Marina Colasanti acaba de completar 86 anos. Lê mais do que escreve, flutua entre o mundo polarizado, prefere o presente ao passado - apesar dos golpes da vida. Quando conversou com o Estadão no seu aniversário de 80 anos, em 2017, a escritora, que é uma das mais importantes do País, falava com uma espécie de sensação de missão cumprida: não tinha medo da morte, porque as filhas estavam bem e criadas. Mas então o inimaginável aconteceu, e Fabiana, sua primeira filha, morreu no início de 2021, nove meses depois de descobrir um câncer.
“Confesso que envelhecer não é das coisas mais fáceis, é bonito, emocionante, faz parte da vida, mas têm sido muitas as despedidas. E nesse contexto, o que me resta, é a iminência preciosa do momento presente”, diz a escritora agora ao Estadão, nesta entrevista concedida, a seu pedido, por e-mail.
Marina está sendo homenageada com uma antologia de contos, microcontos, crônicas, poemas e ensaios escolhidos e organizados por Vera Maria Tietzmann Silva para celebrar os 50 anos de sua carreira literária. A autora não teve participação na seleção dos textos que compõem A Disponibilidade da Alma, lançamento da FTD que inclui, ainda, a entrevista concedida dada ao Estadão nos seus 80 anos, mas ficou feliz com o resultado. “Eu me surpreendi com textos, me comovo, fico muito surpresa. É bom olhar para trás e contemplar o que se fez.”
O leitor - de todas as idades - vai encontrar textos marcantes, pinçados nos mais de 70 livros que formam a bibliografia premiada da escritora que nasceu na Eritreia, então colônia italiana, em 1937, passou a infância entre praias e bombas na Itália de seus pais, em plena Segunda Guerra Mundial, e que, ao se mudar para o Brasil, ainda menina, viveu no Parque Lage, no Rio - a casa de sua tia, a contralto Gabriella Besanzoni.
Marina iniciou a carreira no Jornal do Brasil, foi amiga de Clarice Lispector e é a companheira de toda uma vida do poeta Affonso Romano de Sant’Anna, diagnosticado em 2017 com Alzheimer.
Na literatura, ela estreou em 1963 com Eu Sozinha (Global), livro que voltou às livrarias recentemente e que já indicava a matéria-prima de que seria feita a sua obra: o sentimento de solidão. Entre seus livros mais importantes, estão, ainda, Mais Longa Vida (Record), Minha Guerra Alheia (Record), Breve História de um Pequeno Amor (FTD), Vozes de Batalha: A História de Uma Mulher Extraordinária e de Uma Família que se Tornaram Símbolos do Rio de Janeiro (Tusquets) e Classificados e Nem Tanto (Galerinha).
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“A obra literária de Marina Colasanti é singularmente coesa e não conhece declínio, sempre se mantendo num patamar de qualidade”, destaca a organizadora no prefácio.
Confira a entrevista de Marina Colasanti a seguir.
Desde a última entrevista, lá se vão seis anos. Foram tempos intensos. Vivemos uma pandemia, enfrentamos a morte. A senhora perdeu uma filha. Ganhou um neto. Como avalia esses anos?
Não avalio nada. Apenas sinto. Nesses seis anos muito se passou e não foi só o tempo. Muitos desafios, tanto no âmbito pessoal, quanto no coletivo. Grandes golpes. Meu neto é sem dúvida um alento.
A senhora ganhou alguns dos mais importantes prêmios literários - do Machado de Assis ao Jabuti, passando pelo Prêmio Ibero-americano SM de Literatura Infantil e Juvenil, e foi indicada ao Hans Christian Andersen. Isso importa, já importou?
Claro que é muito gratificante, mas eu nunca trabalhei especificamente para isso, voltada para esse tipo de reconhecimento, nunca foi uma meta. Minha motivação sempre foram as ideias, os textos, os livros, eles sempre se impuseram. Nunca escrevi motivada por modismos. Os meus temas não são passageiros e nem pretendem agradar. Quando comecei a escrever os chamados contos de fada, nos anos 1970, ninguém estava prestando atenção nesse gênero, mas eu simplesmente precisava escrever aqueles contos. E trabalhei nisso a vida toda, nos contos de fada e contos maravilhosos. Cheguei numa idade em que ter a minha estrada vista, enaltecida, representa um ponto avançado de um ciclo, que é a minha própria vida dedicada à literatura. É muito bom.
O que importa para a senhora hoje?
Confesso que envelhecer não é das coisas mais fáceis, é bonito, emocionante, faz parte da vida, mas têm sido muitas as despedidas. E nesse contexto, o que me resta, é a iminência preciosa do momento presente. Gosto de estar com amigos, os que ainda restam, de estar com minha filha, brincar com o meu neto, simplesmente olhar para ele, viajar para nosso sítio em Friburgo, ver as cerejeiras em flor. Acho que agora o que mais importa não tem forma, nem matéria: bem-estar, calor, amor, delicadeza e afetos bons.
Aproveitando o título de uma crônica sua, o que a senhora sabe, mas não devia? Com o que a gente se acostuma e com o que não dá para se acostumar nunca?
A morte dos outros. E também não dá para se acostumar jamais à bestialidade, à brutalidade, às injustiças sociais, às guerras, à desumanização, à opressão das minorias, à violência contra a mulher. Trabalhei a vida toda em prol das mulheres, tanto como jornalista, escritora e cidadã. Fui membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Os últimos anos têm sido de um revisionismo fundamental, muito bem-vindo. Eu sei que ainda há muito chão pela frente, mas gostaria que fosse diferente, gostaria de ter chegado a viver em um mundo mais plácido, mais gentil. Não foi possível.
Essa crônica foi incluída em A Disponibilidade da Alma (leia abaixo), que reúne textos marcantes de seus 50 anos de carreira literária. Como vê a seleção feita? E como foi o reencontro com esses textos de outros tempos?
A pesquisadora Vera Maria Tietzmann Silva fez uma seleção muito interessante, reunindo contos, minicontos, crônicas, poemas, textos autobiográficos e ensaios. Unir esses múltiplos aspectos da minha produção em um único livro reitera uma noção de conjunto de uma obra gerada ao longo de décadas. Funciona também como uma boa porta de entrada para novos leitores. Me surpreendi com textos, me comovo, fico muito surpresa - “Como eu tive uma ideia assim? Que loucura!”. Eles se ocuparam de tudo, eu só aplaudo e agradeço. Foi muito lindo o trabalho da Isabel Lopes Coelho, editora da FTD, e de toda a sua equipe. É bom olhar para trás e contemplar o que se fez.
O que a senhora nunca perdeu de vista ao escrever para crianças?
Não as imbecilizar. Crianças não têm inteligência incompleta, elas só são crianças. Nunca desejei de modo algum educar ou informar crianças, não de maneira didática. Odeio essa mania de falar tudo no diminutivo, não é a minha cara. Não sou edulcorante. Gosto de falar de igual para igual com as crianças. Jamais utilizaria a literatura como veículo para ministrar ensinamentos. Considero que a literatura contém por sua própria natureza ensinamentos muito mais profundos, e extremamente individuais, pois cada um colhe nela aquilo de que necessita. Eu nunca escrevi “para adultos” e nem “para crianças”. Escrever é o meu fazer.
O que está faltando às crianças hoje? E o que gostaria que elas soubessem?
Eu leio desde criança, tudo, sempre. Acho que as crianças têm que ler, sempre, tudo. Ler livros, não apenas posts. Não sou conservadora, as novas tecnologias sempre existiram e existirão, a humanidade se transforma em torno delas e segue adiante. Hoje, porém, quase todos os contatos são intermediados por mídias. Gostaria que as crianças soubessem, ou nunca se esquecessem, do valor do contato humano direto, sem intermediários. O poder do encontro, essa tecnologia tão fundamental quanto primitiva.
Que história a senhora ainda não escreveu, mas gostaria?
A história do medo.
Tem lido mais, ou escrito mais? Ou pintado? Por quê?
Lido mais. Sempre li o tempo todo, mas hoje leio mais que escrevo. Já faz alguns anos ilustrei meu último livro. Poderia dizer que cheguei no alto da montanha e estou contemplando.
São 86 anos de vida muito rica de histórias e experiências, e 50 de carreira. O que o tempo significa para a senhora? Prefere o presente ou o passado?
“Caminhei até um rosto longamente, um rosto que alcançado seria o meu. E quando enfim cheguei àquele rosto, ele não era aquele, era um rosto muitos rostos adiante. Cheguei sempre atrasada nesse encontro, porque quis alcançar meu rosto como a um porto e não soube entender que o rosto é só um percurso”. Se me permite, te respondo com o trecho de um poema - Tive um Rosto, que está no livro.
Quando conversamos, a senhora disse que achava sua idade ótima, mas que não queria viver muito. E disse que não tinha medo da morte porque as filhas estavam criadas. Mudou alguma coisa nesses anos, ou com a chegada do neto?
Sim. Ser imortal ou chegar aos 100 anos nunca me interessou. Acho que cumpri razoavelmente bem o caminho. A morte da minha filha foi um choque, seria um bom motivo para desistir. Mas minha outra filha, recém-parida, e ele, meu neto em si, uma surpresa, também são bons motivos para continuar.
Tendo sido uma criança que viu a guerra, uma jovem que viveu a ditadura e uma mulher que assistiu aos avanços e retrocessos da história, como vê o mundo hoje? Continua um ponto de interrogação, ou a realidade a deixou mais otimista ou pessimista?
Acredito que exista muita coisa entre essas duas ideias, entre o otimismo e o pessimismo. O mundo já está cindido demais, polarizado demais, prefiro me manter flutuando por esse entre.
A Disponibilidade da Alma
- Autora: Marina Colasanti
- Org.: Vera Maria Tietzmann Silva
- Editora: FTD (224 págs.; R$ 67)
Leia a crônica Eu sei, mas não devia
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar‑se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.