A garota Valentina, filha adotiva de um casal paulistano de classe média alta, desaparece sem deixar rastros na saída da escola. Denise, mulher do motorista Jorge, some sem que se tenha pistas de seu paradeiro. Um terreiro de candomblé é alvo de depredação por parte de fanáticos religiosos neopentecostais. Esses casos aparentemente independentes entre si compõem a base da narrativa do romance de estreia da escritora Carol Chiovatto. O que poderia ser uma trama policialesca comum ganha contornos inesperados graças a Ísis, sua protagonista: ela é uma bruxa que auxilia as investigações de casos sobrenaturais em São Paulo.
Porém Bruxa (editora Avec) é um exemplo do fértil subgênero da fantasia urbana, cada vez mais presente nas prateleiras das livrarias. Esse expediente de mesclar elementos mágicos, especulativos ou fantásticos vem se tornando uma tendência entre autores nacionais para conferir à literatura fantástica tons simultaneamente mais contemporâneos e tropicais.
"Uma discussão que temos academicamente é que as pessoas têm uma ideia de que o fantástico está totalmente dissociado da realidade, mas não é verdade, porque se não tivesse uma ancoragem forte na realidade, não iríamos entender", raciocina Chiovatto, que também é uma pesquisadora do assunto. "No caso da fantasia urbana, é mais fácil, pois lida com coisas do dia a dia. Isso é uma forma de discutir questões muito caras à nossa sociedade", acrescenta ela.
Isso explica por que Ísis – uma detetive durona como um Philip Marlowe, de Raymond Chandler, e boca-suja como um Nicky Belane, de Charles Bukowski –, embora tenha de enfrentar demônios transdimensionais, seitas de fanáticos religiosos e outros bruxos, tenha como principal pedra no sapato a burocracia estatal. Tanto que Ísis chega a ser presa por um delegado misógino enquanto auxilia em uma investigação dele. É curioso ver que uma personagem tão poderosa passa boa parte do romance presa no trânsito tentando chegar de táxi em vários lugares de São Paulo.
"Para mim é importante, no atual momento do País, e também como inovação temática, falar sobre a realidade que eu conheço. A gente lê muita fantasia urbana que se passa em Londres, Nova York, Chicago... Nós que vivemos em uma cidade grande podemos ter relação com essas cidades, mas não é a mesma coisa", defende a autora.
Ísis, entretanto, passa longe do estereótipo de femme fatale: Chiovatto, que estuda academicamente a representação do feminino, rechaça qualquer tipo de arquétipo gasto e vai polvilhando a personagem forte de vulnerabilidades e traumas do passado. Porém Bruxa usa da fantasia justamente para tratar de assédio, machismo, intolerância religiosa, relacionamentos abusivos, homofobia, violência policial e vários outros temas urgentes em pauta sem cair numa narrativa panfletária ou didática. "O romance realista contemporâneo põe a experiência do autor, mas o romance fantástico contemporâneo também. A experiência do autor está permeando a construção de mundo dele, a forma como ele retrata esse mundo, o que escolhe ocultar e mostrar."
A escritora Ana Rüsche publicou recentemente A Telepatia São os Outros (Monomito Editorial), novela em que Irene, uma mulher em crise de meia-idade, se redescobre ao passar por um retiro em um vilarejo chileno. Assim como no livro de Chiovatto, a trama seria comum, não fosse por um aspecto: no Chile, experimenta uma substância queproporciona habilidades telepáticas a ela e seus colegas.
"O livro explora a obrigação de estar o tempo inteiro em contato com outras pessoas, o que eu acho até desagradável. O mundo em que as pessoas se comunicam o tempo inteiro é quase como se não houvesse opção, Inclusive a protagonista mal usa o celular", conta Rüsche, que aborda os lados negativos da hiperconectividade do mundo contemporâneo pelo viés fantástico da telepatia -- por isso, o título do livro faz referência ao aforismo de Jean-Paul Sartre (“O inferno são os outros”).
Levar uma protagonista paulistana para o Chile reforça o sentimento de latinidade que Rüsche pretende transmitir com sua novela. "Achei importante inserir o Brasil na América Latina, porque geralmente nós não sentimos ter relação com o lado de lá do Tratado de Tordesilhas, que é uma barreira muito mais cultural do que geográfica."
Usar de elementos narrativos como ervas medicinais em vez de máquinas ou laboratórios avançados faz com que a obra dialogue com a realidade da produção científica no continente. "Nossa síndrome de vira-lata faz com que, quando a gente faz ficção científica, sempre procuremos trazer nossa falta de ciência", analisa a autora. À moda latina, A Telepatia São os Outros é uma fantasia urbana que faz uma reflexão sobre a combinação entre tecnologias de comunicação avançadas e o sentimento cada vez mais gritante de isolamento contemporâneo.
Outros romances recentes também abordam cenários comuns aos brasileiros no registro da literatura fantástica. Serpentário (Intrínseca), de Felipe Castilho, é uma obra de terror que se passa, em grande medida, na Ilha das Cobras, no litoral norte de São Paulo, com protagonistas paulistanos. A Floresta das Árvores Retorcidas (Pipoca & Nanquim), de Alexandre Callari, tem uma trama inspirada na mitologia de H.P. Lovecraft, mas mesclando o horror cósmico com o pano de fundo de uma cidade do interior de São Paulo nos anos 1990.
Para Carol Chiovatto, a tendência de situar ficções especulativas ou sobrenaturais no Brasil é recente e está se desenvolvendo desde Os Sete (1999), de André Vianco. "É um esforço consciente. A tradição do autor nacional no fantástico é uma luta constante, mas agora há um movimento mais sólido pela brasilidade."