espalhada em todos os cantos. Apesar de apocalíptico, o cenário se aproxima em diversos aspectos da realidade do planeta hoje, o que transformou o romance Não Verás País Nenhum, no qual reina aquele ambiente, em um potente escrito visionário. “Tem sido estudado como ficção científica, mas prefiro chamá-lo de ficção político-burocrática”, comenta seu autor, Ignácio de Loyola Brandão, colunista do Caderno 2. “Há anos, quando me pediam para autografar, eu escrevia invariavelmente: ‘tomara que tal futuro jamais aconteça’. Mas, certa vez, uma mulher me disse: ‘mas, meu caro senhor, ele já está acontecendo, olhe em volta’.”

O escritor e cronista do 'Estadão'Ignácio de Loyola Brandão Foto: Daniel Teixeira|Estadão

Não Verás País Nenhum completou 40 anos de lançamento em 2021, e a homenagem veio com uma edição especial da editora Global: além do texto original, o volume traz um apêndice de 32 páginas coloridas, nas quais Loyola apresenta o que chamou “Diário de Trabalho”. Nele, estão registrados a evolução dos textos, as descobertas, as buscas de palavras e expressões, e o questionamento do significado das cenas e o surgimento dos personagens. Registra também algumas capas publicadas no Brasil e no exterior. Isso porque o romance passou por um fervilhante processo criativo. Loyola trabalhava na Editora Abril, em 1972, quando rascunhou um conto chamado O Homem do Furo na Mão. A inspiração veio das conversas com colegas do trabalho, especialmente as que tratavam da ditadura militar que vigorava na época e suas consequências como censura, prisões, mortes. “As pessoas ‘diferentes’ incomodavam os ‘normais’”, comenta Loyola, que escreveu o conto, mas o manteve na gaveta. Com o tempo, ele passou a guardar recortes de notícias sobre devastação, poluição, enchentes, inundações, doenças estranhas causadas pelo sol. “Então, comecei a reescrever o conto que tinha oito ou dez páginas. Ele cresceu, cheguei a 50, 100, 200 páginas”, conta. “Seria um romance, a ideia pipocou meses dentro de mim: um Brasil sem árvores – o Amazonas, um deserto. O principal estava ali, delineei o País, o sistema, a natureza morta, os efeitos, a corrupção e, quando a coisa ferveu, me vi, depois de três anos, com o romance pronto.” O fio condutor do romance é a trajetória de um professor de História que, nas primeiras décadas do século 21, é aposentado como forma de punição pela direção da universidade porque insistia em publicar os fatos reais, enquanto os governantes reescreviam ao seu interesse. Para criar o título, o autor se inspirou em um verso de Olavo Bilac, do poema A Pátria, de 1904: “Criança! Não verá país nenhum como este! / Imita na grandeza a terra em que nasceste”. “Loyola releu o poema, tomou fôlego e trouxe o abismo para dentro de casa”, observa a historiadora Heloisa M. Starling, em texto publicado no livro. “Foi cirúrgico. Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.” 

Ignácio de Loyola Brandão estreou na literatura em 1965, com o livro de contos Depois do Sol Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Loyola relembra que chegou a vacilar em relação ao tom do texto. “A certa altura, lá pela lauda 300, reli tudo e me sufoquei. Quem ia ler esse brutamontes? Imediatamente passei um fio da navalha, porque sabia que se usasse a sátira, o humor, o absurdo total o leitor respiraria, e assim foi. Levei meses reescrevendo, cheguei mesmo a cortar vários segmentos”, relembra ele ao Estadão. A fama de utópico, que colou no romance ao longo dos anos, nunca foi bem digerido pelo próprio autor. “Não antevi nada, imaginei tudo, a realidade me copiou e continua a copiar. O sucesso do livro hoje é essa estranheza. O horror dele ser possível”, comenta Loyola. “Então, os leitores percebem que está tudo à nossa volta. O livro se passa no futuro e os personagens lembram o passado, e o passado é hoje.” Loyola é autor também de outro clássico da literatura, Zero (1975), que nasceu do sufoco sob a pressão da ditadura e sua censura, violência, torturas, prisões e guerrilhas. “Veja que usei o mesmo processo para Zero, mas ao contrário. Narrei o passado verdadeiro”, afirma. “Em Não Verás, olhei para o que poderia acontecer lá na frente. Em Zero, que levou dez anos para ser escrito, guardei várias notícias que os censores proibiram na ditadura militar – eu era secretário de redação na Última Hora, e recebia direto do censor o que estava proibido.” Loyola garante que não há uma só cena inventada. “Reescrevi à minha maneira tudo que os brasileiros tinham sofrido e não puderam ler naquele período nefasto, hoje negado. Ampliei a fórmula de Bebel que a Cidade Comeu, livro que teve influência direta de Manhattan Transfer, de John Dos Passos, e Marco Zero, de Oswald de Andrade. Fragmentei tudo, porque o Brasil me parecia estilhaçado por mil bombas de terroristas e da polícia.” 

Trecho da obra 

Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho. 

Tentaram tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos agonia continuamente. Será que tentaram? Nada conseguiram. Os caminhões, alegremente pintados em amarelo e verde, despejam mortos, noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim. 

Não há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos se abrem ao ar livre, descarregam em vagonetes, na vala seca do rio. O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne, em poucas horas. 

O cheiro infeto dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e aos formóis. Acre, faz o nariz sangrar, em tardes de inversão atmosférica. Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca, os olhos lacrimejam, racha a pele. Ao nível do chão, os animais morrem. 

Forma-se uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites do oikoumenê, palavra que os sociólogos, ociosos, recuperaram da antiguidade, a fim de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos? 

Virei-me assustado. Adelaide nunca tinha dado um grito em trinta e dois anos de casados. Treze para as oito. Em quatro minutos devia estar no ponto, ou perderia o S-7.58, minha condução autorizada. Estranho, ela sabia. E por que então resolvia me atrasar ainda mais?  

Os rios acabaram secando, fruto de um desmatamento desenfreado, o que resultou em uma incômoda poeira espessa espalhada em todos os cantos. Apesar de apocalíptico, o cenário se aproxima em diversos aspectos da realidade do planeta hoje, o que transformou o romance Não Verás País Nenhum, no qual reina aquele ambiente, em um potente escrito visionário. “Tem sido estudado como ficção científica, mas prefiro chamá-lo de ficção político-burocrática”, comenta seu autor, Ignácio de Loyola Brandão, colunista do Caderno 2. “Há anos, quando me pediam para autografar, eu escrevia invariavelmente: ‘tomara que tal futuro jamais aconteça’. Mas, certa vez, uma mulher me disse: ‘mas, meu caro senhor, ele já está acontecendo, olhe em volta’.”

O escritor e cronista do 'Estadão'Ignácio de Loyola Brandão Foto: Daniel Teixeira|Estadão

Não Verás País Nenhum completou 40 anos de lançamento em 2021, e a homenagem veio com uma edição especial da editora Global: além do texto original, o volume traz um apêndice de 32 páginas coloridas, nas quais Loyola apresenta o que chamou “Diário de Trabalho”. Nele, estão registrados a evolução dos textos, as descobertas, as buscas de palavras e expressões, e o questionamento do significado das cenas e o surgimento dos personagens. Registra também algumas capas publicadas no Brasil e no exterior. Isso porque o romance passou por um fervilhante processo criativo. Loyola trabalhava na Editora Abril, em 1972, quando rascunhou um conto chamado O Homem do Furo na Mão. A inspiração veio das conversas com colegas do trabalho, especialmente as que tratavam da ditadura militar que vigorava na época e suas consequências como censura, prisões, mortes. “As pessoas ‘diferentes’ incomodavam os ‘normais’”, comenta Loyola, que escreveu o conto, mas o manteve na gaveta. Com o tempo, ele passou a guardar recortes de notícias sobre devastação, poluição, enchentes, inundações, doenças estranhas causadas pelo sol. “Então, comecei a reescrever o conto que tinha oito ou dez páginas. Ele cresceu, cheguei a 50, 100, 200 páginas”, conta. “Seria um romance, a ideia pipocou meses dentro de mim: um Brasil sem árvores – o Amazonas, um deserto. O principal estava ali, delineei o País, o sistema, a natureza morta, os efeitos, a corrupção e, quando a coisa ferveu, me vi, depois de três anos, com o romance pronto.” O fio condutor do romance é a trajetória de um professor de História que, nas primeiras décadas do século 21, é aposentado como forma de punição pela direção da universidade porque insistia em publicar os fatos reais, enquanto os governantes reescreviam ao seu interesse. Para criar o título, o autor se inspirou em um verso de Olavo Bilac, do poema A Pátria, de 1904: “Criança! Não verá país nenhum como este! / Imita na grandeza a terra em que nasceste”. “Loyola releu o poema, tomou fôlego e trouxe o abismo para dentro de casa”, observa a historiadora Heloisa M. Starling, em texto publicado no livro. “Foi cirúrgico. Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.” 

Ignácio de Loyola Brandão estreou na literatura em 1965, com o livro de contos Depois do Sol Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Loyola relembra que chegou a vacilar em relação ao tom do texto. “A certa altura, lá pela lauda 300, reli tudo e me sufoquei. Quem ia ler esse brutamontes? Imediatamente passei um fio da navalha, porque sabia que se usasse a sátira, o humor, o absurdo total o leitor respiraria, e assim foi. Levei meses reescrevendo, cheguei mesmo a cortar vários segmentos”, relembra ele ao Estadão. A fama de utópico, que colou no romance ao longo dos anos, nunca foi bem digerido pelo próprio autor. “Não antevi nada, imaginei tudo, a realidade me copiou e continua a copiar. O sucesso do livro hoje é essa estranheza. O horror dele ser possível”, comenta Loyola. “Então, os leitores percebem que está tudo à nossa volta. O livro se passa no futuro e os personagens lembram o passado, e o passado é hoje.” Loyola é autor também de outro clássico da literatura, Zero (1975), que nasceu do sufoco sob a pressão da ditadura e sua censura, violência, torturas, prisões e guerrilhas. “Veja que usei o mesmo processo para Zero, mas ao contrário. Narrei o passado verdadeiro”, afirma. “Em Não Verás, olhei para o que poderia acontecer lá na frente. Em Zero, que levou dez anos para ser escrito, guardei várias notícias que os censores proibiram na ditadura militar – eu era secretário de redação na Última Hora, e recebia direto do censor o que estava proibido.” Loyola garante que não há uma só cena inventada. “Reescrevi à minha maneira tudo que os brasileiros tinham sofrido e não puderam ler naquele período nefasto, hoje negado. Ampliei a fórmula de Bebel que a Cidade Comeu, livro que teve influência direta de Manhattan Transfer, de John Dos Passos, e Marco Zero, de Oswald de Andrade. Fragmentei tudo, porque o Brasil me parecia estilhaçado por mil bombas de terroristas e da polícia.” 

Trecho da obra 

Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho. 

Tentaram tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos agonia continuamente. Será que tentaram? Nada conseguiram. Os caminhões, alegremente pintados em amarelo e verde, despejam mortos, noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim. 

Não há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos se abrem ao ar livre, descarregam em vagonetes, na vala seca do rio. O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne, em poucas horas. 

O cheiro infeto dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e aos formóis. Acre, faz o nariz sangrar, em tardes de inversão atmosférica. Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca, os olhos lacrimejam, racha a pele. Ao nível do chão, os animais morrem. 

Forma-se uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites do oikoumenê, palavra que os sociólogos, ociosos, recuperaram da antiguidade, a fim de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos? 

Virei-me assustado. Adelaide nunca tinha dado um grito em trinta e dois anos de casados. Treze para as oito. Em quatro minutos devia estar no ponto, ou perderia o S-7.58, minha condução autorizada. Estranho, ela sabia. E por que então resolvia me atrasar ainda mais?  

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