João Silvério Trevisan busca na dor profunda a matéria-prima de 'Pai, Pai'


O autor, criador de uma das mais tradicionais oficinas literárias do País, volta à infância sofrida para reencontrar e recriar seu pai

Por Maria Fernanda Rodrigues

João Silvério Trevisan queria que seu primeiro filme se chamasse Foi Assim Que Matei Meu Pai, mas não conseguiu convencer o coprodutor da Boca do Lixo e ele virou Orgia ou o Homem Que Deu Cria. O enredo continuou o mesmo: após enforcar o pai alcoólatra, o adolescente foge de casa transtornado pela culpa. Trevisan tinha 26. Era 1970.

O autor. Criança assombrada pelo fantasma vivo do pai alcoólatra Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Os anos se passaram com seus altos e baixos e, já perto dos 70, ao tratar uma depressão, ele começou, sem que tivesse programado ou desejado, a escrever sobre seu pai José – uma figura que se revelou infeliz, desesperada, devastada pela solidão. Um pai que nunca disse uma palavra amável ao filho mais velho, que nunca lhe fez um carinho. Muito pelo contrário. O pequeno João cresceu sem entender o desprezo de seu pai, ou por que apanhava tanto e era humilhado incessantemente.

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É a resposta às perguntas ‘Quem é esse cara’ e ‘O que tenho a ver com ele’ que João Silvério Trevisan persegue em Pai, Pai, corajoso relato sobre a relação com esse pai ausente e violento, que ele lança agora. O livro inaugura o que o autor está chamando de Trilogia da Dor.

O volume sobre seu irmão, grande amigo e herói Claudio, o único a enfrentar o pai e morto precocemente em decorrência de um câncer linfático, está quase pronto. O título em que ele fala sobre uma ruptura amorosa está travado há mais de 30 anos. Com a nova depressão, a dor fundadora se manifestou e Trevisan revolveu os baús da memória – da irmã, inclusive – não para matar o pai e seguir adiante, conceito caro à psicanálise e que ele aborda na obra, ou para se despedir dele, mas para reencontrar seu carrasco. Para perdoar e pedir perdão.

Portanto, que o leitor não se deixe levar pela classificação do livro como romance. É pura autobiografia. “Minha alma está neste livro e estou nu em cima de uma montanha de madeira prestes a ser acesa”, brinca. “Mas vou aguentar o tranco”, completa, sobre o fato de ter contado, sem autocensura, uma história privada tão dolorida. Por outro lado, se olharmos para o sentido lato da ficção, ele diz, então esta é uma obra de ficção. Afinal, ele criou um pai.

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O título remete a trecho do evangelho de Mateus – “Pai, pai, por que me abandonaste” –, lido muitas vezes nos 10 anos em que frequentou o seminário. Sim, para fugir do ambiente hostil de Ribeirão Bonito e da pá de madeira usada pelo pai para tirar o pão do forno e também para bater no filho e na mulher, a única saída para João, àquela altura com menos de 10 anos, era o seminário.

Enquanto busca as origens da raiva paterna – criança, ele não entendia, mas mais velho chegou a pensar que sua homossexualidade era o motivo de tanto desgosto para aquele homem simples, de família italiana, que por mais de 30 anos “tentou se matar bebendo” – Trevisan vai nos contando sobre sua vida. E não poupa o leitor das inúmeras cenas doídas que protagonizou diante de uma singela árvore de Natal, de uma caçulinha de Guaraná cheia de urina ou no leito de morte daquele que o desprezou.

Lemos sobre o trabalho compulsório ao lado do pai na padaria/bar decadente, as idas ao cinema como único momento de leveza, os livros que a mãe lhe comprava a duras penas, a descoberta do corpo, do amor, o seminário, a descoberta da voz, o trabalho com cinema, teatro, a literatura, o exílio, a luta LGBT. Escrevendo esse livro, o autor percebeu que não importa o que fizesse, o fantasma de José Trevisan, vivo ou morto, o acompanhava.

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Na ditadura, gays eram rejeitados pela direita e pela esquerda, afirma escritor e ativista gay

E escrever não foi fácil. Quanto mais procurava fatos que o ajudassem na tarefa de entender esse pai, mais as feridas se abriam. Mas João Silvério Trevisan não é nenhum inexperiente para mergulhar nesse universo. São anos e anos de análise. E mais de três décadas a frente de uma das mais tradicionais oficinas de escrita criativa do País.

Algo que ele defende em suas aulas é a necessidade de se chegar ao caos interior. Há uma tendência hoje, ele diz, principalmente com jovens escritores e escritoras, de achar que a expressão literária se resume à maneira de escrever. “Ela é importantíssima, mas se não houver uma matéria-prima, é um fiasco. Tenho visto que essa matéria-prima tem sido esquecida e ela é o nosso lixo, o caos interior, aquele caldeirão que está cozinhando o nosso mistério. É aí que buscamos nossa literatura”, diz.

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Trevisan conta que passou o tempo todo tentando atender essa sua exigência curricular de mergulhar em seu interior e trazer a tona o seu mistério. “Mesmo que isso doa – e dói.” E diz que não escrevia pura e simplesmente o que aparecia em sua cabeça. “Eu buscava a melhor forma de expressar aquilo o que eu tinha sentido e vivido e aquilo o que estava à sombra disso. Fui trabalhando racionalmente a matéria-prima, aquele cocô que eu ia trazendo lá de dentro. E, com isso, fui entrando num processo alquímico do ponto de vista junguiano, o processo de transformar a merda em ouro, e o ouro, para mim, foi o perdão”, revela.

Com Pai, Pai, ele não se despede José, mas encontra certa paz. “Não quero me despedir desse pai. Não tenho como. Esse pai é meu, ele está dentro de mim. É o pai que eu construí a partir do espermatozoide que ele me deu. Eu tive um encontro com o meu pai em vez de despedida. Eu abracei meu pai. Aprendi a receber o pai que a vida me deu e com isso aprendi a abrir um pouco mais os braços para a vida”, conclui.

PAI, PAIAutor: João Silvério TrevisanEditora: Alfaguara (252 págs.; R$ 44,90; R$ 29,90 o e-book)Lançamento: Hoje, 28, 11h, Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94)

João Silvério Trevisan queria que seu primeiro filme se chamasse Foi Assim Que Matei Meu Pai, mas não conseguiu convencer o coprodutor da Boca do Lixo e ele virou Orgia ou o Homem Que Deu Cria. O enredo continuou o mesmo: após enforcar o pai alcoólatra, o adolescente foge de casa transtornado pela culpa. Trevisan tinha 26. Era 1970.

O autor. Criança assombrada pelo fantasma vivo do pai alcoólatra Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Os anos se passaram com seus altos e baixos e, já perto dos 70, ao tratar uma depressão, ele começou, sem que tivesse programado ou desejado, a escrever sobre seu pai José – uma figura que se revelou infeliz, desesperada, devastada pela solidão. Um pai que nunca disse uma palavra amável ao filho mais velho, que nunca lhe fez um carinho. Muito pelo contrário. O pequeno João cresceu sem entender o desprezo de seu pai, ou por que apanhava tanto e era humilhado incessantemente.

É a resposta às perguntas ‘Quem é esse cara’ e ‘O que tenho a ver com ele’ que João Silvério Trevisan persegue em Pai, Pai, corajoso relato sobre a relação com esse pai ausente e violento, que ele lança agora. O livro inaugura o que o autor está chamando de Trilogia da Dor.

O volume sobre seu irmão, grande amigo e herói Claudio, o único a enfrentar o pai e morto precocemente em decorrência de um câncer linfático, está quase pronto. O título em que ele fala sobre uma ruptura amorosa está travado há mais de 30 anos. Com a nova depressão, a dor fundadora se manifestou e Trevisan revolveu os baús da memória – da irmã, inclusive – não para matar o pai e seguir adiante, conceito caro à psicanálise e que ele aborda na obra, ou para se despedir dele, mas para reencontrar seu carrasco. Para perdoar e pedir perdão.

Portanto, que o leitor não se deixe levar pela classificação do livro como romance. É pura autobiografia. “Minha alma está neste livro e estou nu em cima de uma montanha de madeira prestes a ser acesa”, brinca. “Mas vou aguentar o tranco”, completa, sobre o fato de ter contado, sem autocensura, uma história privada tão dolorida. Por outro lado, se olharmos para o sentido lato da ficção, ele diz, então esta é uma obra de ficção. Afinal, ele criou um pai.

O título remete a trecho do evangelho de Mateus – “Pai, pai, por que me abandonaste” –, lido muitas vezes nos 10 anos em que frequentou o seminário. Sim, para fugir do ambiente hostil de Ribeirão Bonito e da pá de madeira usada pelo pai para tirar o pão do forno e também para bater no filho e na mulher, a única saída para João, àquela altura com menos de 10 anos, era o seminário.

Enquanto busca as origens da raiva paterna – criança, ele não entendia, mas mais velho chegou a pensar que sua homossexualidade era o motivo de tanto desgosto para aquele homem simples, de família italiana, que por mais de 30 anos “tentou se matar bebendo” – Trevisan vai nos contando sobre sua vida. E não poupa o leitor das inúmeras cenas doídas que protagonizou diante de uma singela árvore de Natal, de uma caçulinha de Guaraná cheia de urina ou no leito de morte daquele que o desprezou.

Lemos sobre o trabalho compulsório ao lado do pai na padaria/bar decadente, as idas ao cinema como único momento de leveza, os livros que a mãe lhe comprava a duras penas, a descoberta do corpo, do amor, o seminário, a descoberta da voz, o trabalho com cinema, teatro, a literatura, o exílio, a luta LGBT. Escrevendo esse livro, o autor percebeu que não importa o que fizesse, o fantasma de José Trevisan, vivo ou morto, o acompanhava.

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E escrever não foi fácil. Quanto mais procurava fatos que o ajudassem na tarefa de entender esse pai, mais as feridas se abriam. Mas João Silvério Trevisan não é nenhum inexperiente para mergulhar nesse universo. São anos e anos de análise. E mais de três décadas a frente de uma das mais tradicionais oficinas de escrita criativa do País.

Algo que ele defende em suas aulas é a necessidade de se chegar ao caos interior. Há uma tendência hoje, ele diz, principalmente com jovens escritores e escritoras, de achar que a expressão literária se resume à maneira de escrever. “Ela é importantíssima, mas se não houver uma matéria-prima, é um fiasco. Tenho visto que essa matéria-prima tem sido esquecida e ela é o nosso lixo, o caos interior, aquele caldeirão que está cozinhando o nosso mistério. É aí que buscamos nossa literatura”, diz.

Trevisan conta que passou o tempo todo tentando atender essa sua exigência curricular de mergulhar em seu interior e trazer a tona o seu mistério. “Mesmo que isso doa – e dói.” E diz que não escrevia pura e simplesmente o que aparecia em sua cabeça. “Eu buscava a melhor forma de expressar aquilo o que eu tinha sentido e vivido e aquilo o que estava à sombra disso. Fui trabalhando racionalmente a matéria-prima, aquele cocô que eu ia trazendo lá de dentro. E, com isso, fui entrando num processo alquímico do ponto de vista junguiano, o processo de transformar a merda em ouro, e o ouro, para mim, foi o perdão”, revela.

Com Pai, Pai, ele não se despede José, mas encontra certa paz. “Não quero me despedir desse pai. Não tenho como. Esse pai é meu, ele está dentro de mim. É o pai que eu construí a partir do espermatozoide que ele me deu. Eu tive um encontro com o meu pai em vez de despedida. Eu abracei meu pai. Aprendi a receber o pai que a vida me deu e com isso aprendi a abrir um pouco mais os braços para a vida”, conclui.

PAI, PAIAutor: João Silvério TrevisanEditora: Alfaguara (252 págs.; R$ 44,90; R$ 29,90 o e-book)Lançamento: Hoje, 28, 11h, Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94)

João Silvério Trevisan queria que seu primeiro filme se chamasse Foi Assim Que Matei Meu Pai, mas não conseguiu convencer o coprodutor da Boca do Lixo e ele virou Orgia ou o Homem Que Deu Cria. O enredo continuou o mesmo: após enforcar o pai alcoólatra, o adolescente foge de casa transtornado pela culpa. Trevisan tinha 26. Era 1970.

O autor. Criança assombrada pelo fantasma vivo do pai alcoólatra Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Os anos se passaram com seus altos e baixos e, já perto dos 70, ao tratar uma depressão, ele começou, sem que tivesse programado ou desejado, a escrever sobre seu pai José – uma figura que se revelou infeliz, desesperada, devastada pela solidão. Um pai que nunca disse uma palavra amável ao filho mais velho, que nunca lhe fez um carinho. Muito pelo contrário. O pequeno João cresceu sem entender o desprezo de seu pai, ou por que apanhava tanto e era humilhado incessantemente.

É a resposta às perguntas ‘Quem é esse cara’ e ‘O que tenho a ver com ele’ que João Silvério Trevisan persegue em Pai, Pai, corajoso relato sobre a relação com esse pai ausente e violento, que ele lança agora. O livro inaugura o que o autor está chamando de Trilogia da Dor.

O volume sobre seu irmão, grande amigo e herói Claudio, o único a enfrentar o pai e morto precocemente em decorrência de um câncer linfático, está quase pronto. O título em que ele fala sobre uma ruptura amorosa está travado há mais de 30 anos. Com a nova depressão, a dor fundadora se manifestou e Trevisan revolveu os baús da memória – da irmã, inclusive – não para matar o pai e seguir adiante, conceito caro à psicanálise e que ele aborda na obra, ou para se despedir dele, mas para reencontrar seu carrasco. Para perdoar e pedir perdão.

Portanto, que o leitor não se deixe levar pela classificação do livro como romance. É pura autobiografia. “Minha alma está neste livro e estou nu em cima de uma montanha de madeira prestes a ser acesa”, brinca. “Mas vou aguentar o tranco”, completa, sobre o fato de ter contado, sem autocensura, uma história privada tão dolorida. Por outro lado, se olharmos para o sentido lato da ficção, ele diz, então esta é uma obra de ficção. Afinal, ele criou um pai.

O título remete a trecho do evangelho de Mateus – “Pai, pai, por que me abandonaste” –, lido muitas vezes nos 10 anos em que frequentou o seminário. Sim, para fugir do ambiente hostil de Ribeirão Bonito e da pá de madeira usada pelo pai para tirar o pão do forno e também para bater no filho e na mulher, a única saída para João, àquela altura com menos de 10 anos, era o seminário.

Enquanto busca as origens da raiva paterna – criança, ele não entendia, mas mais velho chegou a pensar que sua homossexualidade era o motivo de tanto desgosto para aquele homem simples, de família italiana, que por mais de 30 anos “tentou se matar bebendo” – Trevisan vai nos contando sobre sua vida. E não poupa o leitor das inúmeras cenas doídas que protagonizou diante de uma singela árvore de Natal, de uma caçulinha de Guaraná cheia de urina ou no leito de morte daquele que o desprezou.

Lemos sobre o trabalho compulsório ao lado do pai na padaria/bar decadente, as idas ao cinema como único momento de leveza, os livros que a mãe lhe comprava a duras penas, a descoberta do corpo, do amor, o seminário, a descoberta da voz, o trabalho com cinema, teatro, a literatura, o exílio, a luta LGBT. Escrevendo esse livro, o autor percebeu que não importa o que fizesse, o fantasma de José Trevisan, vivo ou morto, o acompanhava.

Na ditadura, gays eram rejeitados pela direita e pela esquerda, afirma escritor e ativista gay

E escrever não foi fácil. Quanto mais procurava fatos que o ajudassem na tarefa de entender esse pai, mais as feridas se abriam. Mas João Silvério Trevisan não é nenhum inexperiente para mergulhar nesse universo. São anos e anos de análise. E mais de três décadas a frente de uma das mais tradicionais oficinas de escrita criativa do País.

Algo que ele defende em suas aulas é a necessidade de se chegar ao caos interior. Há uma tendência hoje, ele diz, principalmente com jovens escritores e escritoras, de achar que a expressão literária se resume à maneira de escrever. “Ela é importantíssima, mas se não houver uma matéria-prima, é um fiasco. Tenho visto que essa matéria-prima tem sido esquecida e ela é o nosso lixo, o caos interior, aquele caldeirão que está cozinhando o nosso mistério. É aí que buscamos nossa literatura”, diz.

Trevisan conta que passou o tempo todo tentando atender essa sua exigência curricular de mergulhar em seu interior e trazer a tona o seu mistério. “Mesmo que isso doa – e dói.” E diz que não escrevia pura e simplesmente o que aparecia em sua cabeça. “Eu buscava a melhor forma de expressar aquilo o que eu tinha sentido e vivido e aquilo o que estava à sombra disso. Fui trabalhando racionalmente a matéria-prima, aquele cocô que eu ia trazendo lá de dentro. E, com isso, fui entrando num processo alquímico do ponto de vista junguiano, o processo de transformar a merda em ouro, e o ouro, para mim, foi o perdão”, revela.

Com Pai, Pai, ele não se despede José, mas encontra certa paz. “Não quero me despedir desse pai. Não tenho como. Esse pai é meu, ele está dentro de mim. É o pai que eu construí a partir do espermatozoide que ele me deu. Eu tive um encontro com o meu pai em vez de despedida. Eu abracei meu pai. Aprendi a receber o pai que a vida me deu e com isso aprendi a abrir um pouco mais os braços para a vida”, conclui.

PAI, PAIAutor: João Silvério TrevisanEditora: Alfaguara (252 págs.; R$ 44,90; R$ 29,90 o e-book)Lançamento: Hoje, 28, 11h, Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94)

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