"Submissão” é uma tradução literal de “islã”, e também o título do romance mais recente do francês Michel Houellebecq, originalmente lançado em meio à tormenta causada pelo atentado terrorista à redação do Charlie Hebdo. No livro, passado em 2022, acompanhamos a ascensão de um muçulmano ao poder na França e, por decorrência, uma islamização do ensino e da vida naquele país. Mas tudo isso parece ter lugar à distância, afastado pelos olhos e pela voz do narrador-protagonista, François, um acadêmico da Sorbonne, especialista na obra de Joris-Karl Huysmans (1848-1907).
A despeito da breve sinopse acima, é bom que se esclareça que Houellebecq é um sintoma do presente, não um profeta. Em seus piores momentos, e o romance em pauta não está entre eles, o autor tende a investir em um cinismo de jantarzinho pseudointelectual, esbarrando nos “temas urgentes” que assolam a Europa e o globo. O leitor se sente sardônico e esperto, “atualizado”, com suas imaginações. É o esteta maior da literatura-moleque, surfando na rarefação pós-moderna, na misoginia, na violência, na islamofobia, jogando, brincando com o medo que estrangula o Velho Mundo.
No entanto, o foco de Submissão não diz tanto respeito à situação política naquelas circunstâncias, mas, antes, ao alheamento do narrador, e é isso que salva o romance. Houellebecq cria mais um de seus protagonistas entediados, cínicos e irrespondivelmente medíocres (“Muitos homens se interessam pela política e pela guerra, mas eu apreciava pouco essas fontes de diversão, sentia-me tão politizado quanto uma toalha de rosto, o que era uma pena”), coloca-o em um contexto político-social explosivo, o qual é esmiuçado e discutido no decorrer de toda a narrativa, é verdade, mas, ao mesmo tempo, esvazia esse contexto em função do pragmatismo torpe que rege as relações entre as pessoas, independentemente do estado de coisas a que estão submetidas.
François é um acadêmico qualquer, do tipo que se envolve sexualmente com alunas (e é engraçadíssimo como uma delas o deixa para se mudar com a família para Israel, dados os prováveis resultados das eleições), um sujeito amorfo que, não por acaso, bebe Meursault, encara as mortes dos pais com desfaçatez e, eventualmente, ensaia se render à nova ordem. Seus motivos são egoístas, se é que existem motivos (por mais consciente que seja da situação, ele parece reagir ao que acontece, dia após dia). E seu destino, numa sacada brilhante do autor, é devidamente antecipado pela escolha do tempo verbal utilizado no derradeiro capítulo do livro.
Como sempre, Houellebecq desliza feliz pelo intestino grosso europeu. Submissão joga com medos e expectativas, mas o faz por meio de um personagem que simboliza tudo o que putrefaz no velho continente: a contaminação da academia, o ideal de um patriarcalismo insustentável, o intelectualismo inócuo, a depauperação familiar e afetiva, etc. De certo modo, o romance funciona como um elogio do reacionarismo e, ao mesmo tempo, como uma elegia, ou mesmo um réquiem. Se os fascismos são “uma tentativa espectral, uma visão de pesadelo, falsa, para tornar a dar vida a nações mortas”, Houellebecq ao menos se limita a confabular com os fantasmas, desinteressado (ou incapaz) de reviver o que quer que seja. Com ele, viajamos ao futuro - mas não saímos do lugar. Em se tratando desse autor, é um bom sinal.