A insurreição fracassou. O sistema ficou de pé – pelo menos por um tempo. Em novembro de 1923, quando um jovem demagogo chamado Adolf Hitler tentou iniciar uma revolução nazista numa cervejaria de Munique, sua tentativa de golpe foi tão desorganizada que logo degenerou em confusão. Tempos depois, um dos participantes testemunhou que a operação era tão farsesca que ele sussurrara para os outros: “Vamos embarcar nesta comédia”.
Em vez de tomar o poder, Hitler deslocou o ombro e passou um breve período na prisão. Mas, em Germany 1923, o historiador Volker Ullrich nos lembra que os acontecimentos atrapalhados do chamado Putsch da Cervejaria “foram eminentemente graves”.
Uma década mais tarde, Hitler seria nomeado chanceler da Alemanha e a República de Weimar – a primeira experiência de democracia no país – chegaria ao fim. Em novembro de 1933, uma reportagem do New York Times descreveu a comemoração dos nazistas: “Os líderes regozijam-se em Munique com a ressurreição do movimento ‘morto’ dez anos atrás na mesma cidade”.
Uma estabilidade temporária que culmina em hiperinflação
Ullrich é autor de uma excelente biografia de Hitler em dois volumes. Em Eight Days in May (2021), ele escreveu sobre a semana entre o suicídio de Hitler e a rendição incondicional da Alemanha.
Germany 1923, traduzido para um inglês impecável por Jefferson Chase, narra um “ano fundamental” que começou em crise e terminou, contra todas as probabilidades, com uma certa estabilidade. Como afirma o historiador Mark William Jones em 1923, outro livro sobre o centenário publicado neste verão, 100 anos atrás, “a democracia venceu”.
Foi um ano que começou em maus presságios, com a França e a Bélgica marchando para o vale industrial do Ruhr, na Alemanha, depois de a Alemanha não ter cumprido o pagamento das reparações pela Primeira Guerra Mundial. A ocupação provocou um momento de harmonia entre a esquerda e a direita, com um industrial comentando: “As pessoas estão começando a se unir em sofrimento e ódio comuns”.
Mas essa “onda de solidariedade alemã” durou pouco. O chanceler da Alemanha na época respondeu à ocupação com uma política de “resistência passiva”, encorajando os alemães no Vale do Ruhr a não trabalharem e imprimindo cada vez mais dinheiro para pagar seus salários quando as empresas fecharam as portas.
A Alemanha já tinha imprimido dinheiro para financiar a guerra mundial que não conseguira vencer. Mas foi em 1923 que a hiperinflação pareceu ganhar vida própria. Ullrich cita diretamente diários pessoais para transmitir a experiência desconcertante de os preços subirem não a cada dia, mas a cada hora.
Uma mistura de efeitos psicológicos e ressentimentos
“A questão monetária está se tornando cada vez mais obscura e impenetrável”, escreveu o filólogo Victor Klemperer em fevereiro de 1923, mês em que a taxa de câmbio atingiu surpreendentes 42.240 marcos por dólar. Em junho, o valor quase triplicou para 114.250. A cada zero adicional, uma barreira psicológica se rompia. “De repente, o marco despencou”, recordaria mais tarde o escritor Stefan Zweig, “nunca parando até atingir os números fantásticos da loucura, os milhões, os bilhões e os trilhões”.
Ullrich mostra que os efeitos psicológicos e políticos da hiperinflação foram profundos. A realidade parecia estar desmoronando. O sofrimento se aprofundou, junto com a desigualdade. Os industriais e as pessoas com acesso a moeda estrangeira enriqueceram, enquanto setores da classe média tiveram de trocar heranças familiares por alimentos. Os alemães se voltaram uns contra os outros.
Teorias da conspiração proliferaram. Os alvos foram estrangeiros e judeus. Os idosos que tinham de viver com aposentadorias que não valiam mais nada se ressentiam dos jovens; os jovens se ressentiam dos idosos porque eles possuíam casas compradas quando o valor do dinheiro permanecia estável por tempo suficiente para que fosse possível poupar alguma coisa.
No nível federal, o establishment político tinha dificuldade para manter o país unido. Movimentos radicais nos vários estados alemães ganhavam força. O político ultranacionalista Gustav Ritter von Kahr assumiu poderes ditatoriais na Baviera, perseguindo a esquerda e expulsando famílias judias de Munique.
Enquanto isso, os soviéticos esperavam que os governos de esquerda na Saxônia e na Turíngia pudessem ajudar a fomentar uma revolução proletária. Mas o Reichswehr, o exército alemão, não respondeu a estes movimentos insurgentes da mesma maneira. Reprimiu a esquerda na Saxônia e na Turíngia com “severidade draconiana”, escreve Ullrich, “e ignorou as constantes provocações” da direita na Baviera.
Ullrich consegue se aprofundar tanto nos detalhes das disputas políticas que, para os leitores que não são versados nos numerosos partidos de Weimar e nas suas facções dissidentes, às vezes é difícil acompanhar. Ele afirma categoricamente que, embora o governo nacional tivesse recebido uma série de “relatórios alarmantes” sobre a extrema direita na Baviera, “as notícias do putsch de Hitler ainda o apanharam um pouco desprevenido”.
Mesmo assim, o acontecimento foi tão caótico que a República de Weimar sobreviveu. O governo também emitiu uma nova moeda – Rentenmarks, cada unidade valendo um trilhão de marcos – e anunciou uma taxa de câmbio fixa de 4,2 trilhões de marcos por dólar. Para o novo dinheiro funcionar, era preciso fé na sua estabilidade, a qual tinha sido praticamente destruída no ano anterior. Mas a confiança no Rentenmarks resistiu.
“Na primeira vez em que você os oferecia em pagamento, tinha de esperar em suspense para ver o que aconteceria”, lembrou o historiador Sebastian Haffner. “Mas eles eram realmente aceitos e você recebia suas mercadorias – mercadorias no valor de um bilhão de marcos. A mesma coisa aconteceu no dia seguinte e no dia depois. Foi inacreditável”.
Um adiamento, não um final feliz
Tal estabilidade rendeu uma época de ouro em Weimar, sustentando um período de eflorescência cultural e experimentação artística que já havia começado. Considerando a guinada que a Alemanha daria uma década mais tarde, os lampejos de esperança no fim de 1923 agora mais parecem fragmentos pontiagudos – um mero adiamento, não um final feliz.
Quando Hitler e os outros conspiradores golpistas foram levados a julgamento, ele usou o tribunal para se exibir e criticar a República de Weimar. Na prisão, passou “alguns meses bastante confortáveis” ganhando tempo e escrevendo Mein Kampf. Ele também aprendeu algo com sua revolta fracassada. “Se ele quisesse tomar o poder”, explica Ullrich, “precisaria seguir um caminho diferente: não o golpe, mas a legalidade de fachada, em consonância com as elites econômicas, militares e administrativas conservadoras”.
A República de Weimar pode ter demonstrado uma “resiliência surpreendente” em 1923, mas, uma década depois, o ambiente tinha mudado. O establishment político nacional já não se sentia obrigado a proteger a democracia. Os conservadores acreditavam que poderiam convidar Hitler para sua coligação governamental e se beneficiar com a jogada.
Tal oportunismo era incrivelmente cínico – e terrivelmente ingênuo. Como Ullrich afirma no final do livro: “A noção de que eles poderiam utilizar o líder nazista para seus próprios interesses reacionários e controlar a dinâmica de seu movimento se revelaria uma ilusão trágica”.
Serviço
- Germany 1923: Hyperinflation, Hitler’s Putsch, and Democracy in Crisis
- Editora: Liveright
- Autor: Volker Ullrich
- Tradução (para o inglês): Jefferson Chase
- 448 páginas: R$ 148,68 | Ebook: R$ 139,70
- Sem previsão de publicação no Brasil
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU