Opinião|Livro póstumo de García Márquez: Como a maior aposta literária do ano se tornou o maior fiasco


Lançamento de manuscrito inicialmente rejeitado pelo escritor, morto em 2014, reforça dificuldade do autor em escrever personagens femininas e de se apropriar das mudanças culturais do novo século; leia análise

Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

Uma pergunta que todo escritor, em algum momento da vida, se faz, é: será que devo ainda continuar a escrever e publicar? Alguns, como o brasileiro Raduan Nassar (1935) e o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), após a publicação de apenas dois livros e cercados de sucesso público, decidiram que já era o suficiente, construindo assim uma certa aura de mistério.

Outros, como o contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), sustentaram sua aposentadoria literária numa fria contabilidade: “Ao percorrer meu arquivo literário, contabilizei cento e oito histórias editadas e sessenta e duas deixadas de lado (...) Se em tal quantidade de páginas não disse o que eu queria, já não é tempo de dizer”.

Tudo isso vem à mente diante do novo lançamento póstumo e mundial do último romance de Gabriel García Márquez (1927-2014). O texto, finalizado há vinte anos, nas palavras de seus filhos Gonzalo e Rodrigo, foi renegado pelo próprio autor: “Esse livro não presta. Tem que ser destruído.” (p. 6)

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Vedete do boom editorial da literatura latino-americana, ganhador do Nobel de Literatura em 1982, García Márquez publicou sua última grande obra, o primeiro volume de sua autobiografia, em 2002: Viver para contar. O projeto fora concebido para ser publicado em três livros, mas não saiu do inicial porque problemas de memória começaram a afetar o autor. Assim, restou-lhe ensaiar romances curtos. Em sua colheita final restaram apenas dois frutos: Memórias de minhas putas tristes, publicado em 2004, e o rejeitado – e agora resgatado – Em agosto nos vemos, que chega às livrarias nesta quarta, 6.

O escritor Gabriel García Márquez, morto em 2014, tem livro póstumo publicado nesta quarta, 6. Foto: L.M. Palomares, Agencia Literaria Carmen Balcells
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O livro, de fato, destoa dos demais do autor. Pela primeira vez, uma mulher é protagonista: Ana Magdalena Bach, que vai a uma ilha do Caribe uma vez por ano, no dia 16 de agosto, para depositar flores no túmulo da mãe. Na ilha, ela tem uma aventura sexual extra-conjugal pela primeira vez em sua vida. O que surge como fruto do acaso torna-se rotina: ela incorpora a seu ritual funerário de cada ano um encontro sexual com um desconhecido.

Uma constante na obra de García Márquez foi a glorificação hiperbólica da figura masculina: o coronel Aureliano Buendía, de Cem anos de solidão (1967), por exemplo, é retratado assim, num longo parágrafo do qual citarei as primeiras linhas: “promoveu trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um atrás do outro numa mesma noite, antes de que o mais velho fizesse trinta e cinco anos. Escapou de catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento.” (p. 144).

As mulheres sempre surgiram pela via da idealização erótica masculina ou como seres muito racionais, tanto em um caso como noutro, em uma posição coadjuvante nas narrativas. Quando uma mulher era protagonista de um conto do autor, ainda assim era coadjuvante, como no caso de María de la Luz Cervantes, do texto Eu só queria usar o telefone (1978), do livro Doze contos peregrinos: dirigindo sozinha um carro alugado pelo interior da Espanha, a mexicana fica a pé e consegue uma carona até um sanatório, onde, tomada por louca, é desconsiderada e trancafiada, e sua frase “eu só queria usar o telefone” é solenemente ignorada por todos.

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Gonzalo García Barcha, filho de Gabriel García Márquez, em lançamento de 'Em agosto nos vemos' em Madrid, na Espanha, em 5 de março de 2024. Foto: J P Gandul / EFE

Portanto, a dificuldade de construir, no ocaso de sua vida, uma personagem feminina consistente foi o desafio do colombiano nesse livro. E aí surgem os problemas: trata-se de uma personagem que descobre sua própria sexualidade a partir do legado da mãe. O fato é que essa descoberta inicialmente ocorreria “às vésperas da terceira idade”, como se vê no manuscrito do autor. García Márquez recalcula a idade para finalmente dar lugar a uma personagem de 46 anos de idade, descrita não como mulher, mas “mãe outonal” (p. 13).

Sigmund Freud, ao longo de sua vida, falou da dificuldade de falar sobre o desejo feminino. Nos dois livros finais de García Márquez, ele oscila entre as duas idealizações masculinas trazidas por Freud – a puta (em Memórias de minhas putas tristes) e a mãe (Em agosto nos vemos). A mulher segue a lhe escapar.

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Ana, depois de descobrir novas possibilidades em sua sexualidade, não tem qualquer horizonte aberto, volta para casa para discutir ciúmes com o marido. As conversas do casal são tão anódinas quanto: se o marido fosse para a cama com outra, ela não quereria saber e que não se importava, desde que não fosse sempre com a mesma. Afora isso, há uma imagem incômoda de complementaridade: “os dois se conheceram tão a fundo que acabaram parecendo um só” (p. 40), inexplicavelmente repetida algumas páginas adiante: “ele a conhecia tão a fundo que acabaram sendo um só” (p. 71).

Capa de 'Em agosto nos vemos', livro póstumo de Gabriel García Marquez. Foto: Record/Divulgação
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Para coroar: as caracterizações de personagens mais interessantes são ainda as dedicadas aos homens. Veja-se a hipérbole com a qual é descrito o maridão Doménico: “bem educado, bonitão e fino (...) era um sedutor de salão e um caricaturista musical capaz de salvar uma festa com um bolero de Agustín Lara no estilo Chopin com um danzón cubano à Rachmaninoff. Tinha sido campeão universitário em tudo: canto, natação, oratória, tênis de mesa” (p. 39).

A descrição de Ana, como costuma acontecer com as mulheres de García Márquez, é predominantemente física: “Quando acabou de secar o rosto, sopesou no espelho os seios redondos e altivos apesar dos dois partos. Esticou as bochechas com os cantos das mãos para se lembrar de como era quando jovem. (...) A pele sem vestígio de cosmético tinha a cor e a textura do melaço, e os olhos de topázio eram formosos com suas escuras pálpebras portuguesas.” (p. 13)

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Enfim, afora essas descrições nas quais o autor mantém vigor e estilo, ainda que já de teor anacrônico, estão de todo ausentes a narração ágil e a verve que o consagraram. O que sim há são explicações enfadonhas, reiterações desnecessárias de um autor que parece acreditar que precisa se fazer entender a qualquer custo. A memória e a comunicação falham.

Assim, o livro fracassa porque a protagonista não convence sob nenhum ponto de vista, porque a narrativa, mesmo curta, é morosa e porque o narrador claramente não logra dominar o tema que está tratando. A publicação deste livro, à revelia de García Márquez, mostra a dificuldade do escritor de se apropriar das mudanças culturais do novo século. No contraste, sobressaem-se o tamanho do legado narrativo de García Márquez e sua importância para o século 20, período que, sob muitos pontos de vista, encerrou-se em nossa história cultural. O resto é o Mercado.

Em agosto nos vemos

  • Autor: Gabriel García Márquez
  • Tradutor: Eric Nepomuceno
  • Editora: Record (132 págs.; R$ 59,90 | E-book: R$ 39,90)

Uma pergunta que todo escritor, em algum momento da vida, se faz, é: será que devo ainda continuar a escrever e publicar? Alguns, como o brasileiro Raduan Nassar (1935) e o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), após a publicação de apenas dois livros e cercados de sucesso público, decidiram que já era o suficiente, construindo assim uma certa aura de mistério.

Outros, como o contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), sustentaram sua aposentadoria literária numa fria contabilidade: “Ao percorrer meu arquivo literário, contabilizei cento e oito histórias editadas e sessenta e duas deixadas de lado (...) Se em tal quantidade de páginas não disse o que eu queria, já não é tempo de dizer”.

Tudo isso vem à mente diante do novo lançamento póstumo e mundial do último romance de Gabriel García Márquez (1927-2014). O texto, finalizado há vinte anos, nas palavras de seus filhos Gonzalo e Rodrigo, foi renegado pelo próprio autor: “Esse livro não presta. Tem que ser destruído.” (p. 6)

Vedete do boom editorial da literatura latino-americana, ganhador do Nobel de Literatura em 1982, García Márquez publicou sua última grande obra, o primeiro volume de sua autobiografia, em 2002: Viver para contar. O projeto fora concebido para ser publicado em três livros, mas não saiu do inicial porque problemas de memória começaram a afetar o autor. Assim, restou-lhe ensaiar romances curtos. Em sua colheita final restaram apenas dois frutos: Memórias de minhas putas tristes, publicado em 2004, e o rejeitado – e agora resgatado – Em agosto nos vemos, que chega às livrarias nesta quarta, 6.

O escritor Gabriel García Márquez, morto em 2014, tem livro póstumo publicado nesta quarta, 6. Foto: L.M. Palomares, Agencia Literaria Carmen Balcells

O livro, de fato, destoa dos demais do autor. Pela primeira vez, uma mulher é protagonista: Ana Magdalena Bach, que vai a uma ilha do Caribe uma vez por ano, no dia 16 de agosto, para depositar flores no túmulo da mãe. Na ilha, ela tem uma aventura sexual extra-conjugal pela primeira vez em sua vida. O que surge como fruto do acaso torna-se rotina: ela incorpora a seu ritual funerário de cada ano um encontro sexual com um desconhecido.

Uma constante na obra de García Márquez foi a glorificação hiperbólica da figura masculina: o coronel Aureliano Buendía, de Cem anos de solidão (1967), por exemplo, é retratado assim, num longo parágrafo do qual citarei as primeiras linhas: “promoveu trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um atrás do outro numa mesma noite, antes de que o mais velho fizesse trinta e cinco anos. Escapou de catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento.” (p. 144).

As mulheres sempre surgiram pela via da idealização erótica masculina ou como seres muito racionais, tanto em um caso como noutro, em uma posição coadjuvante nas narrativas. Quando uma mulher era protagonista de um conto do autor, ainda assim era coadjuvante, como no caso de María de la Luz Cervantes, do texto Eu só queria usar o telefone (1978), do livro Doze contos peregrinos: dirigindo sozinha um carro alugado pelo interior da Espanha, a mexicana fica a pé e consegue uma carona até um sanatório, onde, tomada por louca, é desconsiderada e trancafiada, e sua frase “eu só queria usar o telefone” é solenemente ignorada por todos.

Gonzalo García Barcha, filho de Gabriel García Márquez, em lançamento de 'Em agosto nos vemos' em Madrid, na Espanha, em 5 de março de 2024. Foto: J P Gandul / EFE

Portanto, a dificuldade de construir, no ocaso de sua vida, uma personagem feminina consistente foi o desafio do colombiano nesse livro. E aí surgem os problemas: trata-se de uma personagem que descobre sua própria sexualidade a partir do legado da mãe. O fato é que essa descoberta inicialmente ocorreria “às vésperas da terceira idade”, como se vê no manuscrito do autor. García Márquez recalcula a idade para finalmente dar lugar a uma personagem de 46 anos de idade, descrita não como mulher, mas “mãe outonal” (p. 13).

Sigmund Freud, ao longo de sua vida, falou da dificuldade de falar sobre o desejo feminino. Nos dois livros finais de García Márquez, ele oscila entre as duas idealizações masculinas trazidas por Freud – a puta (em Memórias de minhas putas tristes) e a mãe (Em agosto nos vemos). A mulher segue a lhe escapar.

Ana, depois de descobrir novas possibilidades em sua sexualidade, não tem qualquer horizonte aberto, volta para casa para discutir ciúmes com o marido. As conversas do casal são tão anódinas quanto: se o marido fosse para a cama com outra, ela não quereria saber e que não se importava, desde que não fosse sempre com a mesma. Afora isso, há uma imagem incômoda de complementaridade: “os dois se conheceram tão a fundo que acabaram parecendo um só” (p. 40), inexplicavelmente repetida algumas páginas adiante: “ele a conhecia tão a fundo que acabaram sendo um só” (p. 71).

Capa de 'Em agosto nos vemos', livro póstumo de Gabriel García Marquez. Foto: Record/Divulgação

Para coroar: as caracterizações de personagens mais interessantes são ainda as dedicadas aos homens. Veja-se a hipérbole com a qual é descrito o maridão Doménico: “bem educado, bonitão e fino (...) era um sedutor de salão e um caricaturista musical capaz de salvar uma festa com um bolero de Agustín Lara no estilo Chopin com um danzón cubano à Rachmaninoff. Tinha sido campeão universitário em tudo: canto, natação, oratória, tênis de mesa” (p. 39).

A descrição de Ana, como costuma acontecer com as mulheres de García Márquez, é predominantemente física: “Quando acabou de secar o rosto, sopesou no espelho os seios redondos e altivos apesar dos dois partos. Esticou as bochechas com os cantos das mãos para se lembrar de como era quando jovem. (...) A pele sem vestígio de cosmético tinha a cor e a textura do melaço, e os olhos de topázio eram formosos com suas escuras pálpebras portuguesas.” (p. 13)

Enfim, afora essas descrições nas quais o autor mantém vigor e estilo, ainda que já de teor anacrônico, estão de todo ausentes a narração ágil e a verve que o consagraram. O que sim há são explicações enfadonhas, reiterações desnecessárias de um autor que parece acreditar que precisa se fazer entender a qualquer custo. A memória e a comunicação falham.

Assim, o livro fracassa porque a protagonista não convence sob nenhum ponto de vista, porque a narrativa, mesmo curta, é morosa e porque o narrador claramente não logra dominar o tema que está tratando. A publicação deste livro, à revelia de García Márquez, mostra a dificuldade do escritor de se apropriar das mudanças culturais do novo século. No contraste, sobressaem-se o tamanho do legado narrativo de García Márquez e sua importância para o século 20, período que, sob muitos pontos de vista, encerrou-se em nossa história cultural. O resto é o Mercado.

Em agosto nos vemos

  • Autor: Gabriel García Márquez
  • Tradutor: Eric Nepomuceno
  • Editora: Record (132 págs.; R$ 59,90 | E-book: R$ 39,90)

Uma pergunta que todo escritor, em algum momento da vida, se faz, é: será que devo ainda continuar a escrever e publicar? Alguns, como o brasileiro Raduan Nassar (1935) e o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), após a publicação de apenas dois livros e cercados de sucesso público, decidiram que já era o suficiente, construindo assim uma certa aura de mistério.

Outros, como o contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), sustentaram sua aposentadoria literária numa fria contabilidade: “Ao percorrer meu arquivo literário, contabilizei cento e oito histórias editadas e sessenta e duas deixadas de lado (...) Se em tal quantidade de páginas não disse o que eu queria, já não é tempo de dizer”.

Tudo isso vem à mente diante do novo lançamento póstumo e mundial do último romance de Gabriel García Márquez (1927-2014). O texto, finalizado há vinte anos, nas palavras de seus filhos Gonzalo e Rodrigo, foi renegado pelo próprio autor: “Esse livro não presta. Tem que ser destruído.” (p. 6)

Vedete do boom editorial da literatura latino-americana, ganhador do Nobel de Literatura em 1982, García Márquez publicou sua última grande obra, o primeiro volume de sua autobiografia, em 2002: Viver para contar. O projeto fora concebido para ser publicado em três livros, mas não saiu do inicial porque problemas de memória começaram a afetar o autor. Assim, restou-lhe ensaiar romances curtos. Em sua colheita final restaram apenas dois frutos: Memórias de minhas putas tristes, publicado em 2004, e o rejeitado – e agora resgatado – Em agosto nos vemos, que chega às livrarias nesta quarta, 6.

O escritor Gabriel García Márquez, morto em 2014, tem livro póstumo publicado nesta quarta, 6. Foto: L.M. Palomares, Agencia Literaria Carmen Balcells

O livro, de fato, destoa dos demais do autor. Pela primeira vez, uma mulher é protagonista: Ana Magdalena Bach, que vai a uma ilha do Caribe uma vez por ano, no dia 16 de agosto, para depositar flores no túmulo da mãe. Na ilha, ela tem uma aventura sexual extra-conjugal pela primeira vez em sua vida. O que surge como fruto do acaso torna-se rotina: ela incorpora a seu ritual funerário de cada ano um encontro sexual com um desconhecido.

Uma constante na obra de García Márquez foi a glorificação hiperbólica da figura masculina: o coronel Aureliano Buendía, de Cem anos de solidão (1967), por exemplo, é retratado assim, num longo parágrafo do qual citarei as primeiras linhas: “promoveu trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um atrás do outro numa mesma noite, antes de que o mais velho fizesse trinta e cinco anos. Escapou de catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento.” (p. 144).

As mulheres sempre surgiram pela via da idealização erótica masculina ou como seres muito racionais, tanto em um caso como noutro, em uma posição coadjuvante nas narrativas. Quando uma mulher era protagonista de um conto do autor, ainda assim era coadjuvante, como no caso de María de la Luz Cervantes, do texto Eu só queria usar o telefone (1978), do livro Doze contos peregrinos: dirigindo sozinha um carro alugado pelo interior da Espanha, a mexicana fica a pé e consegue uma carona até um sanatório, onde, tomada por louca, é desconsiderada e trancafiada, e sua frase “eu só queria usar o telefone” é solenemente ignorada por todos.

Gonzalo García Barcha, filho de Gabriel García Márquez, em lançamento de 'Em agosto nos vemos' em Madrid, na Espanha, em 5 de março de 2024. Foto: J P Gandul / EFE

Portanto, a dificuldade de construir, no ocaso de sua vida, uma personagem feminina consistente foi o desafio do colombiano nesse livro. E aí surgem os problemas: trata-se de uma personagem que descobre sua própria sexualidade a partir do legado da mãe. O fato é que essa descoberta inicialmente ocorreria “às vésperas da terceira idade”, como se vê no manuscrito do autor. García Márquez recalcula a idade para finalmente dar lugar a uma personagem de 46 anos de idade, descrita não como mulher, mas “mãe outonal” (p. 13).

Sigmund Freud, ao longo de sua vida, falou da dificuldade de falar sobre o desejo feminino. Nos dois livros finais de García Márquez, ele oscila entre as duas idealizações masculinas trazidas por Freud – a puta (em Memórias de minhas putas tristes) e a mãe (Em agosto nos vemos). A mulher segue a lhe escapar.

Ana, depois de descobrir novas possibilidades em sua sexualidade, não tem qualquer horizonte aberto, volta para casa para discutir ciúmes com o marido. As conversas do casal são tão anódinas quanto: se o marido fosse para a cama com outra, ela não quereria saber e que não se importava, desde que não fosse sempre com a mesma. Afora isso, há uma imagem incômoda de complementaridade: “os dois se conheceram tão a fundo que acabaram parecendo um só” (p. 40), inexplicavelmente repetida algumas páginas adiante: “ele a conhecia tão a fundo que acabaram sendo um só” (p. 71).

Capa de 'Em agosto nos vemos', livro póstumo de Gabriel García Marquez. Foto: Record/Divulgação

Para coroar: as caracterizações de personagens mais interessantes são ainda as dedicadas aos homens. Veja-se a hipérbole com a qual é descrito o maridão Doménico: “bem educado, bonitão e fino (...) era um sedutor de salão e um caricaturista musical capaz de salvar uma festa com um bolero de Agustín Lara no estilo Chopin com um danzón cubano à Rachmaninoff. Tinha sido campeão universitário em tudo: canto, natação, oratória, tênis de mesa” (p. 39).

A descrição de Ana, como costuma acontecer com as mulheres de García Márquez, é predominantemente física: “Quando acabou de secar o rosto, sopesou no espelho os seios redondos e altivos apesar dos dois partos. Esticou as bochechas com os cantos das mãos para se lembrar de como era quando jovem. (...) A pele sem vestígio de cosmético tinha a cor e a textura do melaço, e os olhos de topázio eram formosos com suas escuras pálpebras portuguesas.” (p. 13)

Enfim, afora essas descrições nas quais o autor mantém vigor e estilo, ainda que já de teor anacrônico, estão de todo ausentes a narração ágil e a verve que o consagraram. O que sim há são explicações enfadonhas, reiterações desnecessárias de um autor que parece acreditar que precisa se fazer entender a qualquer custo. A memória e a comunicação falham.

Assim, o livro fracassa porque a protagonista não convence sob nenhum ponto de vista, porque a narrativa, mesmo curta, é morosa e porque o narrador claramente não logra dominar o tema que está tratando. A publicação deste livro, à revelia de García Márquez, mostra a dificuldade do escritor de se apropriar das mudanças culturais do novo século. No contraste, sobressaem-se o tamanho do legado narrativo de García Márquez e sua importância para o século 20, período que, sob muitos pontos de vista, encerrou-se em nossa história cultural. O resto é o Mercado.

Em agosto nos vemos

  • Autor: Gabriel García Márquez
  • Tradutor: Eric Nepomuceno
  • Editora: Record (132 págs.; R$ 59,90 | E-book: R$ 39,90)

Uma pergunta que todo escritor, em algum momento da vida, se faz, é: será que devo ainda continuar a escrever e publicar? Alguns, como o brasileiro Raduan Nassar (1935) e o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), após a publicação de apenas dois livros e cercados de sucesso público, decidiram que já era o suficiente, construindo assim uma certa aura de mistério.

Outros, como o contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), sustentaram sua aposentadoria literária numa fria contabilidade: “Ao percorrer meu arquivo literário, contabilizei cento e oito histórias editadas e sessenta e duas deixadas de lado (...) Se em tal quantidade de páginas não disse o que eu queria, já não é tempo de dizer”.

Tudo isso vem à mente diante do novo lançamento póstumo e mundial do último romance de Gabriel García Márquez (1927-2014). O texto, finalizado há vinte anos, nas palavras de seus filhos Gonzalo e Rodrigo, foi renegado pelo próprio autor: “Esse livro não presta. Tem que ser destruído.” (p. 6)

Vedete do boom editorial da literatura latino-americana, ganhador do Nobel de Literatura em 1982, García Márquez publicou sua última grande obra, o primeiro volume de sua autobiografia, em 2002: Viver para contar. O projeto fora concebido para ser publicado em três livros, mas não saiu do inicial porque problemas de memória começaram a afetar o autor. Assim, restou-lhe ensaiar romances curtos. Em sua colheita final restaram apenas dois frutos: Memórias de minhas putas tristes, publicado em 2004, e o rejeitado – e agora resgatado – Em agosto nos vemos, que chega às livrarias nesta quarta, 6.

O escritor Gabriel García Márquez, morto em 2014, tem livro póstumo publicado nesta quarta, 6. Foto: L.M. Palomares, Agencia Literaria Carmen Balcells

O livro, de fato, destoa dos demais do autor. Pela primeira vez, uma mulher é protagonista: Ana Magdalena Bach, que vai a uma ilha do Caribe uma vez por ano, no dia 16 de agosto, para depositar flores no túmulo da mãe. Na ilha, ela tem uma aventura sexual extra-conjugal pela primeira vez em sua vida. O que surge como fruto do acaso torna-se rotina: ela incorpora a seu ritual funerário de cada ano um encontro sexual com um desconhecido.

Uma constante na obra de García Márquez foi a glorificação hiperbólica da figura masculina: o coronel Aureliano Buendía, de Cem anos de solidão (1967), por exemplo, é retratado assim, num longo parágrafo do qual citarei as primeiras linhas: “promoveu trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um atrás do outro numa mesma noite, antes de que o mais velho fizesse trinta e cinco anos. Escapou de catorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento.” (p. 144).

As mulheres sempre surgiram pela via da idealização erótica masculina ou como seres muito racionais, tanto em um caso como noutro, em uma posição coadjuvante nas narrativas. Quando uma mulher era protagonista de um conto do autor, ainda assim era coadjuvante, como no caso de María de la Luz Cervantes, do texto Eu só queria usar o telefone (1978), do livro Doze contos peregrinos: dirigindo sozinha um carro alugado pelo interior da Espanha, a mexicana fica a pé e consegue uma carona até um sanatório, onde, tomada por louca, é desconsiderada e trancafiada, e sua frase “eu só queria usar o telefone” é solenemente ignorada por todos.

Gonzalo García Barcha, filho de Gabriel García Márquez, em lançamento de 'Em agosto nos vemos' em Madrid, na Espanha, em 5 de março de 2024. Foto: J P Gandul / EFE

Portanto, a dificuldade de construir, no ocaso de sua vida, uma personagem feminina consistente foi o desafio do colombiano nesse livro. E aí surgem os problemas: trata-se de uma personagem que descobre sua própria sexualidade a partir do legado da mãe. O fato é que essa descoberta inicialmente ocorreria “às vésperas da terceira idade”, como se vê no manuscrito do autor. García Márquez recalcula a idade para finalmente dar lugar a uma personagem de 46 anos de idade, descrita não como mulher, mas “mãe outonal” (p. 13).

Sigmund Freud, ao longo de sua vida, falou da dificuldade de falar sobre o desejo feminino. Nos dois livros finais de García Márquez, ele oscila entre as duas idealizações masculinas trazidas por Freud – a puta (em Memórias de minhas putas tristes) e a mãe (Em agosto nos vemos). A mulher segue a lhe escapar.

Ana, depois de descobrir novas possibilidades em sua sexualidade, não tem qualquer horizonte aberto, volta para casa para discutir ciúmes com o marido. As conversas do casal são tão anódinas quanto: se o marido fosse para a cama com outra, ela não quereria saber e que não se importava, desde que não fosse sempre com a mesma. Afora isso, há uma imagem incômoda de complementaridade: “os dois se conheceram tão a fundo que acabaram parecendo um só” (p. 40), inexplicavelmente repetida algumas páginas adiante: “ele a conhecia tão a fundo que acabaram sendo um só” (p. 71).

Capa de 'Em agosto nos vemos', livro póstumo de Gabriel García Marquez. Foto: Record/Divulgação

Para coroar: as caracterizações de personagens mais interessantes são ainda as dedicadas aos homens. Veja-se a hipérbole com a qual é descrito o maridão Doménico: “bem educado, bonitão e fino (...) era um sedutor de salão e um caricaturista musical capaz de salvar uma festa com um bolero de Agustín Lara no estilo Chopin com um danzón cubano à Rachmaninoff. Tinha sido campeão universitário em tudo: canto, natação, oratória, tênis de mesa” (p. 39).

A descrição de Ana, como costuma acontecer com as mulheres de García Márquez, é predominantemente física: “Quando acabou de secar o rosto, sopesou no espelho os seios redondos e altivos apesar dos dois partos. Esticou as bochechas com os cantos das mãos para se lembrar de como era quando jovem. (...) A pele sem vestígio de cosmético tinha a cor e a textura do melaço, e os olhos de topázio eram formosos com suas escuras pálpebras portuguesas.” (p. 13)

Enfim, afora essas descrições nas quais o autor mantém vigor e estilo, ainda que já de teor anacrônico, estão de todo ausentes a narração ágil e a verve que o consagraram. O que sim há são explicações enfadonhas, reiterações desnecessárias de um autor que parece acreditar que precisa se fazer entender a qualquer custo. A memória e a comunicação falham.

Assim, o livro fracassa porque a protagonista não convence sob nenhum ponto de vista, porque a narrativa, mesmo curta, é morosa e porque o narrador claramente não logra dominar o tema que está tratando. A publicação deste livro, à revelia de García Márquez, mostra a dificuldade do escritor de se apropriar das mudanças culturais do novo século. No contraste, sobressaem-se o tamanho do legado narrativo de García Márquez e sua importância para o século 20, período que, sob muitos pontos de vista, encerrou-se em nossa história cultural. O resto é o Mercado.

Em agosto nos vemos

  • Autor: Gabriel García Márquez
  • Tradutor: Eric Nepomuceno
  • Editora: Record (132 págs.; R$ 59,90 | E-book: R$ 39,90)
Opinião por Wilson Alves-Bezerra

Escritor, tradutor e professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos

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