Na cabeça do ilustrador e escritor Nelson Cruz, as imagens vêm primeiro. São elas que conduzem a história mesmo antes de o texto ganhar forma. “Lutei para ser um narrador por meio de imagens e algumas delas me levaram a escrever”, conta o mineiro. Entre as obras que o fizeram usar, além de pincéis e tintas, as palavras está Um Escritor na Capela, lançamento da Editora SM. Neste livro ilustrado, Cruz se debruça sobre o relato de Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere e recria a fase final de confinamento na Casa de Correção, no Rio de Janeiro, onde o escritor alagoano ficou preso na Sala da Capela com a comunista Olga Benário, mulher de Luís Carlos Prestes, a psiquiatra Nise da Silveira e o humorista Aporelly, o Barão de Itararé.
Para fazer Um Escritor na Capela, Cruz releu o romance pela terceira vez. O contato inicial com a obra havia se dado na década de 70, quando tinha 19 ou 20 anos. “O momento político era grave. Livros e a imprensa estavam proibidos, mas consegui comprar Memórias em uma banca de jornal. Liberaram uma obra de alguém que resistia escrevendo”, relembra.
No livro, Cruz deixa o gênero memorialístico de Graciliano e aposta em um relato em terceira pessoa, iniciado com a chegada do escritor à Casa de Correção. Ao longo da narrativa, o mineiro aborda a rotina dos presos políticos, o contato com a mulher, Heloísa, que o visitava na prisão, e com os funcionários e seu processo de escrita no confinamento. Também conta sobre a publicação de Angústia e o evento de lançamento surpresa organizado pelos companheiros, com direito a flores, cama arrumada e sala cheia de gente. O ponto alto do livro é a entrada da polícia para levar Olga, materializada em uma página dupla.
A opção de apresentar Graciliano para os jovens teve razão. “É um autor importante, não podemos deixá-lo ser esquecido. Seu texto é seco, perturbador, e fala de humanidade.” O livro, apesar de ser direcionado para crianças a partir de 11 anos, é daqueles que ultrapassam as indicações etárias.
Expressionistas, as ilustrações retratam, com perspectiva e profundidade, um clima soturno e sombrio. Para elas, Cruz utilizou pincel atômico com nanquim, caneta nanquim e tinta acrílica, partindo sempre do preto para, depois, colocar pontos de luz. “O ato de escrever iluminava aqueles dias, e essa metáfora percorre todo o livro”, explica.
Graciliano Ramos foi o terceiro escritor brasileiro homenageado por Cruz. Em 2004, ele escreveu e ilustrou No Longe dos Gerais, em que percorre a história de um garoto que conduziu um rebanho ao lado de Guimarães Rosa, em 1952, ao longo de 240 quilômetros. Em 2012, publicou A Máquina do Poeta, inspirado na carta em que em que Carlos Drummond de Andrade escreveu para Mário de Andrade lamentando as dificuldades de ser escritor em um país atrasado e com pouca tradição literária. “Todos foram escritores muito importantes na minha formação como leitor. Com eles, descobri um outro mundo, para além de Belo Horizonte. Meu desejo era ser desenhista, pintar e trabalhar com arte, e isso passou pela literatura, pela leitura. Esses escritores me deram o caminho”, afirma.
Cruz tem mais de cem livros publicados, 20 dos quais escreveu e ilustrou. Recebeu cinco prêmios Jabuti, selos de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), premiações da Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras e Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e, recentemente, o Troféu Monteiro Lobato, concedido pela Revista Crescer. Foi indicado para o prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil, e para a lista de honra do International Board on Book for Young People (IBBY).UM ESCRITOR NA CAPELAAutor: Nelson CruzEd.: SM (32 págs., R$ 36)