‘Império da Dor’: livro expõe crimes de bilionários na crise dos opioides, tema de série da Netflix


Jornalista detalha responsabilidade da família Sackler e a fragmentação do “sonho americano”; investigação deu origem a minissérie no streaming

Por Gabriel Zorzetto
Atualização:

Foi com um artigo na revista New Yorker que o repórter investigativo Patrick Radden Keefe jogou luz sobre os obscuros negócios da família Sackler, trazendo à tona os segredos de uma das mais poderosas dinastias dos Estados Unidos. As investigações deram vida a um trabalho mais amplo, o livro-reportagem Império da Dor que agora virou série na Netflix.

Trata-se de um retrato feroz da era dourada americana – espelhada na ascensão e queda de uma família que jamais assumiu sua responsabilidade pela mais complexa crise de saúde pública nos Estados Unidos. O império dos Sackler, que remonta à construção da América moderna, é obra de Arthur (1913-1987), Mortimer (1916-2010) e Raymond (1920-2017), todos eles médicos.

Por mais de seis décadas, os três irmãos e seus respectivos descendentes deixaram sua marca na cidade Nova York assim como os Vanderbilt, os Carnegie e os Rockfeller. O acúmulo de capital dos Sackler, hoje avaliado em cerca de 10 bilhões de dólares, se deve principalmente ao êxito comercial do potente analgésico opioide OxyContin, lançado em 1995 pela Purdue Pharma, empresa farmacêutica controlada pela família.

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O uso desenfreado do medicamento, anunciado como maneira “revolucionária” para tratar dores crônicas, foi uma das principais causas da epidemia de vício em opioides que matou mais de 450 mil americanos nos últimos 25 anos, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Discretos e filantrópicos, os Sackler angariaram notoriedade no campo da arte e da medicina, estampando fundações e patrocinando alas de museus renomados como o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e o Louvre, em Paris. Hoje, no entanto, ao visitar qualquer instituição desse porte, não será possível encontrar o nome deles nas paredes.

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Uma reputação que outrora foi associada à benevolência hoje é ligada ao crime. Isso se deve, em grande parte, ao ativismo ferrenho, ácido e inconformista da fotógrafa americana Nan Goldin. Após a publicação do artigo de Keefe, a artista se tornou símbolo da luta contra a família Sackler ao orquestrar protestos que reverberaram ao redor do mundo – trajetória retratada no recente documentário All The Beauty And The Bloodshed (2022), indicado ao Oscar na categoria.

Capa de 'Império da Dor', best-seller de Patrick Keefe lançado no Brasil pela Editora Intrínseca Foto: Reprodução/Amazon

“Esta é uma história sobre a maneira como uma família usou o mundo da elite de universidades sofisticadas e galerias de arte para lavar sua própria reputação. A filantropia era uma distração da natureza suja de seus negócios. Quando comecei a pesquisar em 2016, a família ainda era celebrada e admirada por onde passava”, conta ao Estadão o autor do livro e jornalista Patrick Keefe.

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Império da Dor, lançado no Brasil pela Editora Intrínseca, é best-seller do The New York Times e consolidou-se como a obra definitiva sobre a epidemia dos opioides. O conteúdo é dividido em três partes: Patriarca, uma biografia de Arthur Sackler, o homem que idealizou toda a lógica moralmente questionável da publicidade farmacêutica; Dinastia, que lida principalmente com a invenção do OxyContin sob as rédeas de Richard, sobrinho de Arthur; e Legado, que escancara a maneira como os Sackler eram famintos por dinheiro e ambiciosos em sua tentativa de dominar o mercado de analgésicos.

“Estou interessado nas maneiras pelas quais a sociedade determina algumas coisas como legítimas e outras ilegítimas. O que me interessa é a forma como aceitamos certos comportamentos de algumas pessoas, mas não de outras. Sempre me interessei pelo comércio ilegal de drogas, então fiquei fascinado ao saber que uma das maiores crises de drogas da história americana foi criada por uma família muito rica e sua empresa. Essas são pessoas que foram celebradas por sua riqueza, sofisticação e filantropia e, no entanto, causaram muitas mortes”, afirma o autor.

Jornalista Patrick Keefe, autor do livro 'Império da Dor' Foto: Divulgação/Editora Intrínseca
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O autor também é responsável por outros quatro livros de alto teor investigativo: Chatter (2005), sobre espionagem global; The Snakehead (2009), com foco no submundo do crime em Chinatown; Say Nothing (2019), sobre os violentos conflitos nacionalistas na Irlanda do Norte; e Rogues (2022), uma reunião de doze ensaios produzidos para a New Yorker.

Keefe é detalhista ao elucidar o implacável modus operandi da Purdue Pharma a fim de convencer os médicos a prescreverem OxyContin – afinal, eles estão em uma posição única na indústria: indicam o que deve ou não ser comprado pelo paciente. A fraude partia da ideia de que o novo opioide à base de oxicodona – um primo químico da morfina – era mais seguro e menos de 1% dos usuários contraíam algum tipo de vício.

A empresa dos Sackler, amparada por um rótulo ludibriador aprovado pela FDA (Food & Drug Administration, agência federal similar à Anvisa) então convencia os doutores com uma literatura financiada por ela própria, produzida por médicos pagos ou grupos supostamente independentes. O medicamento era divulgado em periódicos, sites e “seminários de tratamento de dor” para onde centenas de profissionais eram convidados, com direito a viagens bancadas pela Purdue e uma enorme distribuição de brindes. Desta forma, o caos instaurou-se. Em 1997, os médicos prescreveram mais de 670 mil receitas com OxyContin. Em 2002, esse número subiu para 6,2 milhões.

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Nesse sentido, é complementar conferir a minissérie Dopesick (2021), estrelada por Michael Keaton, que além de dramatizar com eficácia toda a crise dos opioides, é didática ao individualizar esse processo de cooptação de profissionais da área de saúde na figura do protagonista. É neste encalço que nasce a também minissérie da Netflix, que leva o mesmo nome do livro no Brasil.

Império da dor mostra as origens e consequências da crise do vício em opioides nos Estados Unidos, destacando as histórias dos criminosos, das vítimas, de uma uma investigadora e outras pessoas que buscaram a verdade, cujas vidas mudaram para sempre com a invenção do analgésico da Purdue Pharma.

Uzo Aduba como Edie e Matthew Broderick como Richard Sackler em cena de 'Império da Dor' Foto: Keri Anderson/Netflix
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“Quando o OxyContin atinge a corrente sanguínea, bloqueia as mensagens de dor que são enviadas ao cérebro. É um medicamento que só deve ser usado por pessoas que já experimentaram e toleraram formas de oxicodona de ação mais curta e que têm dor intensa que requer alívio da dor 24 horas por dia. Mesmo em dosagens prescritas, é viciante e tem alto potencial de abuso”, explica a Dra. Danyelle Marini, diretora do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP). No Brasil, a prescrição do remédio é incomum e geralmente feita por ortopedistas, mas um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal de opiáceos pelo menos uma vez na vida.

Em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada em três acusações penais movidas pelo Departamento de Justiça dos EUA. A companhia aceitou pagar mais de US$ 600 milhões em multas, danos e gastos legais. Em 2019, a empresa declarou falência, mas os Sackler escaparam da prisão com um acordo de US$ 4,5 bilhões em troca de imunidade civil.

A reputação deles, porém, mudou drasticamente. Alguns dos herdeiros recorreram até ao bilionário do mercado financeiro George Soros para pedir conselhos e auxílio a fim de controlar a alta exposição negativa da família, mas Soros recusou o convite.

John Rothman como Mortimer Sackler, Matthew Broderick como Richard Sackler, Sam Anderson como Raymond Sackler em 'Império da Dor', da Netflix Foto: Keri Anderson/Netflix

Para se ter uma ideia de como a imagem dos Sackler foi danificada, um homem de Nova Jersey que se chama David Sackler (homônimo do filho de Richard) precisou processar vários veículos de imprensa que usaram sua foto de forma indevida e equivocada em reportagens sobre a crise dos opioides. O rapaz disse que ser confundido com o “outro David Sackler” acabou com sua reputação e que precisou até adotar pseudônimos para conseguir reservas em restaurantes.

“Por dois anos, a família Sackler ameaçou entrar com uma ação legal contra mim. Seus advogados me enviaram dezenas de cartas enquanto eu trabalhava no livro. Um investigador particular estacionou seu carro na rua perto da minha casa e apenas observou minha casa. Mas isso era tudo. Na verdade, eles nunca entraram com uma ação judicial”, relata Keefe, que fez questão de descrever com profundidade todo o seu processo de reportagem na reta final do livro.

Ele conta, por exemplo, que uma grande parte dos depoimentos, arquivos de polícia e registros internos da Purdue usados para relatar a história chegaram em sua caixa de correio por meio de um pen-drive anônimo e cujo envelope continha, ironicamente, uma carta citando trechos do romance O Grande Gatsby (1925). Não à toa, o aspecto trágico do “sonho americano” presente no clássico de F. Scott Fitzgerald é evocado de forma orgânica em cada capítulo de Império da Dor.

Foi com um artigo na revista New Yorker que o repórter investigativo Patrick Radden Keefe jogou luz sobre os obscuros negócios da família Sackler, trazendo à tona os segredos de uma das mais poderosas dinastias dos Estados Unidos. As investigações deram vida a um trabalho mais amplo, o livro-reportagem Império da Dor que agora virou série na Netflix.

Trata-se de um retrato feroz da era dourada americana – espelhada na ascensão e queda de uma família que jamais assumiu sua responsabilidade pela mais complexa crise de saúde pública nos Estados Unidos. O império dos Sackler, que remonta à construção da América moderna, é obra de Arthur (1913-1987), Mortimer (1916-2010) e Raymond (1920-2017), todos eles médicos.

Por mais de seis décadas, os três irmãos e seus respectivos descendentes deixaram sua marca na cidade Nova York assim como os Vanderbilt, os Carnegie e os Rockfeller. O acúmulo de capital dos Sackler, hoje avaliado em cerca de 10 bilhões de dólares, se deve principalmente ao êxito comercial do potente analgésico opioide OxyContin, lançado em 1995 pela Purdue Pharma, empresa farmacêutica controlada pela família.

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O uso desenfreado do medicamento, anunciado como maneira “revolucionária” para tratar dores crônicas, foi uma das principais causas da epidemia de vício em opioides que matou mais de 450 mil americanos nos últimos 25 anos, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Discretos e filantrópicos, os Sackler angariaram notoriedade no campo da arte e da medicina, estampando fundações e patrocinando alas de museus renomados como o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e o Louvre, em Paris. Hoje, no entanto, ao visitar qualquer instituição desse porte, não será possível encontrar o nome deles nas paredes.

Uma reputação que outrora foi associada à benevolência hoje é ligada ao crime. Isso se deve, em grande parte, ao ativismo ferrenho, ácido e inconformista da fotógrafa americana Nan Goldin. Após a publicação do artigo de Keefe, a artista se tornou símbolo da luta contra a família Sackler ao orquestrar protestos que reverberaram ao redor do mundo – trajetória retratada no recente documentário All The Beauty And The Bloodshed (2022), indicado ao Oscar na categoria.

Capa de 'Império da Dor', best-seller de Patrick Keefe lançado no Brasil pela Editora Intrínseca Foto: Reprodução/Amazon

“Esta é uma história sobre a maneira como uma família usou o mundo da elite de universidades sofisticadas e galerias de arte para lavar sua própria reputação. A filantropia era uma distração da natureza suja de seus negócios. Quando comecei a pesquisar em 2016, a família ainda era celebrada e admirada por onde passava”, conta ao Estadão o autor do livro e jornalista Patrick Keefe.

Império da Dor, lançado no Brasil pela Editora Intrínseca, é best-seller do The New York Times e consolidou-se como a obra definitiva sobre a epidemia dos opioides. O conteúdo é dividido em três partes: Patriarca, uma biografia de Arthur Sackler, o homem que idealizou toda a lógica moralmente questionável da publicidade farmacêutica; Dinastia, que lida principalmente com a invenção do OxyContin sob as rédeas de Richard, sobrinho de Arthur; e Legado, que escancara a maneira como os Sackler eram famintos por dinheiro e ambiciosos em sua tentativa de dominar o mercado de analgésicos.

“Estou interessado nas maneiras pelas quais a sociedade determina algumas coisas como legítimas e outras ilegítimas. O que me interessa é a forma como aceitamos certos comportamentos de algumas pessoas, mas não de outras. Sempre me interessei pelo comércio ilegal de drogas, então fiquei fascinado ao saber que uma das maiores crises de drogas da história americana foi criada por uma família muito rica e sua empresa. Essas são pessoas que foram celebradas por sua riqueza, sofisticação e filantropia e, no entanto, causaram muitas mortes”, afirma o autor.

Jornalista Patrick Keefe, autor do livro 'Império da Dor' Foto: Divulgação/Editora Intrínseca

O autor também é responsável por outros quatro livros de alto teor investigativo: Chatter (2005), sobre espionagem global; The Snakehead (2009), com foco no submundo do crime em Chinatown; Say Nothing (2019), sobre os violentos conflitos nacionalistas na Irlanda do Norte; e Rogues (2022), uma reunião de doze ensaios produzidos para a New Yorker.

Keefe é detalhista ao elucidar o implacável modus operandi da Purdue Pharma a fim de convencer os médicos a prescreverem OxyContin – afinal, eles estão em uma posição única na indústria: indicam o que deve ou não ser comprado pelo paciente. A fraude partia da ideia de que o novo opioide à base de oxicodona – um primo químico da morfina – era mais seguro e menos de 1% dos usuários contraíam algum tipo de vício.

A empresa dos Sackler, amparada por um rótulo ludibriador aprovado pela FDA (Food & Drug Administration, agência federal similar à Anvisa) então convencia os doutores com uma literatura financiada por ela própria, produzida por médicos pagos ou grupos supostamente independentes. O medicamento era divulgado em periódicos, sites e “seminários de tratamento de dor” para onde centenas de profissionais eram convidados, com direito a viagens bancadas pela Purdue e uma enorme distribuição de brindes. Desta forma, o caos instaurou-se. Em 1997, os médicos prescreveram mais de 670 mil receitas com OxyContin. Em 2002, esse número subiu para 6,2 milhões.

Nesse sentido, é complementar conferir a minissérie Dopesick (2021), estrelada por Michael Keaton, que além de dramatizar com eficácia toda a crise dos opioides, é didática ao individualizar esse processo de cooptação de profissionais da área de saúde na figura do protagonista. É neste encalço que nasce a também minissérie da Netflix, que leva o mesmo nome do livro no Brasil.

Império da dor mostra as origens e consequências da crise do vício em opioides nos Estados Unidos, destacando as histórias dos criminosos, das vítimas, de uma uma investigadora e outras pessoas que buscaram a verdade, cujas vidas mudaram para sempre com a invenção do analgésico da Purdue Pharma.

Uzo Aduba como Edie e Matthew Broderick como Richard Sackler em cena de 'Império da Dor' Foto: Keri Anderson/Netflix

“Quando o OxyContin atinge a corrente sanguínea, bloqueia as mensagens de dor que são enviadas ao cérebro. É um medicamento que só deve ser usado por pessoas que já experimentaram e toleraram formas de oxicodona de ação mais curta e que têm dor intensa que requer alívio da dor 24 horas por dia. Mesmo em dosagens prescritas, é viciante e tem alto potencial de abuso”, explica a Dra. Danyelle Marini, diretora do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP). No Brasil, a prescrição do remédio é incomum e geralmente feita por ortopedistas, mas um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal de opiáceos pelo menos uma vez na vida.

Em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada em três acusações penais movidas pelo Departamento de Justiça dos EUA. A companhia aceitou pagar mais de US$ 600 milhões em multas, danos e gastos legais. Em 2019, a empresa declarou falência, mas os Sackler escaparam da prisão com um acordo de US$ 4,5 bilhões em troca de imunidade civil.

A reputação deles, porém, mudou drasticamente. Alguns dos herdeiros recorreram até ao bilionário do mercado financeiro George Soros para pedir conselhos e auxílio a fim de controlar a alta exposição negativa da família, mas Soros recusou o convite.

John Rothman como Mortimer Sackler, Matthew Broderick como Richard Sackler, Sam Anderson como Raymond Sackler em 'Império da Dor', da Netflix Foto: Keri Anderson/Netflix

Para se ter uma ideia de como a imagem dos Sackler foi danificada, um homem de Nova Jersey que se chama David Sackler (homônimo do filho de Richard) precisou processar vários veículos de imprensa que usaram sua foto de forma indevida e equivocada em reportagens sobre a crise dos opioides. O rapaz disse que ser confundido com o “outro David Sackler” acabou com sua reputação e que precisou até adotar pseudônimos para conseguir reservas em restaurantes.

“Por dois anos, a família Sackler ameaçou entrar com uma ação legal contra mim. Seus advogados me enviaram dezenas de cartas enquanto eu trabalhava no livro. Um investigador particular estacionou seu carro na rua perto da minha casa e apenas observou minha casa. Mas isso era tudo. Na verdade, eles nunca entraram com uma ação judicial”, relata Keefe, que fez questão de descrever com profundidade todo o seu processo de reportagem na reta final do livro.

Ele conta, por exemplo, que uma grande parte dos depoimentos, arquivos de polícia e registros internos da Purdue usados para relatar a história chegaram em sua caixa de correio por meio de um pen-drive anônimo e cujo envelope continha, ironicamente, uma carta citando trechos do romance O Grande Gatsby (1925). Não à toa, o aspecto trágico do “sonho americano” presente no clássico de F. Scott Fitzgerald é evocado de forma orgânica em cada capítulo de Império da Dor.

Foi com um artigo na revista New Yorker que o repórter investigativo Patrick Radden Keefe jogou luz sobre os obscuros negócios da família Sackler, trazendo à tona os segredos de uma das mais poderosas dinastias dos Estados Unidos. As investigações deram vida a um trabalho mais amplo, o livro-reportagem Império da Dor que agora virou série na Netflix.

Trata-se de um retrato feroz da era dourada americana – espelhada na ascensão e queda de uma família que jamais assumiu sua responsabilidade pela mais complexa crise de saúde pública nos Estados Unidos. O império dos Sackler, que remonta à construção da América moderna, é obra de Arthur (1913-1987), Mortimer (1916-2010) e Raymond (1920-2017), todos eles médicos.

Por mais de seis décadas, os três irmãos e seus respectivos descendentes deixaram sua marca na cidade Nova York assim como os Vanderbilt, os Carnegie e os Rockfeller. O acúmulo de capital dos Sackler, hoje avaliado em cerca de 10 bilhões de dólares, se deve principalmente ao êxito comercial do potente analgésico opioide OxyContin, lançado em 1995 pela Purdue Pharma, empresa farmacêutica controlada pela família.

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O uso desenfreado do medicamento, anunciado como maneira “revolucionária” para tratar dores crônicas, foi uma das principais causas da epidemia de vício em opioides que matou mais de 450 mil americanos nos últimos 25 anos, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Discretos e filantrópicos, os Sackler angariaram notoriedade no campo da arte e da medicina, estampando fundações e patrocinando alas de museus renomados como o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e o Louvre, em Paris. Hoje, no entanto, ao visitar qualquer instituição desse porte, não será possível encontrar o nome deles nas paredes.

Uma reputação que outrora foi associada à benevolência hoje é ligada ao crime. Isso se deve, em grande parte, ao ativismo ferrenho, ácido e inconformista da fotógrafa americana Nan Goldin. Após a publicação do artigo de Keefe, a artista se tornou símbolo da luta contra a família Sackler ao orquestrar protestos que reverberaram ao redor do mundo – trajetória retratada no recente documentário All The Beauty And The Bloodshed (2022), indicado ao Oscar na categoria.

Capa de 'Império da Dor', best-seller de Patrick Keefe lançado no Brasil pela Editora Intrínseca Foto: Reprodução/Amazon

“Esta é uma história sobre a maneira como uma família usou o mundo da elite de universidades sofisticadas e galerias de arte para lavar sua própria reputação. A filantropia era uma distração da natureza suja de seus negócios. Quando comecei a pesquisar em 2016, a família ainda era celebrada e admirada por onde passava”, conta ao Estadão o autor do livro e jornalista Patrick Keefe.

Império da Dor, lançado no Brasil pela Editora Intrínseca, é best-seller do The New York Times e consolidou-se como a obra definitiva sobre a epidemia dos opioides. O conteúdo é dividido em três partes: Patriarca, uma biografia de Arthur Sackler, o homem que idealizou toda a lógica moralmente questionável da publicidade farmacêutica; Dinastia, que lida principalmente com a invenção do OxyContin sob as rédeas de Richard, sobrinho de Arthur; e Legado, que escancara a maneira como os Sackler eram famintos por dinheiro e ambiciosos em sua tentativa de dominar o mercado de analgésicos.

“Estou interessado nas maneiras pelas quais a sociedade determina algumas coisas como legítimas e outras ilegítimas. O que me interessa é a forma como aceitamos certos comportamentos de algumas pessoas, mas não de outras. Sempre me interessei pelo comércio ilegal de drogas, então fiquei fascinado ao saber que uma das maiores crises de drogas da história americana foi criada por uma família muito rica e sua empresa. Essas são pessoas que foram celebradas por sua riqueza, sofisticação e filantropia e, no entanto, causaram muitas mortes”, afirma o autor.

Jornalista Patrick Keefe, autor do livro 'Império da Dor' Foto: Divulgação/Editora Intrínseca

O autor também é responsável por outros quatro livros de alto teor investigativo: Chatter (2005), sobre espionagem global; The Snakehead (2009), com foco no submundo do crime em Chinatown; Say Nothing (2019), sobre os violentos conflitos nacionalistas na Irlanda do Norte; e Rogues (2022), uma reunião de doze ensaios produzidos para a New Yorker.

Keefe é detalhista ao elucidar o implacável modus operandi da Purdue Pharma a fim de convencer os médicos a prescreverem OxyContin – afinal, eles estão em uma posição única na indústria: indicam o que deve ou não ser comprado pelo paciente. A fraude partia da ideia de que o novo opioide à base de oxicodona – um primo químico da morfina – era mais seguro e menos de 1% dos usuários contraíam algum tipo de vício.

A empresa dos Sackler, amparada por um rótulo ludibriador aprovado pela FDA (Food & Drug Administration, agência federal similar à Anvisa) então convencia os doutores com uma literatura financiada por ela própria, produzida por médicos pagos ou grupos supostamente independentes. O medicamento era divulgado em periódicos, sites e “seminários de tratamento de dor” para onde centenas de profissionais eram convidados, com direito a viagens bancadas pela Purdue e uma enorme distribuição de brindes. Desta forma, o caos instaurou-se. Em 1997, os médicos prescreveram mais de 670 mil receitas com OxyContin. Em 2002, esse número subiu para 6,2 milhões.

Nesse sentido, é complementar conferir a minissérie Dopesick (2021), estrelada por Michael Keaton, que além de dramatizar com eficácia toda a crise dos opioides, é didática ao individualizar esse processo de cooptação de profissionais da área de saúde na figura do protagonista. É neste encalço que nasce a também minissérie da Netflix, que leva o mesmo nome do livro no Brasil.

Império da dor mostra as origens e consequências da crise do vício em opioides nos Estados Unidos, destacando as histórias dos criminosos, das vítimas, de uma uma investigadora e outras pessoas que buscaram a verdade, cujas vidas mudaram para sempre com a invenção do analgésico da Purdue Pharma.

Uzo Aduba como Edie e Matthew Broderick como Richard Sackler em cena de 'Império da Dor' Foto: Keri Anderson/Netflix

“Quando o OxyContin atinge a corrente sanguínea, bloqueia as mensagens de dor que são enviadas ao cérebro. É um medicamento que só deve ser usado por pessoas que já experimentaram e toleraram formas de oxicodona de ação mais curta e que têm dor intensa que requer alívio da dor 24 horas por dia. Mesmo em dosagens prescritas, é viciante e tem alto potencial de abuso”, explica a Dra. Danyelle Marini, diretora do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP). No Brasil, a prescrição do remédio é incomum e geralmente feita por ortopedistas, mas um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal de opiáceos pelo menos uma vez na vida.

Em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada em três acusações penais movidas pelo Departamento de Justiça dos EUA. A companhia aceitou pagar mais de US$ 600 milhões em multas, danos e gastos legais. Em 2019, a empresa declarou falência, mas os Sackler escaparam da prisão com um acordo de US$ 4,5 bilhões em troca de imunidade civil.

A reputação deles, porém, mudou drasticamente. Alguns dos herdeiros recorreram até ao bilionário do mercado financeiro George Soros para pedir conselhos e auxílio a fim de controlar a alta exposição negativa da família, mas Soros recusou o convite.

John Rothman como Mortimer Sackler, Matthew Broderick como Richard Sackler, Sam Anderson como Raymond Sackler em 'Império da Dor', da Netflix Foto: Keri Anderson/Netflix

Para se ter uma ideia de como a imagem dos Sackler foi danificada, um homem de Nova Jersey que se chama David Sackler (homônimo do filho de Richard) precisou processar vários veículos de imprensa que usaram sua foto de forma indevida e equivocada em reportagens sobre a crise dos opioides. O rapaz disse que ser confundido com o “outro David Sackler” acabou com sua reputação e que precisou até adotar pseudônimos para conseguir reservas em restaurantes.

“Por dois anos, a família Sackler ameaçou entrar com uma ação legal contra mim. Seus advogados me enviaram dezenas de cartas enquanto eu trabalhava no livro. Um investigador particular estacionou seu carro na rua perto da minha casa e apenas observou minha casa. Mas isso era tudo. Na verdade, eles nunca entraram com uma ação judicial”, relata Keefe, que fez questão de descrever com profundidade todo o seu processo de reportagem na reta final do livro.

Ele conta, por exemplo, que uma grande parte dos depoimentos, arquivos de polícia e registros internos da Purdue usados para relatar a história chegaram em sua caixa de correio por meio de um pen-drive anônimo e cujo envelope continha, ironicamente, uma carta citando trechos do romance O Grande Gatsby (1925). Não à toa, o aspecto trágico do “sonho americano” presente no clássico de F. Scott Fitzgerald é evocado de forma orgânica em cada capítulo de Império da Dor.

Foi com um artigo na revista New Yorker que o repórter investigativo Patrick Radden Keefe jogou luz sobre os obscuros negócios da família Sackler, trazendo à tona os segredos de uma das mais poderosas dinastias dos Estados Unidos. As investigações deram vida a um trabalho mais amplo, o livro-reportagem Império da Dor que agora virou série na Netflix.

Trata-se de um retrato feroz da era dourada americana – espelhada na ascensão e queda de uma família que jamais assumiu sua responsabilidade pela mais complexa crise de saúde pública nos Estados Unidos. O império dos Sackler, que remonta à construção da América moderna, é obra de Arthur (1913-1987), Mortimer (1916-2010) e Raymond (1920-2017), todos eles médicos.

Por mais de seis décadas, os três irmãos e seus respectivos descendentes deixaram sua marca na cidade Nova York assim como os Vanderbilt, os Carnegie e os Rockfeller. O acúmulo de capital dos Sackler, hoje avaliado em cerca de 10 bilhões de dólares, se deve principalmente ao êxito comercial do potente analgésico opioide OxyContin, lançado em 1995 pela Purdue Pharma, empresa farmacêutica controlada pela família.

reference

O uso desenfreado do medicamento, anunciado como maneira “revolucionária” para tratar dores crônicas, foi uma das principais causas da epidemia de vício em opioides que matou mais de 450 mil americanos nos últimos 25 anos, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Discretos e filantrópicos, os Sackler angariaram notoriedade no campo da arte e da medicina, estampando fundações e patrocinando alas de museus renomados como o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e o Louvre, em Paris. Hoje, no entanto, ao visitar qualquer instituição desse porte, não será possível encontrar o nome deles nas paredes.

Uma reputação que outrora foi associada à benevolência hoje é ligada ao crime. Isso se deve, em grande parte, ao ativismo ferrenho, ácido e inconformista da fotógrafa americana Nan Goldin. Após a publicação do artigo de Keefe, a artista se tornou símbolo da luta contra a família Sackler ao orquestrar protestos que reverberaram ao redor do mundo – trajetória retratada no recente documentário All The Beauty And The Bloodshed (2022), indicado ao Oscar na categoria.

Capa de 'Império da Dor', best-seller de Patrick Keefe lançado no Brasil pela Editora Intrínseca Foto: Reprodução/Amazon

“Esta é uma história sobre a maneira como uma família usou o mundo da elite de universidades sofisticadas e galerias de arte para lavar sua própria reputação. A filantropia era uma distração da natureza suja de seus negócios. Quando comecei a pesquisar em 2016, a família ainda era celebrada e admirada por onde passava”, conta ao Estadão o autor do livro e jornalista Patrick Keefe.

Império da Dor, lançado no Brasil pela Editora Intrínseca, é best-seller do The New York Times e consolidou-se como a obra definitiva sobre a epidemia dos opioides. O conteúdo é dividido em três partes: Patriarca, uma biografia de Arthur Sackler, o homem que idealizou toda a lógica moralmente questionável da publicidade farmacêutica; Dinastia, que lida principalmente com a invenção do OxyContin sob as rédeas de Richard, sobrinho de Arthur; e Legado, que escancara a maneira como os Sackler eram famintos por dinheiro e ambiciosos em sua tentativa de dominar o mercado de analgésicos.

“Estou interessado nas maneiras pelas quais a sociedade determina algumas coisas como legítimas e outras ilegítimas. O que me interessa é a forma como aceitamos certos comportamentos de algumas pessoas, mas não de outras. Sempre me interessei pelo comércio ilegal de drogas, então fiquei fascinado ao saber que uma das maiores crises de drogas da história americana foi criada por uma família muito rica e sua empresa. Essas são pessoas que foram celebradas por sua riqueza, sofisticação e filantropia e, no entanto, causaram muitas mortes”, afirma o autor.

Jornalista Patrick Keefe, autor do livro 'Império da Dor' Foto: Divulgação/Editora Intrínseca

O autor também é responsável por outros quatro livros de alto teor investigativo: Chatter (2005), sobre espionagem global; The Snakehead (2009), com foco no submundo do crime em Chinatown; Say Nothing (2019), sobre os violentos conflitos nacionalistas na Irlanda do Norte; e Rogues (2022), uma reunião de doze ensaios produzidos para a New Yorker.

Keefe é detalhista ao elucidar o implacável modus operandi da Purdue Pharma a fim de convencer os médicos a prescreverem OxyContin – afinal, eles estão em uma posição única na indústria: indicam o que deve ou não ser comprado pelo paciente. A fraude partia da ideia de que o novo opioide à base de oxicodona – um primo químico da morfina – era mais seguro e menos de 1% dos usuários contraíam algum tipo de vício.

A empresa dos Sackler, amparada por um rótulo ludibriador aprovado pela FDA (Food & Drug Administration, agência federal similar à Anvisa) então convencia os doutores com uma literatura financiada por ela própria, produzida por médicos pagos ou grupos supostamente independentes. O medicamento era divulgado em periódicos, sites e “seminários de tratamento de dor” para onde centenas de profissionais eram convidados, com direito a viagens bancadas pela Purdue e uma enorme distribuição de brindes. Desta forma, o caos instaurou-se. Em 1997, os médicos prescreveram mais de 670 mil receitas com OxyContin. Em 2002, esse número subiu para 6,2 milhões.

Nesse sentido, é complementar conferir a minissérie Dopesick (2021), estrelada por Michael Keaton, que além de dramatizar com eficácia toda a crise dos opioides, é didática ao individualizar esse processo de cooptação de profissionais da área de saúde na figura do protagonista. É neste encalço que nasce a também minissérie da Netflix, que leva o mesmo nome do livro no Brasil.

Império da dor mostra as origens e consequências da crise do vício em opioides nos Estados Unidos, destacando as histórias dos criminosos, das vítimas, de uma uma investigadora e outras pessoas que buscaram a verdade, cujas vidas mudaram para sempre com a invenção do analgésico da Purdue Pharma.

Uzo Aduba como Edie e Matthew Broderick como Richard Sackler em cena de 'Império da Dor' Foto: Keri Anderson/Netflix

“Quando o OxyContin atinge a corrente sanguínea, bloqueia as mensagens de dor que são enviadas ao cérebro. É um medicamento que só deve ser usado por pessoas que já experimentaram e toleraram formas de oxicodona de ação mais curta e que têm dor intensa que requer alívio da dor 24 horas por dia. Mesmo em dosagens prescritas, é viciante e tem alto potencial de abuso”, explica a Dra. Danyelle Marini, diretora do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP). No Brasil, a prescrição do remédio é incomum e geralmente feita por ortopedistas, mas um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal de opiáceos pelo menos uma vez na vida.

Em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada em três acusações penais movidas pelo Departamento de Justiça dos EUA. A companhia aceitou pagar mais de US$ 600 milhões em multas, danos e gastos legais. Em 2019, a empresa declarou falência, mas os Sackler escaparam da prisão com um acordo de US$ 4,5 bilhões em troca de imunidade civil.

A reputação deles, porém, mudou drasticamente. Alguns dos herdeiros recorreram até ao bilionário do mercado financeiro George Soros para pedir conselhos e auxílio a fim de controlar a alta exposição negativa da família, mas Soros recusou o convite.

John Rothman como Mortimer Sackler, Matthew Broderick como Richard Sackler, Sam Anderson como Raymond Sackler em 'Império da Dor', da Netflix Foto: Keri Anderson/Netflix

Para se ter uma ideia de como a imagem dos Sackler foi danificada, um homem de Nova Jersey que se chama David Sackler (homônimo do filho de Richard) precisou processar vários veículos de imprensa que usaram sua foto de forma indevida e equivocada em reportagens sobre a crise dos opioides. O rapaz disse que ser confundido com o “outro David Sackler” acabou com sua reputação e que precisou até adotar pseudônimos para conseguir reservas em restaurantes.

“Por dois anos, a família Sackler ameaçou entrar com uma ação legal contra mim. Seus advogados me enviaram dezenas de cartas enquanto eu trabalhava no livro. Um investigador particular estacionou seu carro na rua perto da minha casa e apenas observou minha casa. Mas isso era tudo. Na verdade, eles nunca entraram com uma ação judicial”, relata Keefe, que fez questão de descrever com profundidade todo o seu processo de reportagem na reta final do livro.

Ele conta, por exemplo, que uma grande parte dos depoimentos, arquivos de polícia e registros internos da Purdue usados para relatar a história chegaram em sua caixa de correio por meio de um pen-drive anônimo e cujo envelope continha, ironicamente, uma carta citando trechos do romance O Grande Gatsby (1925). Não à toa, o aspecto trágico do “sonho americano” presente no clássico de F. Scott Fitzgerald é evocado de forma orgânica em cada capítulo de Império da Dor.

Foi com um artigo na revista New Yorker que o repórter investigativo Patrick Radden Keefe jogou luz sobre os obscuros negócios da família Sackler, trazendo à tona os segredos de uma das mais poderosas dinastias dos Estados Unidos. As investigações deram vida a um trabalho mais amplo, o livro-reportagem Império da Dor que agora virou série na Netflix.

Trata-se de um retrato feroz da era dourada americana – espelhada na ascensão e queda de uma família que jamais assumiu sua responsabilidade pela mais complexa crise de saúde pública nos Estados Unidos. O império dos Sackler, que remonta à construção da América moderna, é obra de Arthur (1913-1987), Mortimer (1916-2010) e Raymond (1920-2017), todos eles médicos.

Por mais de seis décadas, os três irmãos e seus respectivos descendentes deixaram sua marca na cidade Nova York assim como os Vanderbilt, os Carnegie e os Rockfeller. O acúmulo de capital dos Sackler, hoje avaliado em cerca de 10 bilhões de dólares, se deve principalmente ao êxito comercial do potente analgésico opioide OxyContin, lançado em 1995 pela Purdue Pharma, empresa farmacêutica controlada pela família.

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O uso desenfreado do medicamento, anunciado como maneira “revolucionária” para tratar dores crônicas, foi uma das principais causas da epidemia de vício em opioides que matou mais de 450 mil americanos nos últimos 25 anos, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Discretos e filantrópicos, os Sackler angariaram notoriedade no campo da arte e da medicina, estampando fundações e patrocinando alas de museus renomados como o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e o Louvre, em Paris. Hoje, no entanto, ao visitar qualquer instituição desse porte, não será possível encontrar o nome deles nas paredes.

Uma reputação que outrora foi associada à benevolência hoje é ligada ao crime. Isso se deve, em grande parte, ao ativismo ferrenho, ácido e inconformista da fotógrafa americana Nan Goldin. Após a publicação do artigo de Keefe, a artista se tornou símbolo da luta contra a família Sackler ao orquestrar protestos que reverberaram ao redor do mundo – trajetória retratada no recente documentário All The Beauty And The Bloodshed (2022), indicado ao Oscar na categoria.

Capa de 'Império da Dor', best-seller de Patrick Keefe lançado no Brasil pela Editora Intrínseca Foto: Reprodução/Amazon

“Esta é uma história sobre a maneira como uma família usou o mundo da elite de universidades sofisticadas e galerias de arte para lavar sua própria reputação. A filantropia era uma distração da natureza suja de seus negócios. Quando comecei a pesquisar em 2016, a família ainda era celebrada e admirada por onde passava”, conta ao Estadão o autor do livro e jornalista Patrick Keefe.

Império da Dor, lançado no Brasil pela Editora Intrínseca, é best-seller do The New York Times e consolidou-se como a obra definitiva sobre a epidemia dos opioides. O conteúdo é dividido em três partes: Patriarca, uma biografia de Arthur Sackler, o homem que idealizou toda a lógica moralmente questionável da publicidade farmacêutica; Dinastia, que lida principalmente com a invenção do OxyContin sob as rédeas de Richard, sobrinho de Arthur; e Legado, que escancara a maneira como os Sackler eram famintos por dinheiro e ambiciosos em sua tentativa de dominar o mercado de analgésicos.

“Estou interessado nas maneiras pelas quais a sociedade determina algumas coisas como legítimas e outras ilegítimas. O que me interessa é a forma como aceitamos certos comportamentos de algumas pessoas, mas não de outras. Sempre me interessei pelo comércio ilegal de drogas, então fiquei fascinado ao saber que uma das maiores crises de drogas da história americana foi criada por uma família muito rica e sua empresa. Essas são pessoas que foram celebradas por sua riqueza, sofisticação e filantropia e, no entanto, causaram muitas mortes”, afirma o autor.

Jornalista Patrick Keefe, autor do livro 'Império da Dor' Foto: Divulgação/Editora Intrínseca

O autor também é responsável por outros quatro livros de alto teor investigativo: Chatter (2005), sobre espionagem global; The Snakehead (2009), com foco no submundo do crime em Chinatown; Say Nothing (2019), sobre os violentos conflitos nacionalistas na Irlanda do Norte; e Rogues (2022), uma reunião de doze ensaios produzidos para a New Yorker.

Keefe é detalhista ao elucidar o implacável modus operandi da Purdue Pharma a fim de convencer os médicos a prescreverem OxyContin – afinal, eles estão em uma posição única na indústria: indicam o que deve ou não ser comprado pelo paciente. A fraude partia da ideia de que o novo opioide à base de oxicodona – um primo químico da morfina – era mais seguro e menos de 1% dos usuários contraíam algum tipo de vício.

A empresa dos Sackler, amparada por um rótulo ludibriador aprovado pela FDA (Food & Drug Administration, agência federal similar à Anvisa) então convencia os doutores com uma literatura financiada por ela própria, produzida por médicos pagos ou grupos supostamente independentes. O medicamento era divulgado em periódicos, sites e “seminários de tratamento de dor” para onde centenas de profissionais eram convidados, com direito a viagens bancadas pela Purdue e uma enorme distribuição de brindes. Desta forma, o caos instaurou-se. Em 1997, os médicos prescreveram mais de 670 mil receitas com OxyContin. Em 2002, esse número subiu para 6,2 milhões.

Nesse sentido, é complementar conferir a minissérie Dopesick (2021), estrelada por Michael Keaton, que além de dramatizar com eficácia toda a crise dos opioides, é didática ao individualizar esse processo de cooptação de profissionais da área de saúde na figura do protagonista. É neste encalço que nasce a também minissérie da Netflix, que leva o mesmo nome do livro no Brasil.

Império da dor mostra as origens e consequências da crise do vício em opioides nos Estados Unidos, destacando as histórias dos criminosos, das vítimas, de uma uma investigadora e outras pessoas que buscaram a verdade, cujas vidas mudaram para sempre com a invenção do analgésico da Purdue Pharma.

Uzo Aduba como Edie e Matthew Broderick como Richard Sackler em cena de 'Império da Dor' Foto: Keri Anderson/Netflix

“Quando o OxyContin atinge a corrente sanguínea, bloqueia as mensagens de dor que são enviadas ao cérebro. É um medicamento que só deve ser usado por pessoas que já experimentaram e toleraram formas de oxicodona de ação mais curta e que têm dor intensa que requer alívio da dor 24 horas por dia. Mesmo em dosagens prescritas, é viciante e tem alto potencial de abuso”, explica a Dra. Danyelle Marini, diretora do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP). No Brasil, a prescrição do remédio é incomum e geralmente feita por ortopedistas, mas um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal de opiáceos pelo menos uma vez na vida.

Em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada em três acusações penais movidas pelo Departamento de Justiça dos EUA. A companhia aceitou pagar mais de US$ 600 milhões em multas, danos e gastos legais. Em 2019, a empresa declarou falência, mas os Sackler escaparam da prisão com um acordo de US$ 4,5 bilhões em troca de imunidade civil.

A reputação deles, porém, mudou drasticamente. Alguns dos herdeiros recorreram até ao bilionário do mercado financeiro George Soros para pedir conselhos e auxílio a fim de controlar a alta exposição negativa da família, mas Soros recusou o convite.

John Rothman como Mortimer Sackler, Matthew Broderick como Richard Sackler, Sam Anderson como Raymond Sackler em 'Império da Dor', da Netflix Foto: Keri Anderson/Netflix

Para se ter uma ideia de como a imagem dos Sackler foi danificada, um homem de Nova Jersey que se chama David Sackler (homônimo do filho de Richard) precisou processar vários veículos de imprensa que usaram sua foto de forma indevida e equivocada em reportagens sobre a crise dos opioides. O rapaz disse que ser confundido com o “outro David Sackler” acabou com sua reputação e que precisou até adotar pseudônimos para conseguir reservas em restaurantes.

“Por dois anos, a família Sackler ameaçou entrar com uma ação legal contra mim. Seus advogados me enviaram dezenas de cartas enquanto eu trabalhava no livro. Um investigador particular estacionou seu carro na rua perto da minha casa e apenas observou minha casa. Mas isso era tudo. Na verdade, eles nunca entraram com uma ação judicial”, relata Keefe, que fez questão de descrever com profundidade todo o seu processo de reportagem na reta final do livro.

Ele conta, por exemplo, que uma grande parte dos depoimentos, arquivos de polícia e registros internos da Purdue usados para relatar a história chegaram em sua caixa de correio por meio de um pen-drive anônimo e cujo envelope continha, ironicamente, uma carta citando trechos do romance O Grande Gatsby (1925). Não à toa, o aspecto trágico do “sonho americano” presente no clássico de F. Scott Fitzgerald é evocado de forma orgânica em cada capítulo de Império da Dor.

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