Nos 20 anos do lançamento bem-sucedido de Calibã e a Bruxa, em que a filósofa italiana Silvia Federici relaciona o período de caça às bruxas ao surgimento do capitalismo, o interesse por essa figura de poder feminino continua a render livros de todos os gêneros. Para a editora de young adult (jovem adulto) da VR, Thaíse Costa Macêdo, há uma tendência no mercado editorial internacional nos últimos anos.
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As bruxas estão presentes principalmente na ficção fantástica, mas também têm aparecido em obras de desenvolvimento pessoal, prosa poética, não ficção e coletâneas de personagens míticos. O interesse é sazonal, diz a editora da VR, e agora está em alta. “Nestes anos em que vivemos segue com bastante força a disseminação do feminismo. O mercado editorial sempre reflete os anseios da sociedade, e não à toa temos novamente histórias de bruxas”, ela explica.
Há a ideia da bruxa vilã com risada malvada, da vítima de uma sociedade, da femme fatale, explica Carol Chiovatto, escritora e doutora em Letras pela USP, onde estudou a figura da bruxa como estereótipo do feminino transgressor. “Escolhemos aspectos da bruxa nos quais queremos reparar e nos quais não queremos reparar. E essas escolhas vão se mostrando conforme o produto que estamos consumindo”, afirma ela.
Representações múltiplas
Para a pesquisadora, o fator mais forte de mudança na representação da bruxa ao longo do tempo foi a crença. Em sociedades antigas, acreditava-se no poder definido no nascimento: “Às vezes nasceu em determinada fase da Lua, às vezes o parto aconteceu de determinada maneira”. Até que, no começo da Idade Moderna, a bruxa deixa de ser alguém que nasceu com aquele poder e passa a ser alguém que fez um pacto com o diabo. “Porque a Igreja não conseguia admitir que um ser humano tivesse poder, a não ser que o diabo o tivesse dado.”
Assim começou a perseguição às bruxas pela Justiça comum. Sem testemunhos da magia, no entanto, a crença enfraqueceu. “Mas isso foi um trabalho que aconteceu ao longo de mais de um século”, explica Chiovatto. Como as rés na maior parte dos processos por bruxaria eram pessoas em vulnerabilidade social, como viúvas, idosas ou mulheres em situação de mendicância, a literatura entre 1700 e 1800, no romantismo, começa a pensar na figura da bruxa como vítima.
É com a segunda onda do movimento feminista, nos anos 1960, que essa mulher deixa de ser somente vítima e passa a ser também agente. “Bruxa era um xingamento. Quando o movimento feminista se apodera disso, ser bruxa, em alguns discursos, começa a ser um elogio. Tentando conciliar o passado e criar novas tradições”, diz Chiovatto. Além disso, surgem ainda as teorias de bruxas neopagãs, como a religião wicca.
Autoria feminina
Ao longo do tempo, todas essas representações se misturaram. Maria Carolina Casati, criadora do perfil de literatura no Instagram @encruzilinhas, vê diferenças nas histórias de bruxas contadas por homens e por mulheres. No primeiro caso, a bruxa é uma mulher feia, velha e assustadora. “Está tudo muito no corpo, esse corpo que ninguém mais deseja, esse corpo que assusta.” Além dessa descrição quase sempre frequente, diz ela, a bruxa do autor homem faz “maldade pela maldade”.
Já nos textos escritos por mulheres, explica Casati, não há a descrição corporal, a bruxa não é hipersexualizada nem aterrorizante. “A bruxa tem contato com a terra, com as plantas, com os outros, com as outras, e isso é muito da América Latina, nesses países em que precisamos nos unir para continuar existindo de verdade, países que são muito misóginos.”
Sul Global
Livros como Voladoras, da equatoriana Mónica Ojéda, e Os Perigos de Fumar na Cama, da argentina Mariana Enríquez, retratam em alguns contos a bruxaria ancestral de que fala Casati. “Quase sempre três mulheres, a criança, adulta e anciã, que trabalham juntas, que vivem juntas, para que consigam continuar existindo.”
Mas foi com a história de Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem (de Maryse Condé), que leu durante uma disciplina sobre bruxaria e crítica feminista antes do doutorado sobre narrativas orais, que Casati se interessou pela figura da bruxa, especialmente a descrita por mulheres do Sul Global.
Nas histórias das bruxas das Américas há o componente do racismo. Segundo Chiovatto, nas representações do século 19 essas mulheres são indígenas, caboclas ou de populações escravizadas. “Mas eu percebo o mesmo movimento: uma mulher numa situação vulnerável, que pode na verdade ser boa ou pode ter abraçado a raiva e assumido o aspecto vingativo da coisa”, diz.
Já no papel de escritora, Carol Chiovatto criou uma história de bruxaria que se passa em São Paulo. Ela aproveita o sincretismo religioso brasileiro para narrar, em Porém Bruxa, as aventuras de Ísis Rossetti, uma mulher que tem poderes mas precisa lidar com sua dimensão corporal sem eles. É no corpo que ela sofre com o metrô lotado, por exemplo, e também é assediada na rua.
Carol Chiovatto, autora de 'Porém Bruxa'
10 livros sobre bruxas
- Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federeci (Elefante, 480 págs.; R$ 68)
- História da Bruxaria, de Jeffrey B. Russel e Brooks Alexander (Goya, 280 págs.; R$ 79,90)
- Voladoras, de Mónica Ojeda (Autêntica, 136 págs.; R$ 54,90; R$ 38,90)
- Os Perigos de Fumar na Cama, de Mariana Enríquez (Intrínseca, 144 págs.; R$ 49,90, R$ 34,90)
- Eu, Tituba: bruxa negra de Salem, de Maryse Condé (Rosa dos Tempos, 257 págs.; R$ 59,90)
- Porém Bruxa, de Carol Chiovatto (Suma, 320 págs.; R$ 47,92)
- Aves Noturnas, de Kate J. Armstrong (Plataforma 21, 493 págs.; R$ 89,90)
- Bruxas, Minhas Irmãs, de Chantal Montellier (Veneta, 80 págs.; R$ 69,90)
- Deusas – 50 deusas, divindades, santas e outras figuras femininas que moldaram crenças ao longo do tempo, de Janina Ramirez (VR, 112 págs.; R$ 99,90)
- Bruxas, Guerreiras, Deusas, de Kate Hodges (Raposa Vermelha, 224 págs.; R$ 139,90)