À Sombra do Meu Irmão é um livro pequeno, mas imenso. Lá estão concentradas, aos jorros, todas as incômodas perguntas que os alemães deveriam fazer a respeito do comportamento de seu país durante e depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente em relação ao genocídio dos judeus. São raros, na literatura e na historiografia produzidas pelos alemães acerca dessa passagem trágica da história da Alemanha e do mundo, momentos de reflexão e contrição como este produzido por Uwe Timm, escritor de sucesso em seu país. Sem floreios, o autor expõe ao escrutínio público a sua própria família - especialmente o pai e o irmão, que vestiram uniforme e estiveram na frente de batalha -, talvez na esperança de aceitar por eles algo que aquela geração simplesmente recusou: a responsabilidade pelos crimes do Terceiro Reich.
A discussão sobre a responsabilidade coletiva, especialmente no caso do Holocausto, não é simples. No livro The Question of German Guilt, em que tratou da culpa alemã naquele período, o filósofo Karl Jaspers deixa claro que a responsabilidade criminal só pode ser imputada àqueles que tiveram participação direta nas atrocidades, quer como executores, quer como colaboradores diretos e indiretos. No entanto, Jaspers diz que “ninguém é totalmente isento de culpa”, pois “todos são corresponsáveis pelo modo como se é governado”. É a chamada responsabilidade política, que toda a nação alemã é obrigada a dividir, pois aceitou, sem protestos significativos, a destruição dos pilares da civilização em seu país sob o regime nazista. Mas Jaspers chama a atenção para o fato de que tanto a responsabilidade criminal quanto a política têm uma única e mesma raiz: a falência moral.
referenceÉ dessa falência que trata o duro relato de Timm. Seu objeto são as memórias do irmão mais velho, soldado da Waffen-SS morto em combate na Ucrânia, em 1943. Sem nenhuma preocupação cronológica, o autor utiliza os fragmentos de um diário que o irmão escreveu no front e as cartas que ele enviou à família naquela época para tentar reconstituir o momento da ruptura, o instante em que toda uma nação - com raras exceções - omitiu-se diante do genocídio ou o aceitou como uma necessidade nacional.
É comovente a busca que Timm faz, nos rastros deixados pelo irmão, de pistas sobre sua eventual participação no Holocausto. A cada linha deixada para trás, sente-se o alívio do autor, pois nada há ali que o vincule objetivamente aos terríveis crimes do nazismo, mas em seguida multiplicam-se as dúvidas, que culminam na última linha do diário, quando o irmão escreve: “Aqui encerro meu diário, pois considero sem sentido escrever sobre as coisas tão horríveis que acontecem às vezes”.
Mesmo sem mais detalhes, Timm sabe do que o irmão está falando. A frente oriental foi a confirmação de que a degradação humana não tem um limite. O irmão participou disso - e não queria “escrever sobre coisas tão horríveis que acontecem às vezes” porque isso seria o mesmo que refletir sobre a sua própria responsabilidade em relação aos crimes que seu país estava cometendo. As palavras são como túmulos que guardam a memória e, por conseguinte, a consciência. Evitá-las é uma forma de deixar no esquecimento as “coisas tão horríveis” - e foi essa a opção de todo um país. “Esse silêncio mortal era mais terrível do que os discursos prolixos daqueles que tentavam se desculpar alegando não saber de nada”, escreve Timm.
O escritor, em sua dolorosa investigação, disse que resolveu expor as entranhas familiares porque não se conformou com a tentativa do pai “de se esquivar da própria culpa”, ao repetir que ele e os outros apenas cumpriam “ordens”. Para Timm, faltou ao pai e aos demais de sua geração - a “geração dos criminosos”, como o autor acentua - a “coragem de dizer não”.
À SOMBRA DO MEU IRMÃOAutor: Uwe Timm Trad.: Willian Radünz Editora: Dublinense (160 págs., R$ 34,90)Confira trechos da obra:
"21 Março Donetsk Cabeça de ponte sobre o Rio Donets. A 75m Ivã fuma cigarro, um banquete para a minha MG. Essa foi a parte em que eu, quando a li pela primeira vez — e ela saltou em meus olhos no canto superior esquerdo da página —, não consegui continuar a leitura. Fechei o caderno. E foi somente com a decisão de escrever sobre meu irmão, e também sobre mim, para libertar a lembrança, que me senti livre para rever o que ele havia escrito. Um banquete para a minha MG: um soldado russo, talvez da sua idade. Um jovem, que acabara de acender um cigarro — dando a primeira tragada, expirando, sentindo o prazer da fumaça que sobe do cigarro aceso, antes da próxima tragada. No que ele estava pensando? Nos reforços, que logo deveriam chegar? No chá, num pouco de pão, na namorada, na mãe, no pai? Uma nuvenzinha de fumaça que se desfazia nessa paisagem impregnada de umidade, resquícios de neve, gelo derretido acumulado nas trincheiras e o suave verde dos campos. No que ele teria pensado naquele momento, o russo, o Ivã? Um banquete para a minha MG."
(...)
"Quando perguntada sobre o motivo que levou meu irmão a se alistar na SS, minha mãe dava algumas explicações óbvias. Por idealismo. Ele não queria ficar para trás. Não queria fugir do compromisso. Ela, assim como o pai, fazia uma clara distinção entre a SS e a Waffen-SS. Depois que a guerra acabou e imagens terríveis vieram à tona com a libertação dos campos de concentração, soube-se o que tinha acontecido. Gente asquerosa, diziam, criminosos. O menino estava, contudo, na Waffen-SS. A SS era uma tropa militar normal. Os criminosos eram os outros, a SD, o Serviço de Segurança. As Forças-Tarefa. Principalmente os de cima, as chefias. Fizeram mau uso do idealismo de um jovem. Primeiro, foi um integrante mirim. Depois, fez parte da Juventude Hitlerista. Marchas, jogos, hinos, uniformes com galões. Havia crianças que denunciavam seus pais. Mas o seu irmão, ao contrário de você, nunca gostou de brincar com soldados, minha mãe dizia. Eu era contra Karl-Heinz se alistar na SS, ela dizia. E o meu pai?"
(...)
"Ao que parece, ele era uma criança pálida, absolutamente transparente, até. E assim, ele podia desaparecer e repentinamente aparecer de novo, sentando-se à mesa como se nada tivesse acontecido. Quando perguntavam sobre onde estivera, ele apenas dizia: debaixo da terra. O que não era totalmente falso. Seu comportamento era estranho, mas a mãe não perguntava mais, não o espionava e não contava nada para nosso pai. Ele era uma criança um tanto tímida, minha mãe dizia. Ele não mentia. Era educado. E, sobretudo, era valente desde criança, segundo meu pai. O menino valente. Era assim que o chamavam, também os parentes distantes. Eram determinações em forma de palavras, e também devem ter soado dessa forma para ele. As anotações no seu diário iniciam-se na primavera de 1943, no dia 14 de fevereiro, e terminam no dia 6 de agosto do mesmo ano, seis semanas antes de seu ferimento e dez semanas antes de sua morte. Nenhum dia é omitido. Até que, subitamente, o diário é interrompido. Por quê? O que aconteceu no dia 7 de agosto? Depois disso, há somente uma inscrição não datada, sobre a qual falarei mais adiante."