Laurentino Gomes inicia trilogia sobre a escravidão no Brasil


O jornalista e escritor, autor dos best-sellers '1808', '1822' e '1889', lança nesta sexta-feira, 23, o livro 'Escravidão Vol. 1', projeto triplo que deve ganhar continuação em 2020 e 2021

Por Ubiratan Brasil
Mercado da rua do Valongo, de Jean-Baptiste Debret, 1835 Foto: Biblioteca Pública de Nova York

Foram seis anos de trabalho meticuloso, que incluiu visitas a 12 países na África, Europa e América do Norte, além da leitura de quase 200 livros. Um esforço que faz parte do estilo de Laurentino Gomes, jornalista que se tornou best-seller ao publicar uma trilogia (1808, 1822 e 1889) que mapeou os principais eventos históricos do Brasil no século 19.

Agora, ele inicia outro projeto triplo, que se inicia nesta sexta-feira, 23, com a chegada do livro Escravidão Vol. 1 (Globo Livros). É o ponto de partida de uma viagem que continua no próximo ano, com a publicação do segundo volume, e termina em 2021, quando deverá sair o último tomo.

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Trata-se do mais importante fato histórico do País, no entender de Laurentino. “Não é possível entender o Brasil de hoje e do século 19 apenas mirando a relação com Portugal, do ponto de vista social, burocrático, administrativo, legal”, comenta ele.

“Existe uma dimensão mais profunda do código genético brasileiro que é a raiz africana – claro, tem a origem indígena, mas o Brasil matou um milhão de índios nos três séculos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral. É preciso lembrar que foram importados 5 milhões de cativos africanos. Esse foi o motor da construção do Brasil até o século 19, pois todos os ciclos econômicos (pau-brasil, cana de açúcar, ouro, diamante, tabaco, charqueadas, algodão, café) foram movidos por trabalho cativo. A construção dessa África brasileira é onipresente, pois até em regiões predominadas por colonização europeia, como Santa Catarina, têm hoje repercussão da presença africana.”

De fato, o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental durante quase três séculos e meio: sozinho, o País recebeu quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América em cerca de 35 mil navios negreiros. Por conta disso, é atualmente o segundo país de maior população negra ou de origem africana do mundo.

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“A escravidão é o tema mais importante da história do Brasil”, pontua Laurentino. “Tudo o que já fomos, o que somos e o que seremos se relaciona com nossas raízes africanas, mas também com a forma com que nos relacionamos com essas raízes. A escravidão está presente hoje, seja nas estatísticas (na baixa renda, na dificuldade de moradia, no fato de constituir a maioria na população carcerária, no detalhe de hoje não existir nenhum ministro ou senador negro), mas também na forma de preconceito: nas redes sociais, é possível ver manifestações de racismo como nunca julguei que veria na minha vida.”

O escritor e jornalista Laurentino Gomes Foto: Alex Silva/Estadão

Em um dos capítulos do livro, Laurentino lembra que escravidão não se resume ao período de tráfico de cativos africanos. “Onde houve ser humano, houve escravidão. O uso de mão de obra cativa foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana”, afirma.

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“Começou, aliás, no livro do Gênesis, quando José é vendido pelos irmãos como escravo para o Egito. A escravidão está enfronhada na forma de o homem se relacionar. E nem sempre a cor da pele determinou a condição de escravo: até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era branca. A palavra ‘escravidão’ vem de ‘eslavo’, povo branco, de olhos azuis, do leste da Europa, que eram escravizados aos milhões desde o império romano na bacia do Mediterrâneo.”

O escritor nota, porém, que a escravidão africana é distinta por dois motivos. Primeiro porque antes não se associava escravidão à cor da pele. “A ideologia racista tem um fundo bíblico, novamente no Gênesis, quando Cam, filho de Noé, que riu ao ver o pai dormindo nu, foi amaldiçoado e seus descendentes, como o filho Canaã, foram condenados a serem escravos de seus irmãos. O mito diz que foram enviados à África, onde se tornaram negros e com a condição natural de escravos.”

Segundo porque a escravidão africana aconteceu em escala industrial, quando milhões de cativos vêm para a América executar trabalho forçado. “Devo usar como epígrafe do segundo volume a frase de um fazendeiro do século 19 que dizia que América triturava os negros.”

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Laurentino destaca ainda as distintas formas de se observar a abolição da escravatura, ocorrida em 1888 com a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea. “Esse é o olhar branco, que celebra a vitória da elite contra a barbárie – aquele século 19 foi marcado pelas resoluções humanitárias e havia uma mancha sobre a imagem do Brasil por ser o último país da América a determinar o fim do tráfico negreiro. Para melhorar nossa imagem no mundo civilizado, é promovida a abolição em 1888.”

O escritor lembra que havia vários projetos, discutidos abertamente no parlamento e na imprensa, de branqueamento do Brasil, como se o sangue negro manchasse a forma como a sociedade nacional tinha se constituído. “Sou herdeiro desse projeto: meus bisavós italianos, brancos, católicos, vieram para cá no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo – tentativa de branqueamento do Brasil.”

O primeiro volume da trilogia termina falando de Zumbi dos Palmares, líder quilombola, um dos pioneiros na resistência contra a escravidão, morto em 1695. “Na verdade, ele continua vivo por capitanear uma guerra pelo calendário cívico brasileiro: há o 13 de maio, data da Lei Áurea, e o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data da morte do Zumbi. Um é o olhar branco da vitória contra a barbárie, e a outra é a luta negra contra o escravismo.” / LIZ BATISTA

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‘Estado’ celebrou a abolição na edição do dia 15 de maio de 1888

“Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353, de 13 da Maio de 1888 assim o declara no meio de festas que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da America.” Assim foi comemorada a abolição da escravidão no País na manchete, A Pátria Livre, da edição de 15 maio de 1888 do jornal O Estado de S.Paulo – na época chamado de A Província de São Paulo.

O artigo declarava que a Lei Áurea vinha para completar “o trabalho de destruir e arruir de todo a vergonhosa instituição” do direito de propriedade sobre o homem. Dias antes, quando a lei saiu do Parlamento para ser encaminhada à regente, princesa Isabel, que a promulgou, o jornal já anunciava, no texto Glória à Pátria, de 13 de maio: “Está exticta a escravidão no Brazil”. Naquelas linhas, são evocadas homenagens à luta abolicionista, saudações aos trabalhos de Aureliano Cândido Tavares Bastos, Luiz Gama, Américo Campos, Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e a lembrança dos exemplos das províncias do Ceará e do Amazonas, que aboliram a escravidão em seus territórios quatro anos antes, em 1884.

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O tom da celebração expressa na cobertura pode ser melhor entendido quando nos deparamos com os artigos de Francisco Rangel Pestana, um dos fundadores do jornal. Redator e articulista, Rangel Pestana foi militante abolicionista e signatário do Manifesto Republicano de 1870. Foi sua pena que, em abril de 1884, anunciou aos leitores da Província que a causa da abolição começava “a ser comprehendida como deve em todo o paiz: - é já uma arvore frondosa, cujas raízes vigorosas se estendem por toda a parte e, onde quer que cheguem, encontram alimento nos homens de tempera elevada”, e que declarou, em julho do mesmo ano: “Dentro de poucos annos a escravidão estará extincta. O seculo XX não encontrará escravos no Brazil.”

Para ele, as causas abolicionista e republicana eram indissociáveis. Pensamento refletido em sua atuação política empenhada em tornar a bandeira do fim da escravidão consenso entre os membros do Partido Republicano Paulista. Dizia que “democracia e escravidão são cousas que se repellem” e criticava as “conveniencias de occasião” de políticos que se declaravam republicanos, mas não abolicionistas. Enxergava nos casos do Ceará e do Amazonas uma prova da força de um futuro sistema federativo,“pela abolição a cargo das províncias chegaremos à autonomia politica e à descentralização administrativa sob a fórma – Federação”, escreveu.

Capa do livro 'Escravidão', de Laurentino Gomes Foto: Editora Globo

ESCRAVIDÃO VOLUME 1

Autor: Laurentino GomesEditora: Globo Livros (504 págs., R$ 49,90)Lançamento: Saraiva Shopping Pátio Paulista. R. Treze de Maio, 1.947. 4ª (4/9), 19h

Veja a entrevista de Laurentino Gomes na TV Estadão:

Mercado da rua do Valongo, de Jean-Baptiste Debret, 1835 Foto: Biblioteca Pública de Nova York

Foram seis anos de trabalho meticuloso, que incluiu visitas a 12 países na África, Europa e América do Norte, além da leitura de quase 200 livros. Um esforço que faz parte do estilo de Laurentino Gomes, jornalista que se tornou best-seller ao publicar uma trilogia (1808, 1822 e 1889) que mapeou os principais eventos históricos do Brasil no século 19.

Agora, ele inicia outro projeto triplo, que se inicia nesta sexta-feira, 23, com a chegada do livro Escravidão Vol. 1 (Globo Livros). É o ponto de partida de uma viagem que continua no próximo ano, com a publicação do segundo volume, e termina em 2021, quando deverá sair o último tomo.

Trata-se do mais importante fato histórico do País, no entender de Laurentino. “Não é possível entender o Brasil de hoje e do século 19 apenas mirando a relação com Portugal, do ponto de vista social, burocrático, administrativo, legal”, comenta ele.

“Existe uma dimensão mais profunda do código genético brasileiro que é a raiz africana – claro, tem a origem indígena, mas o Brasil matou um milhão de índios nos três séculos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral. É preciso lembrar que foram importados 5 milhões de cativos africanos. Esse foi o motor da construção do Brasil até o século 19, pois todos os ciclos econômicos (pau-brasil, cana de açúcar, ouro, diamante, tabaco, charqueadas, algodão, café) foram movidos por trabalho cativo. A construção dessa África brasileira é onipresente, pois até em regiões predominadas por colonização europeia, como Santa Catarina, têm hoje repercussão da presença africana.”

De fato, o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental durante quase três séculos e meio: sozinho, o País recebeu quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América em cerca de 35 mil navios negreiros. Por conta disso, é atualmente o segundo país de maior população negra ou de origem africana do mundo.

“A escravidão é o tema mais importante da história do Brasil”, pontua Laurentino. “Tudo o que já fomos, o que somos e o que seremos se relaciona com nossas raízes africanas, mas também com a forma com que nos relacionamos com essas raízes. A escravidão está presente hoje, seja nas estatísticas (na baixa renda, na dificuldade de moradia, no fato de constituir a maioria na população carcerária, no detalhe de hoje não existir nenhum ministro ou senador negro), mas também na forma de preconceito: nas redes sociais, é possível ver manifestações de racismo como nunca julguei que veria na minha vida.”

O escritor e jornalista Laurentino Gomes Foto: Alex Silva/Estadão

Em um dos capítulos do livro, Laurentino lembra que escravidão não se resume ao período de tráfico de cativos africanos. “Onde houve ser humano, houve escravidão. O uso de mão de obra cativa foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana”, afirma.

“Começou, aliás, no livro do Gênesis, quando José é vendido pelos irmãos como escravo para o Egito. A escravidão está enfronhada na forma de o homem se relacionar. E nem sempre a cor da pele determinou a condição de escravo: até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era branca. A palavra ‘escravidão’ vem de ‘eslavo’, povo branco, de olhos azuis, do leste da Europa, que eram escravizados aos milhões desde o império romano na bacia do Mediterrâneo.”

O escritor nota, porém, que a escravidão africana é distinta por dois motivos. Primeiro porque antes não se associava escravidão à cor da pele. “A ideologia racista tem um fundo bíblico, novamente no Gênesis, quando Cam, filho de Noé, que riu ao ver o pai dormindo nu, foi amaldiçoado e seus descendentes, como o filho Canaã, foram condenados a serem escravos de seus irmãos. O mito diz que foram enviados à África, onde se tornaram negros e com a condição natural de escravos.”

Segundo porque a escravidão africana aconteceu em escala industrial, quando milhões de cativos vêm para a América executar trabalho forçado. “Devo usar como epígrafe do segundo volume a frase de um fazendeiro do século 19 que dizia que América triturava os negros.”

Laurentino destaca ainda as distintas formas de se observar a abolição da escravatura, ocorrida em 1888 com a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea. “Esse é o olhar branco, que celebra a vitória da elite contra a barbárie – aquele século 19 foi marcado pelas resoluções humanitárias e havia uma mancha sobre a imagem do Brasil por ser o último país da América a determinar o fim do tráfico negreiro. Para melhorar nossa imagem no mundo civilizado, é promovida a abolição em 1888.”

O escritor lembra que havia vários projetos, discutidos abertamente no parlamento e na imprensa, de branqueamento do Brasil, como se o sangue negro manchasse a forma como a sociedade nacional tinha se constituído. “Sou herdeiro desse projeto: meus bisavós italianos, brancos, católicos, vieram para cá no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo – tentativa de branqueamento do Brasil.”

O primeiro volume da trilogia termina falando de Zumbi dos Palmares, líder quilombola, um dos pioneiros na resistência contra a escravidão, morto em 1695. “Na verdade, ele continua vivo por capitanear uma guerra pelo calendário cívico brasileiro: há o 13 de maio, data da Lei Áurea, e o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data da morte do Zumbi. Um é o olhar branco da vitória contra a barbárie, e a outra é a luta negra contra o escravismo.” / LIZ BATISTA

‘Estado’ celebrou a abolição na edição do dia 15 de maio de 1888

“Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353, de 13 da Maio de 1888 assim o declara no meio de festas que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da America.” Assim foi comemorada a abolição da escravidão no País na manchete, A Pátria Livre, da edição de 15 maio de 1888 do jornal O Estado de S.Paulo – na época chamado de A Província de São Paulo.

O artigo declarava que a Lei Áurea vinha para completar “o trabalho de destruir e arruir de todo a vergonhosa instituição” do direito de propriedade sobre o homem. Dias antes, quando a lei saiu do Parlamento para ser encaminhada à regente, princesa Isabel, que a promulgou, o jornal já anunciava, no texto Glória à Pátria, de 13 de maio: “Está exticta a escravidão no Brazil”. Naquelas linhas, são evocadas homenagens à luta abolicionista, saudações aos trabalhos de Aureliano Cândido Tavares Bastos, Luiz Gama, Américo Campos, Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e a lembrança dos exemplos das províncias do Ceará e do Amazonas, que aboliram a escravidão em seus territórios quatro anos antes, em 1884.

O tom da celebração expressa na cobertura pode ser melhor entendido quando nos deparamos com os artigos de Francisco Rangel Pestana, um dos fundadores do jornal. Redator e articulista, Rangel Pestana foi militante abolicionista e signatário do Manifesto Republicano de 1870. Foi sua pena que, em abril de 1884, anunciou aos leitores da Província que a causa da abolição começava “a ser comprehendida como deve em todo o paiz: - é já uma arvore frondosa, cujas raízes vigorosas se estendem por toda a parte e, onde quer que cheguem, encontram alimento nos homens de tempera elevada”, e que declarou, em julho do mesmo ano: “Dentro de poucos annos a escravidão estará extincta. O seculo XX não encontrará escravos no Brazil.”

Para ele, as causas abolicionista e republicana eram indissociáveis. Pensamento refletido em sua atuação política empenhada em tornar a bandeira do fim da escravidão consenso entre os membros do Partido Republicano Paulista. Dizia que “democracia e escravidão são cousas que se repellem” e criticava as “conveniencias de occasião” de políticos que se declaravam republicanos, mas não abolicionistas. Enxergava nos casos do Ceará e do Amazonas uma prova da força de um futuro sistema federativo,“pela abolição a cargo das províncias chegaremos à autonomia politica e à descentralização administrativa sob a fórma – Federação”, escreveu.

Capa do livro 'Escravidão', de Laurentino Gomes Foto: Editora Globo

ESCRAVIDÃO VOLUME 1

Autor: Laurentino GomesEditora: Globo Livros (504 págs., R$ 49,90)Lançamento: Saraiva Shopping Pátio Paulista. R. Treze de Maio, 1.947. 4ª (4/9), 19h

Veja a entrevista de Laurentino Gomes na TV Estadão:

Mercado da rua do Valongo, de Jean-Baptiste Debret, 1835 Foto: Biblioteca Pública de Nova York

Foram seis anos de trabalho meticuloso, que incluiu visitas a 12 países na África, Europa e América do Norte, além da leitura de quase 200 livros. Um esforço que faz parte do estilo de Laurentino Gomes, jornalista que se tornou best-seller ao publicar uma trilogia (1808, 1822 e 1889) que mapeou os principais eventos históricos do Brasil no século 19.

Agora, ele inicia outro projeto triplo, que se inicia nesta sexta-feira, 23, com a chegada do livro Escravidão Vol. 1 (Globo Livros). É o ponto de partida de uma viagem que continua no próximo ano, com a publicação do segundo volume, e termina em 2021, quando deverá sair o último tomo.

Trata-se do mais importante fato histórico do País, no entender de Laurentino. “Não é possível entender o Brasil de hoje e do século 19 apenas mirando a relação com Portugal, do ponto de vista social, burocrático, administrativo, legal”, comenta ele.

“Existe uma dimensão mais profunda do código genético brasileiro que é a raiz africana – claro, tem a origem indígena, mas o Brasil matou um milhão de índios nos três séculos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral. É preciso lembrar que foram importados 5 milhões de cativos africanos. Esse foi o motor da construção do Brasil até o século 19, pois todos os ciclos econômicos (pau-brasil, cana de açúcar, ouro, diamante, tabaco, charqueadas, algodão, café) foram movidos por trabalho cativo. A construção dessa África brasileira é onipresente, pois até em regiões predominadas por colonização europeia, como Santa Catarina, têm hoje repercussão da presença africana.”

De fato, o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental durante quase três séculos e meio: sozinho, o País recebeu quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América em cerca de 35 mil navios negreiros. Por conta disso, é atualmente o segundo país de maior população negra ou de origem africana do mundo.

“A escravidão é o tema mais importante da história do Brasil”, pontua Laurentino. “Tudo o que já fomos, o que somos e o que seremos se relaciona com nossas raízes africanas, mas também com a forma com que nos relacionamos com essas raízes. A escravidão está presente hoje, seja nas estatísticas (na baixa renda, na dificuldade de moradia, no fato de constituir a maioria na população carcerária, no detalhe de hoje não existir nenhum ministro ou senador negro), mas também na forma de preconceito: nas redes sociais, é possível ver manifestações de racismo como nunca julguei que veria na minha vida.”

O escritor e jornalista Laurentino Gomes Foto: Alex Silva/Estadão

Em um dos capítulos do livro, Laurentino lembra que escravidão não se resume ao período de tráfico de cativos africanos. “Onde houve ser humano, houve escravidão. O uso de mão de obra cativa foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana”, afirma.

“Começou, aliás, no livro do Gênesis, quando José é vendido pelos irmãos como escravo para o Egito. A escravidão está enfronhada na forma de o homem se relacionar. E nem sempre a cor da pele determinou a condição de escravo: até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era branca. A palavra ‘escravidão’ vem de ‘eslavo’, povo branco, de olhos azuis, do leste da Europa, que eram escravizados aos milhões desde o império romano na bacia do Mediterrâneo.”

O escritor nota, porém, que a escravidão africana é distinta por dois motivos. Primeiro porque antes não se associava escravidão à cor da pele. “A ideologia racista tem um fundo bíblico, novamente no Gênesis, quando Cam, filho de Noé, que riu ao ver o pai dormindo nu, foi amaldiçoado e seus descendentes, como o filho Canaã, foram condenados a serem escravos de seus irmãos. O mito diz que foram enviados à África, onde se tornaram negros e com a condição natural de escravos.”

Segundo porque a escravidão africana aconteceu em escala industrial, quando milhões de cativos vêm para a América executar trabalho forçado. “Devo usar como epígrafe do segundo volume a frase de um fazendeiro do século 19 que dizia que América triturava os negros.”

Laurentino destaca ainda as distintas formas de se observar a abolição da escravatura, ocorrida em 1888 com a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea. “Esse é o olhar branco, que celebra a vitória da elite contra a barbárie – aquele século 19 foi marcado pelas resoluções humanitárias e havia uma mancha sobre a imagem do Brasil por ser o último país da América a determinar o fim do tráfico negreiro. Para melhorar nossa imagem no mundo civilizado, é promovida a abolição em 1888.”

O escritor lembra que havia vários projetos, discutidos abertamente no parlamento e na imprensa, de branqueamento do Brasil, como se o sangue negro manchasse a forma como a sociedade nacional tinha se constituído. “Sou herdeiro desse projeto: meus bisavós italianos, brancos, católicos, vieram para cá no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo – tentativa de branqueamento do Brasil.”

O primeiro volume da trilogia termina falando de Zumbi dos Palmares, líder quilombola, um dos pioneiros na resistência contra a escravidão, morto em 1695. “Na verdade, ele continua vivo por capitanear uma guerra pelo calendário cívico brasileiro: há o 13 de maio, data da Lei Áurea, e o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data da morte do Zumbi. Um é o olhar branco da vitória contra a barbárie, e a outra é a luta negra contra o escravismo.” / LIZ BATISTA

‘Estado’ celebrou a abolição na edição do dia 15 de maio de 1888

“Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353, de 13 da Maio de 1888 assim o declara no meio de festas que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da America.” Assim foi comemorada a abolição da escravidão no País na manchete, A Pátria Livre, da edição de 15 maio de 1888 do jornal O Estado de S.Paulo – na época chamado de A Província de São Paulo.

O artigo declarava que a Lei Áurea vinha para completar “o trabalho de destruir e arruir de todo a vergonhosa instituição” do direito de propriedade sobre o homem. Dias antes, quando a lei saiu do Parlamento para ser encaminhada à regente, princesa Isabel, que a promulgou, o jornal já anunciava, no texto Glória à Pátria, de 13 de maio: “Está exticta a escravidão no Brazil”. Naquelas linhas, são evocadas homenagens à luta abolicionista, saudações aos trabalhos de Aureliano Cândido Tavares Bastos, Luiz Gama, Américo Campos, Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e a lembrança dos exemplos das províncias do Ceará e do Amazonas, que aboliram a escravidão em seus territórios quatro anos antes, em 1884.

O tom da celebração expressa na cobertura pode ser melhor entendido quando nos deparamos com os artigos de Francisco Rangel Pestana, um dos fundadores do jornal. Redator e articulista, Rangel Pestana foi militante abolicionista e signatário do Manifesto Republicano de 1870. Foi sua pena que, em abril de 1884, anunciou aos leitores da Província que a causa da abolição começava “a ser comprehendida como deve em todo o paiz: - é já uma arvore frondosa, cujas raízes vigorosas se estendem por toda a parte e, onde quer que cheguem, encontram alimento nos homens de tempera elevada”, e que declarou, em julho do mesmo ano: “Dentro de poucos annos a escravidão estará extincta. O seculo XX não encontrará escravos no Brazil.”

Para ele, as causas abolicionista e republicana eram indissociáveis. Pensamento refletido em sua atuação política empenhada em tornar a bandeira do fim da escravidão consenso entre os membros do Partido Republicano Paulista. Dizia que “democracia e escravidão são cousas que se repellem” e criticava as “conveniencias de occasião” de políticos que se declaravam republicanos, mas não abolicionistas. Enxergava nos casos do Ceará e do Amazonas uma prova da força de um futuro sistema federativo,“pela abolição a cargo das províncias chegaremos à autonomia politica e à descentralização administrativa sob a fórma – Federação”, escreveu.

Capa do livro 'Escravidão', de Laurentino Gomes Foto: Editora Globo

ESCRAVIDÃO VOLUME 1

Autor: Laurentino GomesEditora: Globo Livros (504 págs., R$ 49,90)Lançamento: Saraiva Shopping Pátio Paulista. R. Treze de Maio, 1.947. 4ª (4/9), 19h

Veja a entrevista de Laurentino Gomes na TV Estadão:

Mercado da rua do Valongo, de Jean-Baptiste Debret, 1835 Foto: Biblioteca Pública de Nova York

Foram seis anos de trabalho meticuloso, que incluiu visitas a 12 países na África, Europa e América do Norte, além da leitura de quase 200 livros. Um esforço que faz parte do estilo de Laurentino Gomes, jornalista que se tornou best-seller ao publicar uma trilogia (1808, 1822 e 1889) que mapeou os principais eventos históricos do Brasil no século 19.

Agora, ele inicia outro projeto triplo, que se inicia nesta sexta-feira, 23, com a chegada do livro Escravidão Vol. 1 (Globo Livros). É o ponto de partida de uma viagem que continua no próximo ano, com a publicação do segundo volume, e termina em 2021, quando deverá sair o último tomo.

Trata-se do mais importante fato histórico do País, no entender de Laurentino. “Não é possível entender o Brasil de hoje e do século 19 apenas mirando a relação com Portugal, do ponto de vista social, burocrático, administrativo, legal”, comenta ele.

“Existe uma dimensão mais profunda do código genético brasileiro que é a raiz africana – claro, tem a origem indígena, mas o Brasil matou um milhão de índios nos três séculos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral. É preciso lembrar que foram importados 5 milhões de cativos africanos. Esse foi o motor da construção do Brasil até o século 19, pois todos os ciclos econômicos (pau-brasil, cana de açúcar, ouro, diamante, tabaco, charqueadas, algodão, café) foram movidos por trabalho cativo. A construção dessa África brasileira é onipresente, pois até em regiões predominadas por colonização europeia, como Santa Catarina, têm hoje repercussão da presença africana.”

De fato, o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental durante quase três séculos e meio: sozinho, o País recebeu quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América em cerca de 35 mil navios negreiros. Por conta disso, é atualmente o segundo país de maior população negra ou de origem africana do mundo.

“A escravidão é o tema mais importante da história do Brasil”, pontua Laurentino. “Tudo o que já fomos, o que somos e o que seremos se relaciona com nossas raízes africanas, mas também com a forma com que nos relacionamos com essas raízes. A escravidão está presente hoje, seja nas estatísticas (na baixa renda, na dificuldade de moradia, no fato de constituir a maioria na população carcerária, no detalhe de hoje não existir nenhum ministro ou senador negro), mas também na forma de preconceito: nas redes sociais, é possível ver manifestações de racismo como nunca julguei que veria na minha vida.”

O escritor e jornalista Laurentino Gomes Foto: Alex Silva/Estadão

Em um dos capítulos do livro, Laurentino lembra que escravidão não se resume ao período de tráfico de cativos africanos. “Onde houve ser humano, houve escravidão. O uso de mão de obra cativa foi o alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana”, afirma.

“Começou, aliás, no livro do Gênesis, quando José é vendido pelos irmãos como escravo para o Egito. A escravidão está enfronhada na forma de o homem se relacionar. E nem sempre a cor da pele determinou a condição de escravo: até o final do século 17, a maioria dos escravos no mundo era branca. A palavra ‘escravidão’ vem de ‘eslavo’, povo branco, de olhos azuis, do leste da Europa, que eram escravizados aos milhões desde o império romano na bacia do Mediterrâneo.”

O escritor nota, porém, que a escravidão africana é distinta por dois motivos. Primeiro porque antes não se associava escravidão à cor da pele. “A ideologia racista tem um fundo bíblico, novamente no Gênesis, quando Cam, filho de Noé, que riu ao ver o pai dormindo nu, foi amaldiçoado e seus descendentes, como o filho Canaã, foram condenados a serem escravos de seus irmãos. O mito diz que foram enviados à África, onde se tornaram negros e com a condição natural de escravos.”

Segundo porque a escravidão africana aconteceu em escala industrial, quando milhões de cativos vêm para a América executar trabalho forçado. “Devo usar como epígrafe do segundo volume a frase de um fazendeiro do século 19 que dizia que América triturava os negros.”

Laurentino destaca ainda as distintas formas de se observar a abolição da escravatura, ocorrida em 1888 com a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea. “Esse é o olhar branco, que celebra a vitória da elite contra a barbárie – aquele século 19 foi marcado pelas resoluções humanitárias e havia uma mancha sobre a imagem do Brasil por ser o último país da América a determinar o fim do tráfico negreiro. Para melhorar nossa imagem no mundo civilizado, é promovida a abolição em 1888.”

O escritor lembra que havia vários projetos, discutidos abertamente no parlamento e na imprensa, de branqueamento do Brasil, como se o sangue negro manchasse a forma como a sociedade nacional tinha se constituído. “Sou herdeiro desse projeto: meus bisavós italianos, brancos, católicos, vieram para cá no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo – tentativa de branqueamento do Brasil.”

O primeiro volume da trilogia termina falando de Zumbi dos Palmares, líder quilombola, um dos pioneiros na resistência contra a escravidão, morto em 1695. “Na verdade, ele continua vivo por capitanear uma guerra pelo calendário cívico brasileiro: há o 13 de maio, data da Lei Áurea, e o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data da morte do Zumbi. Um é o olhar branco da vitória contra a barbárie, e a outra é a luta negra contra o escravismo.” / LIZ BATISTA

‘Estado’ celebrou a abolição na edição do dia 15 de maio de 1888

“Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353, de 13 da Maio de 1888 assim o declara no meio de festas que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da America.” Assim foi comemorada a abolição da escravidão no País na manchete, A Pátria Livre, da edição de 15 maio de 1888 do jornal O Estado de S.Paulo – na época chamado de A Província de São Paulo.

O artigo declarava que a Lei Áurea vinha para completar “o trabalho de destruir e arruir de todo a vergonhosa instituição” do direito de propriedade sobre o homem. Dias antes, quando a lei saiu do Parlamento para ser encaminhada à regente, princesa Isabel, que a promulgou, o jornal já anunciava, no texto Glória à Pátria, de 13 de maio: “Está exticta a escravidão no Brazil”. Naquelas linhas, são evocadas homenagens à luta abolicionista, saudações aos trabalhos de Aureliano Cândido Tavares Bastos, Luiz Gama, Américo Campos, Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e a lembrança dos exemplos das províncias do Ceará e do Amazonas, que aboliram a escravidão em seus territórios quatro anos antes, em 1884.

O tom da celebração expressa na cobertura pode ser melhor entendido quando nos deparamos com os artigos de Francisco Rangel Pestana, um dos fundadores do jornal. Redator e articulista, Rangel Pestana foi militante abolicionista e signatário do Manifesto Republicano de 1870. Foi sua pena que, em abril de 1884, anunciou aos leitores da Província que a causa da abolição começava “a ser comprehendida como deve em todo o paiz: - é já uma arvore frondosa, cujas raízes vigorosas se estendem por toda a parte e, onde quer que cheguem, encontram alimento nos homens de tempera elevada”, e que declarou, em julho do mesmo ano: “Dentro de poucos annos a escravidão estará extincta. O seculo XX não encontrará escravos no Brazil.”

Para ele, as causas abolicionista e republicana eram indissociáveis. Pensamento refletido em sua atuação política empenhada em tornar a bandeira do fim da escravidão consenso entre os membros do Partido Republicano Paulista. Dizia que “democracia e escravidão são cousas que se repellem” e criticava as “conveniencias de occasião” de políticos que se declaravam republicanos, mas não abolicionistas. Enxergava nos casos do Ceará e do Amazonas uma prova da força de um futuro sistema federativo,“pela abolição a cargo das províncias chegaremos à autonomia politica e à descentralização administrativa sob a fórma – Federação”, escreveu.

Capa do livro 'Escravidão', de Laurentino Gomes Foto: Editora Globo

ESCRAVIDÃO VOLUME 1

Autor: Laurentino GomesEditora: Globo Livros (504 págs., R$ 49,90)Lançamento: Saraiva Shopping Pátio Paulista. R. Treze de Maio, 1.947. 4ª (4/9), 19h

Veja a entrevista de Laurentino Gomes na TV Estadão:

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