Quem busca uma empreitada literária para os tempos de isolamento social encontra em uma novidade da editora 34 um desafio à altura: trata-se de uma tradução inédita da Ilíada, feita pelo professor de língua e literatura grega da Unicamp, Trajano Vieira. Familiar do texto há pelo menos 40 anos, e próximo da tradução que Haroldo de Campos lançou no início do século, o professor resolveu ele mesmo empreender na aventura. “Por que traduzi-lo novamente? Pela possibilidade de relê-lo de outro ângulo”, explica no prefácio.
As mais de mil páginas da caprichada edição trazem notas introdutórias, texto sobre a tradução e um posfácio de Vieira, um ensaio de Simone Weil sobre o poema, excertos da crítica, muitos nunca publicados no Brasil, um mapa, um sumário dos cantos e 39 páginas de um índice apenas de nomes dos personagens, ferramenta fundamental para a leitura.
Do pouco que se sabe da vida de Homero, é consenso que ele foi o primeiro poeta do Ocidente, e a Ilíada, na cronologia homérica, ocorre antes da Odisseia. Dez anos de Guerra de Troia adentro, o poema começa com Aquiles, o maior herói grego, discutindo com o rei Agamenon por se sentir desprestigiado. O afastamento e a volta de Aquiles para a guerra são o fio condutor do poema de mais de 15 mil versos – recheado também de episódios laterais, digressões, descrições de aparatos militares, embates e participação ativa dos deuses do Olimpo e milhares de personagens.
O impressionante é que a narração nunca sai dos trilhos, mesmo quando os cantos (24) apresentam certa autonomia. “Esse é um dos traços de genialidade do autor, que não perde o controle da coerência interna de uma obra bastante extensa, embora constituída de um grande número de episódios periféricos que gravitam em torno do núcleo: os efeitos da ira de Aquiles e a expectativa de seu retorno”, escreve.
Algumas dicas básicas podem ajudar o leitor leigo a se aproximar do texto com menos desconfiança. Mas também é importante deixar claro que as histórias de Homero são reproduzidas, adaptadas, copiadas e servem como inspiração de incontáveis obras de arte e chegam com força ao universo pop: todo mundo se lembra do Aquiles de Brad Pitt no filme Troia (2004), há músicas de Bob Dylan e Led Zeppelin sobre o assunto, diversos videogames passam pelo período, e não é um acaso que o sistema de inteligência artificial do Homem de Ferro seja “Homer” na versão original. Nada disso serve para validar a Ilíada, mas talvez sirva para dizer que o livro não é um bicho de sete cabeças.
“É importante lembrar que Homero foi contemporâneo da introdução do alfabeto na Grécia (século 8.º a. C.) e que provavelmente não fixou a Ilíada por escrito, na íntegra”, explica Vieira. “Ou seja, tanto antes quanto depois de Homero, os dois poemas a ele atribuídos sofreram forte impacto da dinâmica oral. O emprego de expressões fixas indica essa prática.”
É muito comum no texto o uso de patronímicos, expressões locativas e epítetos para se referir aos personagens, e entender essa lógica pode ser uma chave para melhor compreensão do texto. Aquiles, por exemplo, também pode ser Aquileu, filho de Peleu, filho de Tétis, Pelida, Aquiles pés velozes, etc. Afrodite é Cípris e Cipria. Agamenon é o Atrida. E por aí vai.
“Os epítetos foram estudados com grande originalidade pelo helenista Milman Parry, na primeira metade do século 20”, comenta Vieira. “Parry detecta tamanha padronização no uso das fórmulas homéricas (sobretudo as compostas de nome + epíteto), que chega a propor que o núcleo dessa poesia não seria exatamente as palavras, mas as fórmulas. De fato, a recorrência dessas expressões é altíssima na Ilíada e na Odisseia e reflete a prática de produção e comunicação oral bastante remota na Grécia.”
Sobre a tradução, ele explica: “O caminho que procuro adotar busca configurar um texto paralelo, que almeja ter uma existência própria. Esse tipo de trabalho não busca o espelhamento submisso, mas o estabelecimento de um diálogo com o original. No caso de Homero, não penso que a reprodução automática de epítetos seja obrigatória. É possível fazer variações ou omissões eventuais, quando o resultado de uma reprodução literal resultar numa formulação insatisfatória em português. Odorico Mendes percebeu isso muito bem, chegando inclusive a reduzir o número de versos dos poemas homéricos. Haroldo de Campos também evita o automatismo na versão das expressões fixas na Ilíada”.
E qual é o diálogo de Homero com o século 21? “O relevo do código de conduta heroico, a função da amizade entre os heróis, a importância da hospitalidade no universo homérico sugerem padrões de comportamento que não deveriam ser desconsiderados por nós.”
ILÍADA
- Autor: Homero
- Tradutor: Trajano Vieira
- Editora: 34 (1.048 págs., R$ 129)