Marcelo Mirisola volta a explorar suas obsessões em ‘Como Se Me Fumasse’


Amor, ódio, família, um afeto firme pelo Brasil e a revisão dos seus 20 anos de carreira são temas do novo livro do escritor

Por Guilherme Sobota

Em uma das cenas do novo romance de Marcelo Mirisola, Como Se Me Fumasse, o pai do narrador olha para rascunhos espalhados pela sala e, ao descobrir que são escritos de ficção, vaticina: “Isso e merda são mesma coisa”.

A discussão do que é memória e do que é imaginação na prosa de Mirisola é um dos fatores que marcam a carreira do escritor, cujo primeiro livro foi publicado há 20 anos (Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia). A despeito de quem acha que o gênero – autoficção – já se esgotou, ele é categórico. “É a soberba dos críticos diante da autoficção que está esgotada”, diz, numa troca de e-mails. “Eles não aguentam mais desqualificar o gênero. E eu sigo firme e forte, continuo azucrinando a vida e a ‘autoridade’ deles.”

A questão é que Como Se Me Fumasse, seu oitavo romance, segue vencendo ao apostar mais fichas na mesma mão: levar a narrativa em primeira pessoa para um passeio duplo, pelo Brasil explorado freneticamente pelo narrador/autor, e para dentro de suas obsessões: amor e ódio, para resumir.

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Marcelo Mirisola. 'Faz 20 anos que nado contra a maré' Foto: MARCIO FERNANDES/ESTADAO

No livro, uma personagem – Ruína, que acaba por se tornar uma representação de todos os amores do narrador – reaparece na sua vida um dia depois do enterro da mãe dele. Um beijo depois: “Eu sempre perco o controle com Ruína, e ela finge que não sabe que eu perco o controle, e sorri. Então dá a primeira tragada, e sopra a fumaça na direção do teto, como se me fumasse. Automático. A mesma boca, o mesmo sorriso e o beijo em seguida. Mil anos se passarão e nos beijaremos do mesmo jeito”.

Além dos amores – num plural que o narrador reconhece com lirismo catalográfico –, a família ocupa lugar central no livro. A mãe (quase sempre) zelosa e o pai: “Uma inconstância ambulante, o rei da improvisação e da imprevisibilidade, volúvel, precário, mesquinho”, que embarca nas ideias do filho para tentar sobreviver antes de engatar na literatura. As tentativas passam por estudar agronomia no interior, fazer garimpo na Serra da Canastra, faculdade de direito, um barco de pesca em Santa Catarina, temporadas em Santos e no Rio de Janeiro.

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+ Marcelo Mirisola capricha no sadismo em 'A Vida Não Tem Cura'

Ainda além dos amores, da família e dos deslocamentos, Mirisola faz uma revisão sincera dos seus 20 anos na literatura, dando nome aos bois: “... escrevo deliberadamente na primeira pessoa, e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador, atingi meu objetivo”, diz, no mesmo capítulo em que admite: “Misturei as coisas e caí na minha própria armadilha, alucinei”. Embora o tom seja de revisão, duas páginas depois ele faz sua maior diatribe nesse livro, ao nomear um outro conhecido escritor brasileiro contemporâneo como “Boca de Siri”.

Mesmo com as tintas autobiográficas ainda cheirando forte, Mirisola reafirma a necessidade de distinguir memória e imaginação: “Porque se você não tem controle sobre o que faz corre um risco seriíssimo de enlouquecer. Ficção é para os fortes; e a autoficção demanda mais controle e força, uma atividade para gente que não tem medo de perder a alma. O diagnóstico de Jung a respeito da filha de Joyce é exemplar: ‘Nas águas que você navega – disse Jung – ela se afoga’”.

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Sentindo-se consagrado com o que diz ser seu melhor livro, o escritor paulistano encontrou uma oportunidade de fazer uma espécie de chamamento (na vida real) para artistas e escritores. No fim do ano passado, com as polêmicas envolvendo arte e sexualidade nos museus de São Paulo, ele escreveu no Facebook: “Quem é do ramo (ou quem apavora o sono dos justos) tem uma oportunidade histórica de tripudiar, invadir, barbarizar e botar pra f* sem dó nem piedade. É hora de hastear a bandeira pirata e partir pro crime, é agora ou nunca, cambada de cagões”. Eram as semanas em que MBL e outros movimentos protestavam pelo fechamento de exposições e a expiação de artistas.

+ 'Hosana na Sarjeta' não é bem uma história de amor, mas uma odisseia mundana

“Problema é que para fazer arte é necessário mais do que mobilização, é preciso talento e coragem”, afirma Mirisola, agora. “Artigos que faltam na feirinha de vaidades, mesquinharias & conveniências que vivemos. É o que eu sempre digo: onde falta talento e coragem sobra patrulha e mesquinharia.”

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Mas por que as manifestações contrárias à expressão artística tiveram tanta reverberação?

“O espaço do talento foi ocupado pelas sombras. Só existe uma única maneira de abalar e confrontar a caretice – repito –, confronta-se a caretice com talento e coragem, mas cadê?”

COMO SE ME FUMASSE

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Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (176 págs., R$ 41)

Em uma das cenas do novo romance de Marcelo Mirisola, Como Se Me Fumasse, o pai do narrador olha para rascunhos espalhados pela sala e, ao descobrir que são escritos de ficção, vaticina: “Isso e merda são mesma coisa”.

A discussão do que é memória e do que é imaginação na prosa de Mirisola é um dos fatores que marcam a carreira do escritor, cujo primeiro livro foi publicado há 20 anos (Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia). A despeito de quem acha que o gênero – autoficção – já se esgotou, ele é categórico. “É a soberba dos críticos diante da autoficção que está esgotada”, diz, numa troca de e-mails. “Eles não aguentam mais desqualificar o gênero. E eu sigo firme e forte, continuo azucrinando a vida e a ‘autoridade’ deles.”

A questão é que Como Se Me Fumasse, seu oitavo romance, segue vencendo ao apostar mais fichas na mesma mão: levar a narrativa em primeira pessoa para um passeio duplo, pelo Brasil explorado freneticamente pelo narrador/autor, e para dentro de suas obsessões: amor e ódio, para resumir.

Marcelo Mirisola. 'Faz 20 anos que nado contra a maré' Foto: MARCIO FERNANDES/ESTADAO

No livro, uma personagem – Ruína, que acaba por se tornar uma representação de todos os amores do narrador – reaparece na sua vida um dia depois do enterro da mãe dele. Um beijo depois: “Eu sempre perco o controle com Ruína, e ela finge que não sabe que eu perco o controle, e sorri. Então dá a primeira tragada, e sopra a fumaça na direção do teto, como se me fumasse. Automático. A mesma boca, o mesmo sorriso e o beijo em seguida. Mil anos se passarão e nos beijaremos do mesmo jeito”.

Além dos amores – num plural que o narrador reconhece com lirismo catalográfico –, a família ocupa lugar central no livro. A mãe (quase sempre) zelosa e o pai: “Uma inconstância ambulante, o rei da improvisação e da imprevisibilidade, volúvel, precário, mesquinho”, que embarca nas ideias do filho para tentar sobreviver antes de engatar na literatura. As tentativas passam por estudar agronomia no interior, fazer garimpo na Serra da Canastra, faculdade de direito, um barco de pesca em Santa Catarina, temporadas em Santos e no Rio de Janeiro.

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Ainda além dos amores, da família e dos deslocamentos, Mirisola faz uma revisão sincera dos seus 20 anos na literatura, dando nome aos bois: “... escrevo deliberadamente na primeira pessoa, e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador, atingi meu objetivo”, diz, no mesmo capítulo em que admite: “Misturei as coisas e caí na minha própria armadilha, alucinei”. Embora o tom seja de revisão, duas páginas depois ele faz sua maior diatribe nesse livro, ao nomear um outro conhecido escritor brasileiro contemporâneo como “Boca de Siri”.

Mesmo com as tintas autobiográficas ainda cheirando forte, Mirisola reafirma a necessidade de distinguir memória e imaginação: “Porque se você não tem controle sobre o que faz corre um risco seriíssimo de enlouquecer. Ficção é para os fortes; e a autoficção demanda mais controle e força, uma atividade para gente que não tem medo de perder a alma. O diagnóstico de Jung a respeito da filha de Joyce é exemplar: ‘Nas águas que você navega – disse Jung – ela se afoga’”.

Sentindo-se consagrado com o que diz ser seu melhor livro, o escritor paulistano encontrou uma oportunidade de fazer uma espécie de chamamento (na vida real) para artistas e escritores. No fim do ano passado, com as polêmicas envolvendo arte e sexualidade nos museus de São Paulo, ele escreveu no Facebook: “Quem é do ramo (ou quem apavora o sono dos justos) tem uma oportunidade histórica de tripudiar, invadir, barbarizar e botar pra f* sem dó nem piedade. É hora de hastear a bandeira pirata e partir pro crime, é agora ou nunca, cambada de cagões”. Eram as semanas em que MBL e outros movimentos protestavam pelo fechamento de exposições e a expiação de artistas.

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“Problema é que para fazer arte é necessário mais do que mobilização, é preciso talento e coragem”, afirma Mirisola, agora. “Artigos que faltam na feirinha de vaidades, mesquinharias & conveniências que vivemos. É o que eu sempre digo: onde falta talento e coragem sobra patrulha e mesquinharia.”

Mas por que as manifestações contrárias à expressão artística tiveram tanta reverberação?

“O espaço do talento foi ocupado pelas sombras. Só existe uma única maneira de abalar e confrontar a caretice – repito –, confronta-se a caretice com talento e coragem, mas cadê?”

COMO SE ME FUMASSE

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (176 págs., R$ 41)

Em uma das cenas do novo romance de Marcelo Mirisola, Como Se Me Fumasse, o pai do narrador olha para rascunhos espalhados pela sala e, ao descobrir que são escritos de ficção, vaticina: “Isso e merda são mesma coisa”.

A discussão do que é memória e do que é imaginação na prosa de Mirisola é um dos fatores que marcam a carreira do escritor, cujo primeiro livro foi publicado há 20 anos (Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia). A despeito de quem acha que o gênero – autoficção – já se esgotou, ele é categórico. “É a soberba dos críticos diante da autoficção que está esgotada”, diz, numa troca de e-mails. “Eles não aguentam mais desqualificar o gênero. E eu sigo firme e forte, continuo azucrinando a vida e a ‘autoridade’ deles.”

A questão é que Como Se Me Fumasse, seu oitavo romance, segue vencendo ao apostar mais fichas na mesma mão: levar a narrativa em primeira pessoa para um passeio duplo, pelo Brasil explorado freneticamente pelo narrador/autor, e para dentro de suas obsessões: amor e ódio, para resumir.

Marcelo Mirisola. 'Faz 20 anos que nado contra a maré' Foto: MARCIO FERNANDES/ESTADAO

No livro, uma personagem – Ruína, que acaba por se tornar uma representação de todos os amores do narrador – reaparece na sua vida um dia depois do enterro da mãe dele. Um beijo depois: “Eu sempre perco o controle com Ruína, e ela finge que não sabe que eu perco o controle, e sorri. Então dá a primeira tragada, e sopra a fumaça na direção do teto, como se me fumasse. Automático. A mesma boca, o mesmo sorriso e o beijo em seguida. Mil anos se passarão e nos beijaremos do mesmo jeito”.

Além dos amores – num plural que o narrador reconhece com lirismo catalográfico –, a família ocupa lugar central no livro. A mãe (quase sempre) zelosa e o pai: “Uma inconstância ambulante, o rei da improvisação e da imprevisibilidade, volúvel, precário, mesquinho”, que embarca nas ideias do filho para tentar sobreviver antes de engatar na literatura. As tentativas passam por estudar agronomia no interior, fazer garimpo na Serra da Canastra, faculdade de direito, um barco de pesca em Santa Catarina, temporadas em Santos e no Rio de Janeiro.

+ Marcelo Mirisola capricha no sadismo em 'A Vida Não Tem Cura'

Ainda além dos amores, da família e dos deslocamentos, Mirisola faz uma revisão sincera dos seus 20 anos na literatura, dando nome aos bois: “... escrevo deliberadamente na primeira pessoa, e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador, atingi meu objetivo”, diz, no mesmo capítulo em que admite: “Misturei as coisas e caí na minha própria armadilha, alucinei”. Embora o tom seja de revisão, duas páginas depois ele faz sua maior diatribe nesse livro, ao nomear um outro conhecido escritor brasileiro contemporâneo como “Boca de Siri”.

Mesmo com as tintas autobiográficas ainda cheirando forte, Mirisola reafirma a necessidade de distinguir memória e imaginação: “Porque se você não tem controle sobre o que faz corre um risco seriíssimo de enlouquecer. Ficção é para os fortes; e a autoficção demanda mais controle e força, uma atividade para gente que não tem medo de perder a alma. O diagnóstico de Jung a respeito da filha de Joyce é exemplar: ‘Nas águas que você navega – disse Jung – ela se afoga’”.

Sentindo-se consagrado com o que diz ser seu melhor livro, o escritor paulistano encontrou uma oportunidade de fazer uma espécie de chamamento (na vida real) para artistas e escritores. No fim do ano passado, com as polêmicas envolvendo arte e sexualidade nos museus de São Paulo, ele escreveu no Facebook: “Quem é do ramo (ou quem apavora o sono dos justos) tem uma oportunidade histórica de tripudiar, invadir, barbarizar e botar pra f* sem dó nem piedade. É hora de hastear a bandeira pirata e partir pro crime, é agora ou nunca, cambada de cagões”. Eram as semanas em que MBL e outros movimentos protestavam pelo fechamento de exposições e a expiação de artistas.

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“Problema é que para fazer arte é necessário mais do que mobilização, é preciso talento e coragem”, afirma Mirisola, agora. “Artigos que faltam na feirinha de vaidades, mesquinharias & conveniências que vivemos. É o que eu sempre digo: onde falta talento e coragem sobra patrulha e mesquinharia.”

Mas por que as manifestações contrárias à expressão artística tiveram tanta reverberação?

“O espaço do talento foi ocupado pelas sombras. Só existe uma única maneira de abalar e confrontar a caretice – repito –, confronta-se a caretice com talento e coragem, mas cadê?”

COMO SE ME FUMASSE

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (176 págs., R$ 41)

Em uma das cenas do novo romance de Marcelo Mirisola, Como Se Me Fumasse, o pai do narrador olha para rascunhos espalhados pela sala e, ao descobrir que são escritos de ficção, vaticina: “Isso e merda são mesma coisa”.

A discussão do que é memória e do que é imaginação na prosa de Mirisola é um dos fatores que marcam a carreira do escritor, cujo primeiro livro foi publicado há 20 anos (Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia). A despeito de quem acha que o gênero – autoficção – já se esgotou, ele é categórico. “É a soberba dos críticos diante da autoficção que está esgotada”, diz, numa troca de e-mails. “Eles não aguentam mais desqualificar o gênero. E eu sigo firme e forte, continuo azucrinando a vida e a ‘autoridade’ deles.”

A questão é que Como Se Me Fumasse, seu oitavo romance, segue vencendo ao apostar mais fichas na mesma mão: levar a narrativa em primeira pessoa para um passeio duplo, pelo Brasil explorado freneticamente pelo narrador/autor, e para dentro de suas obsessões: amor e ódio, para resumir.

Marcelo Mirisola. 'Faz 20 anos que nado contra a maré' Foto: MARCIO FERNANDES/ESTADAO

No livro, uma personagem – Ruína, que acaba por se tornar uma representação de todos os amores do narrador – reaparece na sua vida um dia depois do enterro da mãe dele. Um beijo depois: “Eu sempre perco o controle com Ruína, e ela finge que não sabe que eu perco o controle, e sorri. Então dá a primeira tragada, e sopra a fumaça na direção do teto, como se me fumasse. Automático. A mesma boca, o mesmo sorriso e o beijo em seguida. Mil anos se passarão e nos beijaremos do mesmo jeito”.

Além dos amores – num plural que o narrador reconhece com lirismo catalográfico –, a família ocupa lugar central no livro. A mãe (quase sempre) zelosa e o pai: “Uma inconstância ambulante, o rei da improvisação e da imprevisibilidade, volúvel, precário, mesquinho”, que embarca nas ideias do filho para tentar sobreviver antes de engatar na literatura. As tentativas passam por estudar agronomia no interior, fazer garimpo na Serra da Canastra, faculdade de direito, um barco de pesca em Santa Catarina, temporadas em Santos e no Rio de Janeiro.

+ Marcelo Mirisola capricha no sadismo em 'A Vida Não Tem Cura'

Ainda além dos amores, da família e dos deslocamentos, Mirisola faz uma revisão sincera dos seus 20 anos na literatura, dando nome aos bois: “... escrevo deliberadamente na primeira pessoa, e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador, atingi meu objetivo”, diz, no mesmo capítulo em que admite: “Misturei as coisas e caí na minha própria armadilha, alucinei”. Embora o tom seja de revisão, duas páginas depois ele faz sua maior diatribe nesse livro, ao nomear um outro conhecido escritor brasileiro contemporâneo como “Boca de Siri”.

Mesmo com as tintas autobiográficas ainda cheirando forte, Mirisola reafirma a necessidade de distinguir memória e imaginação: “Porque se você não tem controle sobre o que faz corre um risco seriíssimo de enlouquecer. Ficção é para os fortes; e a autoficção demanda mais controle e força, uma atividade para gente que não tem medo de perder a alma. O diagnóstico de Jung a respeito da filha de Joyce é exemplar: ‘Nas águas que você navega – disse Jung – ela se afoga’”.

Sentindo-se consagrado com o que diz ser seu melhor livro, o escritor paulistano encontrou uma oportunidade de fazer uma espécie de chamamento (na vida real) para artistas e escritores. No fim do ano passado, com as polêmicas envolvendo arte e sexualidade nos museus de São Paulo, ele escreveu no Facebook: “Quem é do ramo (ou quem apavora o sono dos justos) tem uma oportunidade histórica de tripudiar, invadir, barbarizar e botar pra f* sem dó nem piedade. É hora de hastear a bandeira pirata e partir pro crime, é agora ou nunca, cambada de cagões”. Eram as semanas em que MBL e outros movimentos protestavam pelo fechamento de exposições e a expiação de artistas.

+ 'Hosana na Sarjeta' não é bem uma história de amor, mas uma odisseia mundana

“Problema é que para fazer arte é necessário mais do que mobilização, é preciso talento e coragem”, afirma Mirisola, agora. “Artigos que faltam na feirinha de vaidades, mesquinharias & conveniências que vivemos. É o que eu sempre digo: onde falta talento e coragem sobra patrulha e mesquinharia.”

Mas por que as manifestações contrárias à expressão artística tiveram tanta reverberação?

“O espaço do talento foi ocupado pelas sombras. Só existe uma única maneira de abalar e confrontar a caretice – repito –, confronta-se a caretice com talento e coragem, mas cadê?”

COMO SE ME FUMASSE

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34 (176 págs., R$ 41)

Em uma das cenas do novo romance de Marcelo Mirisola, Como Se Me Fumasse, o pai do narrador olha para rascunhos espalhados pela sala e, ao descobrir que são escritos de ficção, vaticina: “Isso e merda são mesma coisa”.

A discussão do que é memória e do que é imaginação na prosa de Mirisola é um dos fatores que marcam a carreira do escritor, cujo primeiro livro foi publicado há 20 anos (Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia). A despeito de quem acha que o gênero – autoficção – já se esgotou, ele é categórico. “É a soberba dos críticos diante da autoficção que está esgotada”, diz, numa troca de e-mails. “Eles não aguentam mais desqualificar o gênero. E eu sigo firme e forte, continuo azucrinando a vida e a ‘autoridade’ deles.”

A questão é que Como Se Me Fumasse, seu oitavo romance, segue vencendo ao apostar mais fichas na mesma mão: levar a narrativa em primeira pessoa para um passeio duplo, pelo Brasil explorado freneticamente pelo narrador/autor, e para dentro de suas obsessões: amor e ódio, para resumir.

Marcelo Mirisola. 'Faz 20 anos que nado contra a maré' Foto: MARCIO FERNANDES/ESTADAO

No livro, uma personagem – Ruína, que acaba por se tornar uma representação de todos os amores do narrador – reaparece na sua vida um dia depois do enterro da mãe dele. Um beijo depois: “Eu sempre perco o controle com Ruína, e ela finge que não sabe que eu perco o controle, e sorri. Então dá a primeira tragada, e sopra a fumaça na direção do teto, como se me fumasse. Automático. A mesma boca, o mesmo sorriso e o beijo em seguida. Mil anos se passarão e nos beijaremos do mesmo jeito”.

Além dos amores – num plural que o narrador reconhece com lirismo catalográfico –, a família ocupa lugar central no livro. A mãe (quase sempre) zelosa e o pai: “Uma inconstância ambulante, o rei da improvisação e da imprevisibilidade, volúvel, precário, mesquinho”, que embarca nas ideias do filho para tentar sobreviver antes de engatar na literatura. As tentativas passam por estudar agronomia no interior, fazer garimpo na Serra da Canastra, faculdade de direito, um barco de pesca em Santa Catarina, temporadas em Santos e no Rio de Janeiro.

+ Marcelo Mirisola capricha no sadismo em 'A Vida Não Tem Cura'

Ainda além dos amores, da família e dos deslocamentos, Mirisola faz uma revisão sincera dos seus 20 anos na literatura, dando nome aos bois: “... escrevo deliberadamente na primeira pessoa, e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador, atingi meu objetivo”, diz, no mesmo capítulo em que admite: “Misturei as coisas e caí na minha própria armadilha, alucinei”. Embora o tom seja de revisão, duas páginas depois ele faz sua maior diatribe nesse livro, ao nomear um outro conhecido escritor brasileiro contemporâneo como “Boca de Siri”.

Mesmo com as tintas autobiográficas ainda cheirando forte, Mirisola reafirma a necessidade de distinguir memória e imaginação: “Porque se você não tem controle sobre o que faz corre um risco seriíssimo de enlouquecer. Ficção é para os fortes; e a autoficção demanda mais controle e força, uma atividade para gente que não tem medo de perder a alma. O diagnóstico de Jung a respeito da filha de Joyce é exemplar: ‘Nas águas que você navega – disse Jung – ela se afoga’”.

Sentindo-se consagrado com o que diz ser seu melhor livro, o escritor paulistano encontrou uma oportunidade de fazer uma espécie de chamamento (na vida real) para artistas e escritores. No fim do ano passado, com as polêmicas envolvendo arte e sexualidade nos museus de São Paulo, ele escreveu no Facebook: “Quem é do ramo (ou quem apavora o sono dos justos) tem uma oportunidade histórica de tripudiar, invadir, barbarizar e botar pra f* sem dó nem piedade. É hora de hastear a bandeira pirata e partir pro crime, é agora ou nunca, cambada de cagões”. Eram as semanas em que MBL e outros movimentos protestavam pelo fechamento de exposições e a expiação de artistas.

+ 'Hosana na Sarjeta' não é bem uma história de amor, mas uma odisseia mundana

“Problema é que para fazer arte é necessário mais do que mobilização, é preciso talento e coragem”, afirma Mirisola, agora. “Artigos que faltam na feirinha de vaidades, mesquinharias & conveniências que vivemos. É o que eu sempre digo: onde falta talento e coragem sobra patrulha e mesquinharia.”

Mas por que as manifestações contrárias à expressão artística tiveram tanta reverberação?

“O espaço do talento foi ocupado pelas sombras. Só existe uma única maneira de abalar e confrontar a caretice – repito –, confronta-se a caretice com talento e coragem, mas cadê?”

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Autor: Marcelo Mirisola

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