Quando a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim e os campos de concentração nazistas começaram a ser libertados, Thomas Geve tinha 15 anos, estava fraco demais para ir aonde quer que fosse e estava sozinho no mundo. Então ele ficou em Buchenwald, o último dos três campos por onde passou, e, ao longo de dois meses, desenhou, em pequenos cartões que os nazistas deixaram para trás em sua fuga, tudo o que viu enquanto foi prisioneiro de guerra e testemunha dos horrores cometidos por Hitler.
Thomas Geve é um sobrevivente do Holocausto. Sua mãe, não. O pai, que partiu da Alemanha para a Inglaterra antes que a perseguição aos judeus se intensificasse, e que esperava, lá, a chegada da família, reencontrou o filho apenas em 1945. Na mala do menino, então com 16 anos, estavam os 80 desenhos que ele fez enquanto se recuperava. Logo ele também começaria a escrever as suas memórias de Auschwitz, onde ele chegou no dia 29 de junho de 1943 e de onde saiu em janeiro de 1945 para a Marcha da Morte que o levaria primeiro para Gross-Rosen e, depois, para Buchenwald.
Quem foi Thomas Geve
Thomas Geve é um pseudônimo, ou, nas palavras dele, um nome testemunhal. Ele nasceu em outubro de 1929 na Alemanha, filho de um médico judeu que perdeu sua licença para trabalhar por causa das leis discriminatórias. Passou a primeira infância com a família e a segunda se escondendo dos nazistas.
Em junho de 1943, sem ter mais como ficar na Alemanha, ele, com 13 anos, e a mãe, com cerca de 30, embarcaram em um dos últimos trens saídos de Berlim. Não sabiam o destino. Chegaram a Auschwitz, foram separados. Ele foi admitido como adulto, foi para a escola de pedreiros, escravizado. Sobreviveu por força própria, inteligência e sagacidade, sorte, ternura e pela bondade de algumas pessoas que cruzaram seu caminho.
Com o fim da guerra, em junho de 1945, foi levado para a Suíça com outros garotos e, em novembro daquele ano, reencontrou o pai em Londres, seis anos depois da despedida dos dois. Mais tarde, aos 20 anos, Thomas decidiu se mudar para Israel, trabalhou como engenheiro, construiu uma família, espalhou sua história para que as pessoas conhecessem a verdade sobre os campos de concentração e sobre o Holocausto.
O Menino Que Desenhou Auschwitz
Em Londres, naqueles primeiros anos do pós-guerra, um jornalista conheceu sua história e tentou ajudá-lo a publicar o livro e os desenhos. Ouviu de um editor que “o menino não era nenhum Picasso”. O testemunho também não agradou. “Nos anos 1950, ninguém queria ler livros sobre Auschwitz. Era uma coisa triste, distante. Mas meu livro não descreve como as pessoas morreram, e, sim, como elas viveram”, conta o autor de 94 anos, que vive em Herzliya, no distrito de Tel Aviv, em entrevista ao Estadão.
Escrita em 1947 e lançada em 1958, a história foi resgatada depois por outro jornalista, Charles Inglefield. E uma nova edição chegou às livrarias em 2021, unindo este primeiro livro, Juventude Acorrentada, e um outro de 1987, Armas e Arames Farpados. Com o título O Menino Que Desenhou Auschwitz, o livro foi lançado no Brasil recentemente pela Alta Life, com reproduções de seus desenhos impressionantes - retratos do cotidiano dentro de um campo de concentração e de suas memórias vívidas do Holocausto.
Thomas Geve narra com detalhes sua vida antes e durante o Holocausto. Seu testemunho é mais uma importante peça para compreender o que aconteceu nos campos de concentração e de extermínio, como se sobrevivia ali dentro, como se sonhava lá. A cena em que ele conta o breve reencontro com sua mãe é comovente.
Geve respondeu a algumas perguntas do Estadão em áudio. Outras questões, menos factuais, ficaram sem resposta. O assunto é sensível, justificou Yifat, filha de Thomas, de 52 anos, que intermediou a conversa. Nos últimos 10 anos, ela tem conciliado sua rotina com a tarefa de divulgar a história do pai. Ou “a verdade”, como ele gosta de dizer.
E o que significa ser filha de um sobrevivente do Holocausto? “É uma coisa enorme, que afeta muitas partes da nossa vida. Você é uma pessoa diferente”, ela disse. A mãe dela também é sobrevivente, e os dois perderam a família na guerra. “Saber a história da sua família muda a vida da gente. Muda a nossa perspectiva de vida e a proporção que as coisas podem tomar. Por exemplo, sempre que lidamos com um desafio compreendemos que aquilo é apenas um pequeno detalhe se comparado com o que meu pai enfrentou e pensamos: ‘ah, eu consigo lidar com isso’. Isso te torna uma pessoa mais forte e, espero, uma pessoa melhor.”
Ela vai além: “A mensagem para as novas gerações vem, em parte, da geração do meu pai, mas nós também temos algo a dizer aqui. É nossa responsabilidade criar uma vida diferente, aprender com o passado para dar sentido ao que nossos ancestrais enfrentaram, e dar sentido a isso é criar uma vida melhor. Era o desejo deles, e é nosso dever.”
Sobre seu livro, Thomas Geve disse: “Não posso dizer que estou feliz, porque não há nada de feliz sobre o passado, mas é muito bom que as pessoas conheçam a versão verdadeira da história. O livro é muito documentado, há fotos minhas. É um livro longo, um longo trabalho para apresentar a história para o futuro”.
Ele comentou ainda que muitos prisioneiros dos campos de concentração não sobreviveram por mais de um ano, por diferentes razões. “Eu consegui sobreviver por cerca de dois anos. Isso é excepcional. Foi por isso que pude ver muito, registrar muito, e me lembrar de tudo. Eu pude colecionar muitos fatos, e logo depois da libertação dos campos eu coloquei no papel. Eu relato a verdade dos campos. Não escrevo sobre pássaros cantando porque não havia pássaros cantando. Descrevo a condição das pessoas com quem eu vivi.”
Confira trechos da entrevista de Thomas Geve
O que o senhor pensa quando olha para os desenhos que fez tantos anos atrás?
Eles são tão precisos ao mostrar a verdade como ela era no mundo triste de Auschwitz. Acredito que eles são desenhos muito importantes. Ninguém desenhou tantos assim (são mais de 80) nem com tantos detalhes sobre a vida nos campos, e com cores. A maioria das pessoas fez desenhos em preto e branco. Ver esses desenhos diminutos em grande escala como já foram exibidos na tela do cinema faz com que tudo ganhe vida novamente. É muito impressionante.
De que forma desenhar o ajudou a lidar com o trauma?
Quando eu fiz esses desenhos, tudo saiu de mim por meio deles. Vê-los viajando pelo mundo me dá satisfação. Meu segredo é que ainda estou por aqui, ainda posso mostrar e falar sobre os meus desenhos e explicar o passado por meio deles. Quando cheguei à Suíça, os professores viram os meus desenhos e encorajaram as outras crianças sobreviventes a desenhar suas próprias experiências. Isso foi importante para todos nós, e nos ajudou de muitas formas.
O senhor continuou desenhando depois da guerra? Se sim, o que desenhava?
Não, eu nunca mais desenhei nada além desses desenhos sobre a vida nos campos.
O senhor adotou um pseudônimo para tratar deste momento da sua vida. É possível, diante de uma experiência tão extrema como esta, se dividir? Quem é o senhor e de que forma o Holocausto o define?
Adotei um pseudônimo muitos anos atrás, aos 16 anos, quando, em Londres, os jornalistas começaram a perguntar sobre a minha história. Isso gerou alguns comentários ignorantes dos meus amigos, então entendi que eu deveria escolher um outro nome para proteger a minha privacidade. E fico feliz por ter feito isso. Eu queria seguir com a minha vida pessoal e me distanciar do passado. O passado narrado por Thomas é uma parte real de mim até hoje. Aos 16, eu não planejava me tornar um famoso escritor do Holocausto nem imaginava que meu trabalho estaria em todo o mundo. Eu só queria seguir com a minha vida com meus planos para a minha vida e para o futuro. E eu segui. Eu fiz muitas outras coisas na vida que definem quem eu sou. Eu me tornei um engenheiro, um oficial do exército, um homem de família e muito mais. Ser um sobrevivente e divulgar os meus desenhos e meu testemunho escrito é uma parte significativa da minha vida e identidade. Mas é apenas uma parte do que eu sou.
Quando olha para trás, o que sente? E o que gostaria que as pessoas compreendessem e aprendessem sobre o Holocausto?
Que as pessoas sobreviveram ajudando umas às outras e dando esperança umas às outras, e imaginando um futuro melhor. Meu livro é a verdade sobre a vida nos campos. Muitas coisas que me foram ditas na infância eram mentiras. Então, eu queria saber a verdade. Queria descobrir a verdade sobre a vida. As pessoas deveriam aprender sobre o passado, se lembrar do passado, tentar ser ativo e fazer o bem para construir um futuro melhor.
Que desafios o senhor enfrentou ao escrever e, depois, divulgar este livro, no sentido de ter de reviver de novo o horror? Ou essas memórias nunca o deixaram?
Meu livro foi publicado pela primeira vez em 1958. Foi um desafio encontrar um editor para ele nos anos 1950, já que as pessoas não queriam ler livros sobre Auschwitz. Era uma coisa triste, distante. Além do mais, nem tantos sobreviventes sabiam inglês para lê-lo. Mas meu livro não descreve como as pessoas morreram, mas como elas viveram. É sobre minha vida, então não foi um problema lembrar disso. Mas não sou um romancista. Sou um engenheiro. Para mim, a questão sempre foi escrever sobre os fatos, a verdade dos detalhes sobre a vida como ela era. A verdade como eu a vi.
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Aos 94 anos, ele lança no Brasil O Menino Que Desenhou Auschwitz, sobre sua experiência como criança prisioneira de guerra
O Menino Que Desenhou Auschwitz
- Uma Poderosa História Real de Esperança & Sobrevivência
- Autor: Thomas Geve
- Editora: Alta Life (304 págs., R$ 73,90 R$ 55,90 o e-book)
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