Nos capítulos ímpares, uma ficção científica cyberpunk envolvendo implantes cerebrais, guerra informacional e um autêntico submundo; nos capítulos pares, uma narrativa fantástica situada em uma cidade utópica povoada por unicórnios e pessoas desprovidas de sombras e desejos. Lançado originalmente em 1985, O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas (Alfaguara, tradução de Jefferson José Teixeira) é o quarto romance de Haruki Murakami e está estruturado da forma descrita acima: duas narrativas muito distintas que, no entanto, convergem para constituir uma só história e, de certo modo, uma só pessoa.
Como diria Ivan Lessa, a trama do livro é simples, mas o enredo é complicado. O narrador dos capítulos ímpares é um “calculador”, alguém treinado para processar informações, às quais não tem acesso direto: grosso modo, em duas etapas (“lavagem cerebral” e “shuffling”), o sujeito armazena as informações codificadas, de tal forma que estas não podem ser arrancadas dele. No mundo dessa parte da história, há duas grandes corporações em guerra: a System (empregadora dos “calculadores”) trabalha para proteger as informações dos clientes, ao passo que a “máfia dos dados” Factory emprega calculadores que perderam suas licenças (os “simbolistas”) e tenta roubar as informações.
Logo no começo, o narrador é chamado ao laboratório de um cientista para proteger os dados de uma pesquisa que pode decidir a guerra informacional em curso. Para roubar esses dados, os “simbolistas” se aliaram a criaturas que vivem nos subterrâneos de Tóquio, os “tenebrosos”. Não demora muito para o protagonista entender que não é um mero peão na brincadeira. Pelo contrário, seu cérebro e alguns implantes que fizeram nele são a chave de tudo.
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Nos capítulos pares, somos levados a uma cidade murada, da qual os habitantes não podem (nem querem) sair. Ao ingressar nela, as pessoas são separadas de suas sombras, que morrem não muito depois. A morte da sombra implica a perda de quaisquer memórias, sentimentos e anseios. Os indivíduos levam, assim, uma existência atemporal, realizando suas pequenas tarefas e entregues a um ciclo repetitivo. Recém-chegado, com sua sombra definhando sob a vigilância de um guardião kafkiano (lembra o vigia da lei naquela parábola n’O Processo), o narrador é encarregado de “ler” os velhos sonhos dos moradores. O leitor deve atentar ao papel dos crânios dos unicórnios em ambas as histórias.
Escrito logo após o formidável Caçando Carneiros, O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas pode ser descrito como um esforço para conciliar inspirações muito diversas e, a partir delas, conceber um universo particularíssimo. De fato, Murakami pega elementos que não fariam feio em um romance de William Gibson (guerra tecnológica e informacional, implantes cerebrais, mundo virtual) e os atira em uma fantasia que remete a Philip K. Dick (realidades e identidades colidindo; o que é real e o que é ilusão?; unicórnios). Emerge algo único dessa mistura. Logo, o esforço é muito bem-sucedido.
Os poucos senões dizem respeito às platitudes e breguices proferidas em certas passagens (“Abra mais seu coração. Você não é um prisioneiro! É um pássaro que voa no céu em busca de sonhos!”) e que alimentam o pior lado do sentimentalismo de Murakami.
O melhor está na capacidade do autor de criar mundos absurdos e torná-los plausíveis por meio de recursos e soluções que parecem simples, mas são extremamente sofisticados. Em seus melhores momentos, como na descida do protagonista ao mundo ínfero - passagem que encerra uma catábase e uma anábase -, o livro abandona o tom pedestre e abraça a lógica dos pesadelos.
Mesmo a longa explicação do cientista não consegue nos afastar da escuridão “desagradável e opaca” que parece “viver, respirar e se movimentar”. É a escuridão daqueles mundos fantásticos, mas também a escuridão do nosso mundo. Lá como aqui, não há muito que se possa fazer para escapar dela. E, assim, temos aqueles recursos e soluções de simplicidade enganosa, que elevam o romance e o colocam entre os melhores de Murakami: a atenção aos mínimos gestos, a descrição espirituosa das menores ações cotidianas e a reiterada alusão à incompletude fundamental das pessoas e seus mundos, interiores ou não.