Marcelo Mirisola: 'Vivemos hoje uma calamidade'


Em novo livro 'Quanto Custa Um Elefante?', escritor dá mais potência à forma literária e cria uma das primeiras personagens bolsonaristas da literatura

Por Guilherme Sobota

O novo romance de Marcelo MirisolaQuanto Custa Um Elefante?, lançado agora pela editora 34 – fecha uma trilogia em que o narrador, sempre a um passo do que se pode chamar de realidade, vai buscar um pacto com o diabo para recuperar a mulher amada. Nos últimos três livros, ela atende por Ruína.

“Eu jamais, mesmo sendo insistentemente ameaçado, ia conseguir esquecer Ruína, o diabo do meu coração dizia o contrário”, nos conta o Marcelo do livro, logo na primeira página. Com a questão do dinheiro afastada – o personagem conta que virou “personalité”, via loteamentos, precatórios e herança –, ele então apela para um último recurso e entra em contato com a Mãe Valéria.

Diz o narrador: “Antes de prosseguir, creio que é importante ressaltar e lembrar: não é que procurei o diabo. Podia ter ido a um psicanalista argentino, mas fui atrás de uma mãe de santo porque estava completamente desorientado; sobrenatural por sobrenatural, troquei Freud pela macumba, só isso”.

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O autor. 'Nessas horas, não adianta dar chiliques', diz sobre o isolamento social que vem enfrentandocom tranquilidade Foto: Marcio Fernandes/Estadão

A Mãe Valéria, então, ciente de que o diabo não estava interessado na alma do escritor, “mais um pierrô apaixonado chorando pelo amor de uma colombina no meio de uma multidão de cornos igualmente desiludidos e apaixonados”, sugere um pacto financeiro com o “coiso”. Negociador fino, o chifrudo pede seis elefantes. Daí a pergunta do título.

Depois de algumas cerimônias no congá da mãe de santo em São Paulo, a convicção de estar no caminho certo chega ao personagem quando, “às vésperas das eleições de 2018, ela, sinceramente convicta, embargada e enternecida, me falou que seu sonho era ver os netos no colégio militar e que ia votar no Bolsonaro para acabar com a p... no Brasil”.

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“Não há contradição em mãe Valéria”, debate o escritor, de carne e osso, em uma troca de e-mails com a reportagem. “Qual a diferença entre uma mãe de santo vigarista e um vendedor de semente de feijão? Aliás, não há muita contradição nas religiões criadas pelo homem. A maioria trabalha no sentido oposto ao evangelho e coopera para o engodo e a mentira.”

O romance tem uma estrutura diferente dos outros livros mais recentes de Mirisola, Como Se Me Fumasse (2017) e A Vida Não Tem Cura (2016). O narrador lembra de fatos passados, sim, mas o jeito de contar aqui é diferente. Ele discorda e elabora: “Se a forma não é tudo, é 100%. É a forma que dá sentido ao conteúdo, ora, se, desde os sumérios sabemos que o conteúdo do ser humano não é lá grande coisa e não vai mudar muito, a forma e o planejamento, em tese, seriam as salvações. Este é o ponto central do Elefante. Quando o autor perde o controle do enredo. Quando se desestrutura. E tem de se virar com o conteúdo. Daí vem a impressão que a forma mudou. Não. Ocorreu uma fusão. Acho, no final das contas, que dei sorte porque consegui equilibrar as coisas e sobreviver ao livro”.

No romance, o narrador enfim ganha a chance de passar um fim de semana com Ruína no Rio de Janeiro. Embora ele mesmo passe o livro tentando justificar para si mesmo o amor descontrolado por uma pessoa que pisou na bola repetidas vezes nos últimos anos, o universo – ou o diabo – dá um jeito de colocar os dois juntos. Os fatos então se acumulam e, como é característico em sua obra, é sempre mais prudente desconfiar do narrador de Mirisola.

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Crítico voraz de uma parte da literatura brasileira contemporânea, o escritor, porém, não vê paralelos entre conservadorismo político e conservadorismo literário. “Não consigo aproximar as duas coisas. Acho, inclusive, que a literatura brasileira anda meio fraquinha porque os autores se entregaram de corpo e alma ao espírito do tempo. Ocorre que o espírito do nosso tempo é mais político-partidário do que literário. Daí o engajamento, as causas justas e prementes e as patrulhas dessas causas que aniquilam os talentos e comprometem a liberdade, a assistência social no lugar da arte, a chatice, enfim, que campeia de norte a sul e de leste a oeste.”

Apesar de frequentar a página dos jornais com frequência com seus livros (e às vezes, também, envolvido em discussões e confusões de outras esferas), o escritor acredita que, nos últimos anos, foi mesmo boicotado pelos pares. “Acabei mirisolado. E acabei gostando”, conta. Por isso, está levando o isolamento social imposto pela pandemia com tranquilidade. “Nessas horas, não adianta dar chiliques. Mas sem dúvida vivemos uma calamidade. Acho que, se uma bomba atômica tivesse caído sobre o Brasil, o estrago não teria sido tão grande. Quase uma guerra civil dentro de uma pandemia. Esses políticos de m..., no mínimo, deviam respeitar o luto das pessoas. Enfim, estamos numa sinuca de bico. Nessa hora, precisaríamos de um Rui Chapéu para encontrar uma saída. Mas um bando de bonobos invadiu o salão e resolveu que mesa de bilhar agora é octógono de MMA.”

O escritor diz já estar esboçando alguma coisa sobre fatos políticos mais à flor da pele e, quando questionado sobre o que pensa do atual presidente do Brasil, usa sua mordacidade conhecida: “É o chefe dos bonobos”.

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Trecho de 'Quanto Custa um Elefante?', de Marcelo Mirisola:

“Tinha acabado de derrubar uma garrafa de uísque no Finnegan’s, ia eu lá, desesperado e ainda crédulo em busca da próxima dose e de um maledetto sentido para a vida, descia a Artur de Azevedo, dando graças a Deus e ao mesmo tempo amaldiçoando, a ele e ao seu sócio, o diabo, porque, entre outras coisas, meu tesão por Ruína e o cartão de crédito ainda funcionavam, descia a ladeira em zigue-zague até que alcancei a esquina da rua Lisboa, e parei no Pinguim:

– Teacher’s, amigo. Põe duas doses, por favor.

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Aconteceu num átimo, entre o balconista virar as costas, pegar a garrafa na prateleira e encher meu copo. Nesse exato momento perdi a fé em Deus e no diabo, e por pouco não viro um clássico.

Juro por Deus, perdi a fé no diabo.

E é por isso que estou aqui, de volta à escrita, descumprindo mais uma vez a promessa que fiz a mim mesmo, pois quando escrevo não faz diferença alguma acreditar em Deus ou desacreditar no diabo – e vice-versa.”

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QUANTO CUSTA UM ELEFANTE?

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (128 págs., R$ 42)

O novo romance de Marcelo MirisolaQuanto Custa Um Elefante?, lançado agora pela editora 34 – fecha uma trilogia em que o narrador, sempre a um passo do que se pode chamar de realidade, vai buscar um pacto com o diabo para recuperar a mulher amada. Nos últimos três livros, ela atende por Ruína.

“Eu jamais, mesmo sendo insistentemente ameaçado, ia conseguir esquecer Ruína, o diabo do meu coração dizia o contrário”, nos conta o Marcelo do livro, logo na primeira página. Com a questão do dinheiro afastada – o personagem conta que virou “personalité”, via loteamentos, precatórios e herança –, ele então apela para um último recurso e entra em contato com a Mãe Valéria.

Diz o narrador: “Antes de prosseguir, creio que é importante ressaltar e lembrar: não é que procurei o diabo. Podia ter ido a um psicanalista argentino, mas fui atrás de uma mãe de santo porque estava completamente desorientado; sobrenatural por sobrenatural, troquei Freud pela macumba, só isso”.

O autor. 'Nessas horas, não adianta dar chiliques', diz sobre o isolamento social que vem enfrentandocom tranquilidade Foto: Marcio Fernandes/Estadão

A Mãe Valéria, então, ciente de que o diabo não estava interessado na alma do escritor, “mais um pierrô apaixonado chorando pelo amor de uma colombina no meio de uma multidão de cornos igualmente desiludidos e apaixonados”, sugere um pacto financeiro com o “coiso”. Negociador fino, o chifrudo pede seis elefantes. Daí a pergunta do título.

Depois de algumas cerimônias no congá da mãe de santo em São Paulo, a convicção de estar no caminho certo chega ao personagem quando, “às vésperas das eleições de 2018, ela, sinceramente convicta, embargada e enternecida, me falou que seu sonho era ver os netos no colégio militar e que ia votar no Bolsonaro para acabar com a p... no Brasil”.

“Não há contradição em mãe Valéria”, debate o escritor, de carne e osso, em uma troca de e-mails com a reportagem. “Qual a diferença entre uma mãe de santo vigarista e um vendedor de semente de feijão? Aliás, não há muita contradição nas religiões criadas pelo homem. A maioria trabalha no sentido oposto ao evangelho e coopera para o engodo e a mentira.”

O romance tem uma estrutura diferente dos outros livros mais recentes de Mirisola, Como Se Me Fumasse (2017) e A Vida Não Tem Cura (2016). O narrador lembra de fatos passados, sim, mas o jeito de contar aqui é diferente. Ele discorda e elabora: “Se a forma não é tudo, é 100%. É a forma que dá sentido ao conteúdo, ora, se, desde os sumérios sabemos que o conteúdo do ser humano não é lá grande coisa e não vai mudar muito, a forma e o planejamento, em tese, seriam as salvações. Este é o ponto central do Elefante. Quando o autor perde o controle do enredo. Quando se desestrutura. E tem de se virar com o conteúdo. Daí vem a impressão que a forma mudou. Não. Ocorreu uma fusão. Acho, no final das contas, que dei sorte porque consegui equilibrar as coisas e sobreviver ao livro”.

No romance, o narrador enfim ganha a chance de passar um fim de semana com Ruína no Rio de Janeiro. Embora ele mesmo passe o livro tentando justificar para si mesmo o amor descontrolado por uma pessoa que pisou na bola repetidas vezes nos últimos anos, o universo – ou o diabo – dá um jeito de colocar os dois juntos. Os fatos então se acumulam e, como é característico em sua obra, é sempre mais prudente desconfiar do narrador de Mirisola.

Crítico voraz de uma parte da literatura brasileira contemporânea, o escritor, porém, não vê paralelos entre conservadorismo político e conservadorismo literário. “Não consigo aproximar as duas coisas. Acho, inclusive, que a literatura brasileira anda meio fraquinha porque os autores se entregaram de corpo e alma ao espírito do tempo. Ocorre que o espírito do nosso tempo é mais político-partidário do que literário. Daí o engajamento, as causas justas e prementes e as patrulhas dessas causas que aniquilam os talentos e comprometem a liberdade, a assistência social no lugar da arte, a chatice, enfim, que campeia de norte a sul e de leste a oeste.”

Apesar de frequentar a página dos jornais com frequência com seus livros (e às vezes, também, envolvido em discussões e confusões de outras esferas), o escritor acredita que, nos últimos anos, foi mesmo boicotado pelos pares. “Acabei mirisolado. E acabei gostando”, conta. Por isso, está levando o isolamento social imposto pela pandemia com tranquilidade. “Nessas horas, não adianta dar chiliques. Mas sem dúvida vivemos uma calamidade. Acho que, se uma bomba atômica tivesse caído sobre o Brasil, o estrago não teria sido tão grande. Quase uma guerra civil dentro de uma pandemia. Esses políticos de m..., no mínimo, deviam respeitar o luto das pessoas. Enfim, estamos numa sinuca de bico. Nessa hora, precisaríamos de um Rui Chapéu para encontrar uma saída. Mas um bando de bonobos invadiu o salão e resolveu que mesa de bilhar agora é octógono de MMA.”

O escritor diz já estar esboçando alguma coisa sobre fatos políticos mais à flor da pele e, quando questionado sobre o que pensa do atual presidente do Brasil, usa sua mordacidade conhecida: “É o chefe dos bonobos”.

Trecho de 'Quanto Custa um Elefante?', de Marcelo Mirisola:

“Tinha acabado de derrubar uma garrafa de uísque no Finnegan’s, ia eu lá, desesperado e ainda crédulo em busca da próxima dose e de um maledetto sentido para a vida, descia a Artur de Azevedo, dando graças a Deus e ao mesmo tempo amaldiçoando, a ele e ao seu sócio, o diabo, porque, entre outras coisas, meu tesão por Ruína e o cartão de crédito ainda funcionavam, descia a ladeira em zigue-zague até que alcancei a esquina da rua Lisboa, e parei no Pinguim:

– Teacher’s, amigo. Põe duas doses, por favor.

Aconteceu num átimo, entre o balconista virar as costas, pegar a garrafa na prateleira e encher meu copo. Nesse exato momento perdi a fé em Deus e no diabo, e por pouco não viro um clássico.

Juro por Deus, perdi a fé no diabo.

E é por isso que estou aqui, de volta à escrita, descumprindo mais uma vez a promessa que fiz a mim mesmo, pois quando escrevo não faz diferença alguma acreditar em Deus ou desacreditar no diabo – e vice-versa.”

QUANTO CUSTA UM ELEFANTE?

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (128 págs., R$ 42)

O novo romance de Marcelo MirisolaQuanto Custa Um Elefante?, lançado agora pela editora 34 – fecha uma trilogia em que o narrador, sempre a um passo do que se pode chamar de realidade, vai buscar um pacto com o diabo para recuperar a mulher amada. Nos últimos três livros, ela atende por Ruína.

“Eu jamais, mesmo sendo insistentemente ameaçado, ia conseguir esquecer Ruína, o diabo do meu coração dizia o contrário”, nos conta o Marcelo do livro, logo na primeira página. Com a questão do dinheiro afastada – o personagem conta que virou “personalité”, via loteamentos, precatórios e herança –, ele então apela para um último recurso e entra em contato com a Mãe Valéria.

Diz o narrador: “Antes de prosseguir, creio que é importante ressaltar e lembrar: não é que procurei o diabo. Podia ter ido a um psicanalista argentino, mas fui atrás de uma mãe de santo porque estava completamente desorientado; sobrenatural por sobrenatural, troquei Freud pela macumba, só isso”.

O autor. 'Nessas horas, não adianta dar chiliques', diz sobre o isolamento social que vem enfrentandocom tranquilidade Foto: Marcio Fernandes/Estadão

A Mãe Valéria, então, ciente de que o diabo não estava interessado na alma do escritor, “mais um pierrô apaixonado chorando pelo amor de uma colombina no meio de uma multidão de cornos igualmente desiludidos e apaixonados”, sugere um pacto financeiro com o “coiso”. Negociador fino, o chifrudo pede seis elefantes. Daí a pergunta do título.

Depois de algumas cerimônias no congá da mãe de santo em São Paulo, a convicção de estar no caminho certo chega ao personagem quando, “às vésperas das eleições de 2018, ela, sinceramente convicta, embargada e enternecida, me falou que seu sonho era ver os netos no colégio militar e que ia votar no Bolsonaro para acabar com a p... no Brasil”.

“Não há contradição em mãe Valéria”, debate o escritor, de carne e osso, em uma troca de e-mails com a reportagem. “Qual a diferença entre uma mãe de santo vigarista e um vendedor de semente de feijão? Aliás, não há muita contradição nas religiões criadas pelo homem. A maioria trabalha no sentido oposto ao evangelho e coopera para o engodo e a mentira.”

O romance tem uma estrutura diferente dos outros livros mais recentes de Mirisola, Como Se Me Fumasse (2017) e A Vida Não Tem Cura (2016). O narrador lembra de fatos passados, sim, mas o jeito de contar aqui é diferente. Ele discorda e elabora: “Se a forma não é tudo, é 100%. É a forma que dá sentido ao conteúdo, ora, se, desde os sumérios sabemos que o conteúdo do ser humano não é lá grande coisa e não vai mudar muito, a forma e o planejamento, em tese, seriam as salvações. Este é o ponto central do Elefante. Quando o autor perde o controle do enredo. Quando se desestrutura. E tem de se virar com o conteúdo. Daí vem a impressão que a forma mudou. Não. Ocorreu uma fusão. Acho, no final das contas, que dei sorte porque consegui equilibrar as coisas e sobreviver ao livro”.

No romance, o narrador enfim ganha a chance de passar um fim de semana com Ruína no Rio de Janeiro. Embora ele mesmo passe o livro tentando justificar para si mesmo o amor descontrolado por uma pessoa que pisou na bola repetidas vezes nos últimos anos, o universo – ou o diabo – dá um jeito de colocar os dois juntos. Os fatos então se acumulam e, como é característico em sua obra, é sempre mais prudente desconfiar do narrador de Mirisola.

Crítico voraz de uma parte da literatura brasileira contemporânea, o escritor, porém, não vê paralelos entre conservadorismo político e conservadorismo literário. “Não consigo aproximar as duas coisas. Acho, inclusive, que a literatura brasileira anda meio fraquinha porque os autores se entregaram de corpo e alma ao espírito do tempo. Ocorre que o espírito do nosso tempo é mais político-partidário do que literário. Daí o engajamento, as causas justas e prementes e as patrulhas dessas causas que aniquilam os talentos e comprometem a liberdade, a assistência social no lugar da arte, a chatice, enfim, que campeia de norte a sul e de leste a oeste.”

Apesar de frequentar a página dos jornais com frequência com seus livros (e às vezes, também, envolvido em discussões e confusões de outras esferas), o escritor acredita que, nos últimos anos, foi mesmo boicotado pelos pares. “Acabei mirisolado. E acabei gostando”, conta. Por isso, está levando o isolamento social imposto pela pandemia com tranquilidade. “Nessas horas, não adianta dar chiliques. Mas sem dúvida vivemos uma calamidade. Acho que, se uma bomba atômica tivesse caído sobre o Brasil, o estrago não teria sido tão grande. Quase uma guerra civil dentro de uma pandemia. Esses políticos de m..., no mínimo, deviam respeitar o luto das pessoas. Enfim, estamos numa sinuca de bico. Nessa hora, precisaríamos de um Rui Chapéu para encontrar uma saída. Mas um bando de bonobos invadiu o salão e resolveu que mesa de bilhar agora é octógono de MMA.”

O escritor diz já estar esboçando alguma coisa sobre fatos políticos mais à flor da pele e, quando questionado sobre o que pensa do atual presidente do Brasil, usa sua mordacidade conhecida: “É o chefe dos bonobos”.

Trecho de 'Quanto Custa um Elefante?', de Marcelo Mirisola:

“Tinha acabado de derrubar uma garrafa de uísque no Finnegan’s, ia eu lá, desesperado e ainda crédulo em busca da próxima dose e de um maledetto sentido para a vida, descia a Artur de Azevedo, dando graças a Deus e ao mesmo tempo amaldiçoando, a ele e ao seu sócio, o diabo, porque, entre outras coisas, meu tesão por Ruína e o cartão de crédito ainda funcionavam, descia a ladeira em zigue-zague até que alcancei a esquina da rua Lisboa, e parei no Pinguim:

– Teacher’s, amigo. Põe duas doses, por favor.

Aconteceu num átimo, entre o balconista virar as costas, pegar a garrafa na prateleira e encher meu copo. Nesse exato momento perdi a fé em Deus e no diabo, e por pouco não viro um clássico.

Juro por Deus, perdi a fé no diabo.

E é por isso que estou aqui, de volta à escrita, descumprindo mais uma vez a promessa que fiz a mim mesmo, pois quando escrevo não faz diferença alguma acreditar em Deus ou desacreditar no diabo – e vice-versa.”

QUANTO CUSTA UM ELEFANTE?

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (128 págs., R$ 42)

O novo romance de Marcelo MirisolaQuanto Custa Um Elefante?, lançado agora pela editora 34 – fecha uma trilogia em que o narrador, sempre a um passo do que se pode chamar de realidade, vai buscar um pacto com o diabo para recuperar a mulher amada. Nos últimos três livros, ela atende por Ruína.

“Eu jamais, mesmo sendo insistentemente ameaçado, ia conseguir esquecer Ruína, o diabo do meu coração dizia o contrário”, nos conta o Marcelo do livro, logo na primeira página. Com a questão do dinheiro afastada – o personagem conta que virou “personalité”, via loteamentos, precatórios e herança –, ele então apela para um último recurso e entra em contato com a Mãe Valéria.

Diz o narrador: “Antes de prosseguir, creio que é importante ressaltar e lembrar: não é que procurei o diabo. Podia ter ido a um psicanalista argentino, mas fui atrás de uma mãe de santo porque estava completamente desorientado; sobrenatural por sobrenatural, troquei Freud pela macumba, só isso”.

O autor. 'Nessas horas, não adianta dar chiliques', diz sobre o isolamento social que vem enfrentandocom tranquilidade Foto: Marcio Fernandes/Estadão

A Mãe Valéria, então, ciente de que o diabo não estava interessado na alma do escritor, “mais um pierrô apaixonado chorando pelo amor de uma colombina no meio de uma multidão de cornos igualmente desiludidos e apaixonados”, sugere um pacto financeiro com o “coiso”. Negociador fino, o chifrudo pede seis elefantes. Daí a pergunta do título.

Depois de algumas cerimônias no congá da mãe de santo em São Paulo, a convicção de estar no caminho certo chega ao personagem quando, “às vésperas das eleições de 2018, ela, sinceramente convicta, embargada e enternecida, me falou que seu sonho era ver os netos no colégio militar e que ia votar no Bolsonaro para acabar com a p... no Brasil”.

“Não há contradição em mãe Valéria”, debate o escritor, de carne e osso, em uma troca de e-mails com a reportagem. “Qual a diferença entre uma mãe de santo vigarista e um vendedor de semente de feijão? Aliás, não há muita contradição nas religiões criadas pelo homem. A maioria trabalha no sentido oposto ao evangelho e coopera para o engodo e a mentira.”

O romance tem uma estrutura diferente dos outros livros mais recentes de Mirisola, Como Se Me Fumasse (2017) e A Vida Não Tem Cura (2016). O narrador lembra de fatos passados, sim, mas o jeito de contar aqui é diferente. Ele discorda e elabora: “Se a forma não é tudo, é 100%. É a forma que dá sentido ao conteúdo, ora, se, desde os sumérios sabemos que o conteúdo do ser humano não é lá grande coisa e não vai mudar muito, a forma e o planejamento, em tese, seriam as salvações. Este é o ponto central do Elefante. Quando o autor perde o controle do enredo. Quando se desestrutura. E tem de se virar com o conteúdo. Daí vem a impressão que a forma mudou. Não. Ocorreu uma fusão. Acho, no final das contas, que dei sorte porque consegui equilibrar as coisas e sobreviver ao livro”.

No romance, o narrador enfim ganha a chance de passar um fim de semana com Ruína no Rio de Janeiro. Embora ele mesmo passe o livro tentando justificar para si mesmo o amor descontrolado por uma pessoa que pisou na bola repetidas vezes nos últimos anos, o universo – ou o diabo – dá um jeito de colocar os dois juntos. Os fatos então se acumulam e, como é característico em sua obra, é sempre mais prudente desconfiar do narrador de Mirisola.

Crítico voraz de uma parte da literatura brasileira contemporânea, o escritor, porém, não vê paralelos entre conservadorismo político e conservadorismo literário. “Não consigo aproximar as duas coisas. Acho, inclusive, que a literatura brasileira anda meio fraquinha porque os autores se entregaram de corpo e alma ao espírito do tempo. Ocorre que o espírito do nosso tempo é mais político-partidário do que literário. Daí o engajamento, as causas justas e prementes e as patrulhas dessas causas que aniquilam os talentos e comprometem a liberdade, a assistência social no lugar da arte, a chatice, enfim, que campeia de norte a sul e de leste a oeste.”

Apesar de frequentar a página dos jornais com frequência com seus livros (e às vezes, também, envolvido em discussões e confusões de outras esferas), o escritor acredita que, nos últimos anos, foi mesmo boicotado pelos pares. “Acabei mirisolado. E acabei gostando”, conta. Por isso, está levando o isolamento social imposto pela pandemia com tranquilidade. “Nessas horas, não adianta dar chiliques. Mas sem dúvida vivemos uma calamidade. Acho que, se uma bomba atômica tivesse caído sobre o Brasil, o estrago não teria sido tão grande. Quase uma guerra civil dentro de uma pandemia. Esses políticos de m..., no mínimo, deviam respeitar o luto das pessoas. Enfim, estamos numa sinuca de bico. Nessa hora, precisaríamos de um Rui Chapéu para encontrar uma saída. Mas um bando de bonobos invadiu o salão e resolveu que mesa de bilhar agora é octógono de MMA.”

O escritor diz já estar esboçando alguma coisa sobre fatos políticos mais à flor da pele e, quando questionado sobre o que pensa do atual presidente do Brasil, usa sua mordacidade conhecida: “É o chefe dos bonobos”.

Trecho de 'Quanto Custa um Elefante?', de Marcelo Mirisola:

“Tinha acabado de derrubar uma garrafa de uísque no Finnegan’s, ia eu lá, desesperado e ainda crédulo em busca da próxima dose e de um maledetto sentido para a vida, descia a Artur de Azevedo, dando graças a Deus e ao mesmo tempo amaldiçoando, a ele e ao seu sócio, o diabo, porque, entre outras coisas, meu tesão por Ruína e o cartão de crédito ainda funcionavam, descia a ladeira em zigue-zague até que alcancei a esquina da rua Lisboa, e parei no Pinguim:

– Teacher’s, amigo. Põe duas doses, por favor.

Aconteceu num átimo, entre o balconista virar as costas, pegar a garrafa na prateleira e encher meu copo. Nesse exato momento perdi a fé em Deus e no diabo, e por pouco não viro um clássico.

Juro por Deus, perdi a fé no diabo.

E é por isso que estou aqui, de volta à escrita, descumprindo mais uma vez a promessa que fiz a mim mesmo, pois quando escrevo não faz diferença alguma acreditar em Deus ou desacreditar no diabo – e vice-versa.”

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Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (128 págs., R$ 42)

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