‘Nenhuma arma de guerra é mais barata e eficaz do que o estupro’, diz a jornalista Christina Lamb


Em ‘Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha: A Guerra e As Mulheres’, a correspondente inglesa e autora de ‘Eu Sou Malala’ dá voz a vítimas de violência sexual em conflitos do passado e atuais

Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:
Entrevista comChristina LambJornalista

A jornalista inglesa Christina Lamb viu o horror. Como correspondente de guerra nos últimos 35 anos, presenciou o pior do ser humano, ouviu histórias tenebrosas, aprendeu o significado da palavra resiliência.

Suas reportagens foram publicadas por jornais britânicos. Outras histórias, de luta e sobrevivência, viraram livros.

Ela é coautora, por exemplo, com Malala Yousafzai, da biografia da Nobel da Paz (Eu Sou Malala foi publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2013).

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A jornalista inglesa Christina Lamb tem mais de 30 anos de experiência como correspondente de guerra Foto: Companhia das Letras

E ela ajudou Nujeen Mustafá, que nasceu com paralisia cerebral e, adolescente, fugiu da Guerra da Síria em uma cadeira de rodas, a contar sua aventura até a Alemanha por estradas e botes clandestinos. (O Estadão conversou com Nujeen na época do lançamento de sua biografia, em 2017, pela Universo dos Livros; leia aqui a entrevista).

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha

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A obra mais recente de Christina Lamb dá voz não a uma, mas a inúmeras mulheres - todas elas vítimas em um mundo, ocidental e oriental, industrializado e arcaico, democrático e ditatorial, em que homens descobriram que o estupro é a mais barata e eficaz arma de guerra - um tema que vem ganhando destaque com a ajuda de pessoas como Lamb e, antes, a iraniana Nadia Murad (confira o perfil da jovem ativista).

Nobel da Paz de 2018, Nadia tinha 21 anos quando foi sequestrada pelo Estado Islâmico e passou três meses nas mãos dos radicais. Hoje, ela tenta conscientizar lideranças internacionais acerca do uso violência sexual em guerras e conflitos armados - e vem ao Brasil em junho, para participar do ciclo de debates Fronteiras do Pensamento, quando deve falar sobre seu livro Que eu Seja a Última (Novo Século).

Mulher nigeriana relatou à Anistia Internacional que foi vítima de violência sexual por membros do exército de seu país, durante o conflito com o Boko Haram Foto: Amnesty International/Reuters
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Nadia não foi a última. Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha (Companhia das Letras), o lançamento de Christina Lamb, traz histórias muito recentes. Sobre elas, a jornalista, que viveu no Brasil entre 1990 e 1993 e foi inspiração de Paulo Coelho para a criação da personagem Esther, de Zahir (2005), que tinha acabado de voltar da Ucrânia, estava chegando em Portugal e se preparava já para embarcar para a Angola, conversou com o Estadão por videoconferência.

“Na Ucrânia, vi coisas que eu não esperava ver na vida. Parece a Primeira Guerra Mundial, com trincheiras e armas usadas naquela guerra. É chocante. E a escala das baixas é alarmante”, ela diz, complementando que acredita que o número de casos de estupro, lá, seja muito maior do que o que vem sendo reportado.

Odessa, na Ucrânia, em junho de 2022 Foto: Oleksandr Gimanov/AFP
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O país europeu ganhou um capítulo em seu livro. Mas esta é só a história mais recente. Lamb volta até o período da ditadura argentina, passa pelo genocídio de Ruanda, e traz notícias de lugares como Curdistão, Afeganistão, Nigéria e Bangladesh. Histórias, ela confessa, que nem ela mesma conhecia. “Sou correspondente de guerra, e não percebia que isso estava acontecendo. E quanto mais eu pesquisava, mais chocada e revoltada eu ficava”, disse ao Estadão.

Bolsonaro e Trump

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha é um livro difícil. “As pessoas ficam chocadas que isso esteja acontecendo no mundo numa escala tão grande”, comenta.

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Também é chocante, ela diz, e difícil de entender como Trump e Bolsonaro foram eleitos com a ajuda do voto feminino. “Algumas das coisas que Bolsonaro disse sobre mulheres não poderiam ser ditas no século 21, e ainda assim ele foi eleito”, comentou. No livro, ela cita o comentário feito pelo ex-presidente sobre a deputada Maria do Rosário (em 2003, ele disse que “ela não merecia ser estuprada”; a Justiça determinou que ele deveria pedir desculpas).

Entrevista com Christina Lamb

Confira trechos da conversa, em que Christina Lamb fala sobre a obrigação que o jornalismo tem de escrever sobre “assuntos desconfortáveis”, como este, reflete sobre a abordagem ética que se deve ter para evitar um segundo trauma e indica o que pode ser feito para começar a mudar essa situação que destrói a vida de mulheres, crianças e bebês. Por fim, conclui: “Isso tudo não tem a ver com sexo. É sobre poder.”

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Queremos acreditar que o mundo evolui, e então lemos as histórias que você conta em seu livro - que estão acontecendo agora da mesma forma que aconteceram e acontecem há muitos anos. Você escreve que nunca ouviu tantos testemunhos de violência sexual durante guerras como nos últimos nove anos. Por que isso está acontecendo?

Por muitos motivos, mas o principal deles é: ninguém está sendo julgado por isso, não há punição. O estupro é uma arma de guerra eficaz e barata. Se você quer expulsar alguém de uma vila, então estuprar mulheres, meninas e às vezes meninos é uma forma de humilhar todos e fazer com que vão embora. E nada acontece a essas pessoas. Então, acho que é por isso que está acontecendo cada vez mais e mais.

Quais são as táticas mais comuns usadas por grupos armados para perpetrar a violência sexual em áreas de conflito, e como isso afeta tanto os indivíduos quanto a comunidade?

Isso varia de lugar para lugar. Em conflitos religiosos, é dito aos combatentes que é seu dever religioso fazer aquilo. É o caso das yazidis. Em outros locais, em que pessoas são alvo de violência étnica, como Ruanda e Bósnia, isso pode ser uma forma de premiar os combatentes. Esse provavelmente também é o caso do Boko Haram, que é em parte religioso, mas, também, porque esses jovens rapazes são tão pobres que não poderiam pagar o dote. Então, essas meninas sequestradas são dadas a eles.

Meninas sequestradas na Nigéria, em imagem fornecida pelo Boko Haram Foto: Boko Haram/Sahara Reporters/Reuters

Mas às vezes é por vingança. O que estamos vendo na Ucrânia é em parte ideológico - foi dito a eles que os ucranianos roubaram sua terra, que são nazistas, fascistas, inimigos e que deveriam fazer o que pudessem contra eles. E há o elemento de frustração dos combatentes, de que as coisas não estão indo bem.

Há inúmeros motivos. E em alguns lugares o que se vê é o uso do estupro como uma forma de tortura. Ele ocorre na frente da família, como nas histórias que ouvimos sobre a Ucrânia, e como aconteceu com uma menina que foi obrigada a ver sua irmã mais nova sendo estuprada - ela acabou morrendo. Isso ocorre também nos centros de detenção contra manifestantes, como na Bielorrússia e no Irã, por exemplo. Fora isso, é preciso dizer também que às vezes os agressores usam objetos, e não necessariamente o próprio corpo. Enfim, são vários tipos de mensagem - e é muito difícil entender que isso está acontecendo em 2023.

A guerra na Ucrânia causou uma comoção diferente no Ocidente, porque muitas pessoas se identificaram. Não se trata mais de uma mulher de uma determinada religião ou grupo étnico numa região rural de um país africano ou asiático que está sofrendo abuso, mas uma professora de literatura num país do leste europeu, cuja história você conta no livro, por exemplo. Você acredita que essa proximidade pode colocar, de alguma forma, o problema em discussão, e ajudar todas?

Não parece correto, não é? Você está certa no que diz. Recentemente eu entrevistei o procurador-chefe da International Criminal Court e ele disse que a Ucrânia é uma oportunidade, uma oportunidade terrível claro, porque ela está atraindo toda essa atenção e as pessoas parecem mais determinadas a fazer alguma coisa. Agora, não precisaria que algo assim acontecesse para que as pessoas soubessem disso. Essa situação não deveria ser aceita em nenhum lugar, de nenhuma forma. Mas se isso fizer com que as pessoas olhem para o problema e façam realmente alguma coisa, então é um ponto positivo. Eu viajei para 12 diferentes países, em todos os continentes. O que eu posso dizer é que isso acontece em todos os lugares.

A mudança deve ser gestada em diferentes níveis - politicamente, institucionalmente, socialmente e individualmente. O que precisa ser feito exatamente? Quais devem ser as prioridades?

Essa é uma pergunta-chave. Há muita coisa que pode ser feita e deveríamos sentir vergonha por essa situação existir hoje. É difícil condenar um estuprador, mas não é difícil tomar uma atitude. Até o momento, quase ninguém foi levado a julgamento num tribunal internacional. Uma pessoa foi julgada nos últimos 20 anos, quando há milhares de mulheres e meninas e meninos que foram vítimas de violência sexual. Não há justificativa para isso. É preciso mais do que atenção internacional. É preciso que as pessoas sejam julgadas, que haja melhores evidências, proteção para as pessoas que levam a questão adiante.

Precisamos de mais representação feminina no Sistema de Justiça. E também mais mulheres na negociação de paz. Uma mulher sentada à mesa vai trazer o assunto à tona em vez de deixá-lo de lado. Quanto à Ucrânia, dizem que precisamos de um novo Nuremberg, mas essa é a última coisa de que precisamos. Nuremberg ignorou completamente o que aconteceu com as mulheres. Se for para ter outro tribunal internacional para julgar o que está acontecendo na Ucrânia, espero que o estupro seja tratado como um crime de guerra como os demais.

Como a imprensa pode cobrir essas histórias de uma maneira que seja ética e respeitosa com os sobreviventes?

Primeiro de tudo, é muito importante que a gente escreva sobre esse tema, que espalhe o assunto para criar uma consciência de que ele existe. Tive um editor, um homem de uma certa idade, que dizia que ninguém queria ler sobre isso. Eu respondia que não era porque o assunto era desconfortável e ele não queria ouvir sobre aquilo que não deveríamos fazer reportagens sobre ele. E que era o nosso dever escrever sobre temas desconfortáveis. E como fazer isso eticamente, considerando que estamos entrevistando pessoas que estão profundamente traumatizadas pelo que passaram e que não queremos traumatizá-las mais uma vez?

Para escrever meu livro, não saí perguntando para mulheres se elas falavam inglês, se tinham sido estupradas. Procurei organizações que apoiam sobreviventes e pedi que perguntassem se alguém gostaria de falar com uma jornalista. As pessoas escolheram entre falar ou não. Em alguns casos, como no cruzamento da fronteira de Bangladesh, nós fomos os primeiros rostos que essas pessoas viram. Temos que ser muito cuidadosos.

Trabalhar no meu livro me fez perceber como é fácil traumatizar ainda mais uma pessoa que já passou por um grande trauma e como podemos atrapalhar o seu processo legal, caso nos digam algo que possa contradizer minimamente seus depoimentos - o que é frequentemente o caso, porque as pessoas se lembram das coisas de forma diferente. Comecei a trabalhar com uma cineasta e, com um grupo de sobreviventes, criamos uma espécie de roteiro. Fora que escrever sobre isso também pode nos traumatizar. Não é fácil cobrir esse tipo de assunto, e também temos que tomar conta de nós mesmos.

De tudo o que ouviu, o que mais te feriu?

Provavelmente, as histórias com crianças. Na República Democrática do Congo eu vi crianças, vi bebês. Não fazemos ideia de como uma pessoa pode estuprar um bebê pequeno. Talvez a pior coisa que eu tenha visto tenha sido uma menina de cinco anos... Crianças sequestradas pelo Estado Islâmico, que passavam de mão em mão, que chegavam a ser estupradas por 12 homens diferentes. Ela disse que se sentiu como uma cabra. Foi tratada como um objeto.

Meu livro é sobre mulheres, mas isso também acontece com homens e meninos. Entrevistei o homem que inspirou o filme O Mauritano, que ficou preso 16 anos em Guantánamo, sem condenação. Eu o entrevistei quando o filme ia sair e não sabia nada sobre a violência sexual que ele sofreu. Perguntei qual tinha sido a pior coisa que ele tinha passado e ele disse que foi a violência sexual, que mulheres americanas o estupraram e que ele sentiu completamente objetificado, e que não conseguiu ter nenhuma intimidade depois disso.

São histórias muito parecidas, vividas por mulheres diferentes, de culturas diversas. O que você conclui?

Que é uma coisa fácil. As pessoas não estão pagando pelo que estão fazendo. Até que haja punição, isso vai continuar acontecendo em todos os lugares. Outra coisa é a inacreditável resiliência dessas mulheres. Essas mulheres se apresentaram, contaram suas histórias. Elas são incrivelmente corajosas. Escrevo no livro sobre minha ida à City of Joy, no Congo (há um filme sobre esse centro de recuperação no Congo, City of Joy: Onde Vive a Esperança, disponível na Netflix). As mulheres são como o nome do lugar: alegres, coloridas, transbordam luz, e ainda assim passaram por coisas realmente terríveis. Uma das meninas que conheci lá foi estuprada tão violentamente que havia passado por 13 cirurgias e ainda precisava de outras. E ela tinha o maior sorriso no rosto. Ela me disse que queria que as pessoas soubessem o que aconteceu, por isso contava sua história.

O que aprendeu com essas mulheres?

A resiliência. É realmente humilhante. Mas também te faz pensar sobre homens em conflitos. Se for dada a eles a oportunidade, a maioria vai fazer isso? É difícil entender porque não vejo que tipo de prazer pode existir nisso. Mulheres e crianças gritando, amarradas numa bananeira, sendo estupradas. Mas não tem a ver com sexo. É sobre poder.

Onde a situação é mais perigosa hoje para as mulheres?

Infelizmente, não há lugar pior hoje do que o Afeganistão. A ideia de que as meninas não podem ir ao ensino médio e à universidade e de que mulheres não podem trabalhar nem ir a nenhum lugar sem acompanhantes masculinos é de cortar o coração. Todo mundo se revoltou com o Taleban, mas ninguém fez nada contra isso. Em agosto, vão se completar dois anos que o Taleban retomou o controle do Afeganistão.

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha

Autora: Christina Lamb

Tradução: Ligia Azevedo

Editora: Companhia das Letras, 496 págs.; R$ 114,90; R$ 44,90 o e-book)

A jornalista inglesa Christina Lamb viu o horror. Como correspondente de guerra nos últimos 35 anos, presenciou o pior do ser humano, ouviu histórias tenebrosas, aprendeu o significado da palavra resiliência.

Suas reportagens foram publicadas por jornais britânicos. Outras histórias, de luta e sobrevivência, viraram livros.

Ela é coautora, por exemplo, com Malala Yousafzai, da biografia da Nobel da Paz (Eu Sou Malala foi publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2013).

A jornalista inglesa Christina Lamb tem mais de 30 anos de experiência como correspondente de guerra Foto: Companhia das Letras

E ela ajudou Nujeen Mustafá, que nasceu com paralisia cerebral e, adolescente, fugiu da Guerra da Síria em uma cadeira de rodas, a contar sua aventura até a Alemanha por estradas e botes clandestinos. (O Estadão conversou com Nujeen na época do lançamento de sua biografia, em 2017, pela Universo dos Livros; leia aqui a entrevista).

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha

A obra mais recente de Christina Lamb dá voz não a uma, mas a inúmeras mulheres - todas elas vítimas em um mundo, ocidental e oriental, industrializado e arcaico, democrático e ditatorial, em que homens descobriram que o estupro é a mais barata e eficaz arma de guerra - um tema que vem ganhando destaque com a ajuda de pessoas como Lamb e, antes, a iraniana Nadia Murad (confira o perfil da jovem ativista).

Nobel da Paz de 2018, Nadia tinha 21 anos quando foi sequestrada pelo Estado Islâmico e passou três meses nas mãos dos radicais. Hoje, ela tenta conscientizar lideranças internacionais acerca do uso violência sexual em guerras e conflitos armados - e vem ao Brasil em junho, para participar do ciclo de debates Fronteiras do Pensamento, quando deve falar sobre seu livro Que eu Seja a Última (Novo Século).

Mulher nigeriana relatou à Anistia Internacional que foi vítima de violência sexual por membros do exército de seu país, durante o conflito com o Boko Haram Foto: Amnesty International/Reuters

Nadia não foi a última. Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha (Companhia das Letras), o lançamento de Christina Lamb, traz histórias muito recentes. Sobre elas, a jornalista, que viveu no Brasil entre 1990 e 1993 e foi inspiração de Paulo Coelho para a criação da personagem Esther, de Zahir (2005), que tinha acabado de voltar da Ucrânia, estava chegando em Portugal e se preparava já para embarcar para a Angola, conversou com o Estadão por videoconferência.

“Na Ucrânia, vi coisas que eu não esperava ver na vida. Parece a Primeira Guerra Mundial, com trincheiras e armas usadas naquela guerra. É chocante. E a escala das baixas é alarmante”, ela diz, complementando que acredita que o número de casos de estupro, lá, seja muito maior do que o que vem sendo reportado.

Odessa, na Ucrânia, em junho de 2022 Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

O país europeu ganhou um capítulo em seu livro. Mas esta é só a história mais recente. Lamb volta até o período da ditadura argentina, passa pelo genocídio de Ruanda, e traz notícias de lugares como Curdistão, Afeganistão, Nigéria e Bangladesh. Histórias, ela confessa, que nem ela mesma conhecia. “Sou correspondente de guerra, e não percebia que isso estava acontecendo. E quanto mais eu pesquisava, mais chocada e revoltada eu ficava”, disse ao Estadão.

Bolsonaro e Trump

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha é um livro difícil. “As pessoas ficam chocadas que isso esteja acontecendo no mundo numa escala tão grande”, comenta.

Também é chocante, ela diz, e difícil de entender como Trump e Bolsonaro foram eleitos com a ajuda do voto feminino. “Algumas das coisas que Bolsonaro disse sobre mulheres não poderiam ser ditas no século 21, e ainda assim ele foi eleito”, comentou. No livro, ela cita o comentário feito pelo ex-presidente sobre a deputada Maria do Rosário (em 2003, ele disse que “ela não merecia ser estuprada”; a Justiça determinou que ele deveria pedir desculpas).

Entrevista com Christina Lamb

Confira trechos da conversa, em que Christina Lamb fala sobre a obrigação que o jornalismo tem de escrever sobre “assuntos desconfortáveis”, como este, reflete sobre a abordagem ética que se deve ter para evitar um segundo trauma e indica o que pode ser feito para começar a mudar essa situação que destrói a vida de mulheres, crianças e bebês. Por fim, conclui: “Isso tudo não tem a ver com sexo. É sobre poder.”

Queremos acreditar que o mundo evolui, e então lemos as histórias que você conta em seu livro - que estão acontecendo agora da mesma forma que aconteceram e acontecem há muitos anos. Você escreve que nunca ouviu tantos testemunhos de violência sexual durante guerras como nos últimos nove anos. Por que isso está acontecendo?

Por muitos motivos, mas o principal deles é: ninguém está sendo julgado por isso, não há punição. O estupro é uma arma de guerra eficaz e barata. Se você quer expulsar alguém de uma vila, então estuprar mulheres, meninas e às vezes meninos é uma forma de humilhar todos e fazer com que vão embora. E nada acontece a essas pessoas. Então, acho que é por isso que está acontecendo cada vez mais e mais.

Quais são as táticas mais comuns usadas por grupos armados para perpetrar a violência sexual em áreas de conflito, e como isso afeta tanto os indivíduos quanto a comunidade?

Isso varia de lugar para lugar. Em conflitos religiosos, é dito aos combatentes que é seu dever religioso fazer aquilo. É o caso das yazidis. Em outros locais, em que pessoas são alvo de violência étnica, como Ruanda e Bósnia, isso pode ser uma forma de premiar os combatentes. Esse provavelmente também é o caso do Boko Haram, que é em parte religioso, mas, também, porque esses jovens rapazes são tão pobres que não poderiam pagar o dote. Então, essas meninas sequestradas são dadas a eles.

Meninas sequestradas na Nigéria, em imagem fornecida pelo Boko Haram Foto: Boko Haram/Sahara Reporters/Reuters

Mas às vezes é por vingança. O que estamos vendo na Ucrânia é em parte ideológico - foi dito a eles que os ucranianos roubaram sua terra, que são nazistas, fascistas, inimigos e que deveriam fazer o que pudessem contra eles. E há o elemento de frustração dos combatentes, de que as coisas não estão indo bem.

Há inúmeros motivos. E em alguns lugares o que se vê é o uso do estupro como uma forma de tortura. Ele ocorre na frente da família, como nas histórias que ouvimos sobre a Ucrânia, e como aconteceu com uma menina que foi obrigada a ver sua irmã mais nova sendo estuprada - ela acabou morrendo. Isso ocorre também nos centros de detenção contra manifestantes, como na Bielorrússia e no Irã, por exemplo. Fora isso, é preciso dizer também que às vezes os agressores usam objetos, e não necessariamente o próprio corpo. Enfim, são vários tipos de mensagem - e é muito difícil entender que isso está acontecendo em 2023.

A guerra na Ucrânia causou uma comoção diferente no Ocidente, porque muitas pessoas se identificaram. Não se trata mais de uma mulher de uma determinada religião ou grupo étnico numa região rural de um país africano ou asiático que está sofrendo abuso, mas uma professora de literatura num país do leste europeu, cuja história você conta no livro, por exemplo. Você acredita que essa proximidade pode colocar, de alguma forma, o problema em discussão, e ajudar todas?

Não parece correto, não é? Você está certa no que diz. Recentemente eu entrevistei o procurador-chefe da International Criminal Court e ele disse que a Ucrânia é uma oportunidade, uma oportunidade terrível claro, porque ela está atraindo toda essa atenção e as pessoas parecem mais determinadas a fazer alguma coisa. Agora, não precisaria que algo assim acontecesse para que as pessoas soubessem disso. Essa situação não deveria ser aceita em nenhum lugar, de nenhuma forma. Mas se isso fizer com que as pessoas olhem para o problema e façam realmente alguma coisa, então é um ponto positivo. Eu viajei para 12 diferentes países, em todos os continentes. O que eu posso dizer é que isso acontece em todos os lugares.

A mudança deve ser gestada em diferentes níveis - politicamente, institucionalmente, socialmente e individualmente. O que precisa ser feito exatamente? Quais devem ser as prioridades?

Essa é uma pergunta-chave. Há muita coisa que pode ser feita e deveríamos sentir vergonha por essa situação existir hoje. É difícil condenar um estuprador, mas não é difícil tomar uma atitude. Até o momento, quase ninguém foi levado a julgamento num tribunal internacional. Uma pessoa foi julgada nos últimos 20 anos, quando há milhares de mulheres e meninas e meninos que foram vítimas de violência sexual. Não há justificativa para isso. É preciso mais do que atenção internacional. É preciso que as pessoas sejam julgadas, que haja melhores evidências, proteção para as pessoas que levam a questão adiante.

Precisamos de mais representação feminina no Sistema de Justiça. E também mais mulheres na negociação de paz. Uma mulher sentada à mesa vai trazer o assunto à tona em vez de deixá-lo de lado. Quanto à Ucrânia, dizem que precisamos de um novo Nuremberg, mas essa é a última coisa de que precisamos. Nuremberg ignorou completamente o que aconteceu com as mulheres. Se for para ter outro tribunal internacional para julgar o que está acontecendo na Ucrânia, espero que o estupro seja tratado como um crime de guerra como os demais.

Como a imprensa pode cobrir essas histórias de uma maneira que seja ética e respeitosa com os sobreviventes?

Primeiro de tudo, é muito importante que a gente escreva sobre esse tema, que espalhe o assunto para criar uma consciência de que ele existe. Tive um editor, um homem de uma certa idade, que dizia que ninguém queria ler sobre isso. Eu respondia que não era porque o assunto era desconfortável e ele não queria ouvir sobre aquilo que não deveríamos fazer reportagens sobre ele. E que era o nosso dever escrever sobre temas desconfortáveis. E como fazer isso eticamente, considerando que estamos entrevistando pessoas que estão profundamente traumatizadas pelo que passaram e que não queremos traumatizá-las mais uma vez?

Para escrever meu livro, não saí perguntando para mulheres se elas falavam inglês, se tinham sido estupradas. Procurei organizações que apoiam sobreviventes e pedi que perguntassem se alguém gostaria de falar com uma jornalista. As pessoas escolheram entre falar ou não. Em alguns casos, como no cruzamento da fronteira de Bangladesh, nós fomos os primeiros rostos que essas pessoas viram. Temos que ser muito cuidadosos.

Trabalhar no meu livro me fez perceber como é fácil traumatizar ainda mais uma pessoa que já passou por um grande trauma e como podemos atrapalhar o seu processo legal, caso nos digam algo que possa contradizer minimamente seus depoimentos - o que é frequentemente o caso, porque as pessoas se lembram das coisas de forma diferente. Comecei a trabalhar com uma cineasta e, com um grupo de sobreviventes, criamos uma espécie de roteiro. Fora que escrever sobre isso também pode nos traumatizar. Não é fácil cobrir esse tipo de assunto, e também temos que tomar conta de nós mesmos.

De tudo o que ouviu, o que mais te feriu?

Provavelmente, as histórias com crianças. Na República Democrática do Congo eu vi crianças, vi bebês. Não fazemos ideia de como uma pessoa pode estuprar um bebê pequeno. Talvez a pior coisa que eu tenha visto tenha sido uma menina de cinco anos... Crianças sequestradas pelo Estado Islâmico, que passavam de mão em mão, que chegavam a ser estupradas por 12 homens diferentes. Ela disse que se sentiu como uma cabra. Foi tratada como um objeto.

Meu livro é sobre mulheres, mas isso também acontece com homens e meninos. Entrevistei o homem que inspirou o filme O Mauritano, que ficou preso 16 anos em Guantánamo, sem condenação. Eu o entrevistei quando o filme ia sair e não sabia nada sobre a violência sexual que ele sofreu. Perguntei qual tinha sido a pior coisa que ele tinha passado e ele disse que foi a violência sexual, que mulheres americanas o estupraram e que ele sentiu completamente objetificado, e que não conseguiu ter nenhuma intimidade depois disso.

São histórias muito parecidas, vividas por mulheres diferentes, de culturas diversas. O que você conclui?

Que é uma coisa fácil. As pessoas não estão pagando pelo que estão fazendo. Até que haja punição, isso vai continuar acontecendo em todos os lugares. Outra coisa é a inacreditável resiliência dessas mulheres. Essas mulheres se apresentaram, contaram suas histórias. Elas são incrivelmente corajosas. Escrevo no livro sobre minha ida à City of Joy, no Congo (há um filme sobre esse centro de recuperação no Congo, City of Joy: Onde Vive a Esperança, disponível na Netflix). As mulheres são como o nome do lugar: alegres, coloridas, transbordam luz, e ainda assim passaram por coisas realmente terríveis. Uma das meninas que conheci lá foi estuprada tão violentamente que havia passado por 13 cirurgias e ainda precisava de outras. E ela tinha o maior sorriso no rosto. Ela me disse que queria que as pessoas soubessem o que aconteceu, por isso contava sua história.

O que aprendeu com essas mulheres?

A resiliência. É realmente humilhante. Mas também te faz pensar sobre homens em conflitos. Se for dada a eles a oportunidade, a maioria vai fazer isso? É difícil entender porque não vejo que tipo de prazer pode existir nisso. Mulheres e crianças gritando, amarradas numa bananeira, sendo estupradas. Mas não tem a ver com sexo. É sobre poder.

Onde a situação é mais perigosa hoje para as mulheres?

Infelizmente, não há lugar pior hoje do que o Afeganistão. A ideia de que as meninas não podem ir ao ensino médio e à universidade e de que mulheres não podem trabalhar nem ir a nenhum lugar sem acompanhantes masculinos é de cortar o coração. Todo mundo se revoltou com o Taleban, mas ninguém fez nada contra isso. Em agosto, vão se completar dois anos que o Taleban retomou o controle do Afeganistão.

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha

Autora: Christina Lamb

Tradução: Ligia Azevedo

Editora: Companhia das Letras, 496 págs.; R$ 114,90; R$ 44,90 o e-book)

A jornalista inglesa Christina Lamb viu o horror. Como correspondente de guerra nos últimos 35 anos, presenciou o pior do ser humano, ouviu histórias tenebrosas, aprendeu o significado da palavra resiliência.

Suas reportagens foram publicadas por jornais britânicos. Outras histórias, de luta e sobrevivência, viraram livros.

Ela é coautora, por exemplo, com Malala Yousafzai, da biografia da Nobel da Paz (Eu Sou Malala foi publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2013).

A jornalista inglesa Christina Lamb tem mais de 30 anos de experiência como correspondente de guerra Foto: Companhia das Letras

E ela ajudou Nujeen Mustafá, que nasceu com paralisia cerebral e, adolescente, fugiu da Guerra da Síria em uma cadeira de rodas, a contar sua aventura até a Alemanha por estradas e botes clandestinos. (O Estadão conversou com Nujeen na época do lançamento de sua biografia, em 2017, pela Universo dos Livros; leia aqui a entrevista).

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha

A obra mais recente de Christina Lamb dá voz não a uma, mas a inúmeras mulheres - todas elas vítimas em um mundo, ocidental e oriental, industrializado e arcaico, democrático e ditatorial, em que homens descobriram que o estupro é a mais barata e eficaz arma de guerra - um tema que vem ganhando destaque com a ajuda de pessoas como Lamb e, antes, a iraniana Nadia Murad (confira o perfil da jovem ativista).

Nobel da Paz de 2018, Nadia tinha 21 anos quando foi sequestrada pelo Estado Islâmico e passou três meses nas mãos dos radicais. Hoje, ela tenta conscientizar lideranças internacionais acerca do uso violência sexual em guerras e conflitos armados - e vem ao Brasil em junho, para participar do ciclo de debates Fronteiras do Pensamento, quando deve falar sobre seu livro Que eu Seja a Última (Novo Século).

Mulher nigeriana relatou à Anistia Internacional que foi vítima de violência sexual por membros do exército de seu país, durante o conflito com o Boko Haram Foto: Amnesty International/Reuters

Nadia não foi a última. Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha (Companhia das Letras), o lançamento de Christina Lamb, traz histórias muito recentes. Sobre elas, a jornalista, que viveu no Brasil entre 1990 e 1993 e foi inspiração de Paulo Coelho para a criação da personagem Esther, de Zahir (2005), que tinha acabado de voltar da Ucrânia, estava chegando em Portugal e se preparava já para embarcar para a Angola, conversou com o Estadão por videoconferência.

“Na Ucrânia, vi coisas que eu não esperava ver na vida. Parece a Primeira Guerra Mundial, com trincheiras e armas usadas naquela guerra. É chocante. E a escala das baixas é alarmante”, ela diz, complementando que acredita que o número de casos de estupro, lá, seja muito maior do que o que vem sendo reportado.

Odessa, na Ucrânia, em junho de 2022 Foto: Oleksandr Gimanov/AFP

O país europeu ganhou um capítulo em seu livro. Mas esta é só a história mais recente. Lamb volta até o período da ditadura argentina, passa pelo genocídio de Ruanda, e traz notícias de lugares como Curdistão, Afeganistão, Nigéria e Bangladesh. Histórias, ela confessa, que nem ela mesma conhecia. “Sou correspondente de guerra, e não percebia que isso estava acontecendo. E quanto mais eu pesquisava, mais chocada e revoltada eu ficava”, disse ao Estadão.

Bolsonaro e Trump

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha é um livro difícil. “As pessoas ficam chocadas que isso esteja acontecendo no mundo numa escala tão grande”, comenta.

Também é chocante, ela diz, e difícil de entender como Trump e Bolsonaro foram eleitos com a ajuda do voto feminino. “Algumas das coisas que Bolsonaro disse sobre mulheres não poderiam ser ditas no século 21, e ainda assim ele foi eleito”, comentou. No livro, ela cita o comentário feito pelo ex-presidente sobre a deputada Maria do Rosário (em 2003, ele disse que “ela não merecia ser estuprada”; a Justiça determinou que ele deveria pedir desculpas).

Entrevista com Christina Lamb

Confira trechos da conversa, em que Christina Lamb fala sobre a obrigação que o jornalismo tem de escrever sobre “assuntos desconfortáveis”, como este, reflete sobre a abordagem ética que se deve ter para evitar um segundo trauma e indica o que pode ser feito para começar a mudar essa situação que destrói a vida de mulheres, crianças e bebês. Por fim, conclui: “Isso tudo não tem a ver com sexo. É sobre poder.”

Queremos acreditar que o mundo evolui, e então lemos as histórias que você conta em seu livro - que estão acontecendo agora da mesma forma que aconteceram e acontecem há muitos anos. Você escreve que nunca ouviu tantos testemunhos de violência sexual durante guerras como nos últimos nove anos. Por que isso está acontecendo?

Por muitos motivos, mas o principal deles é: ninguém está sendo julgado por isso, não há punição. O estupro é uma arma de guerra eficaz e barata. Se você quer expulsar alguém de uma vila, então estuprar mulheres, meninas e às vezes meninos é uma forma de humilhar todos e fazer com que vão embora. E nada acontece a essas pessoas. Então, acho que é por isso que está acontecendo cada vez mais e mais.

Quais são as táticas mais comuns usadas por grupos armados para perpetrar a violência sexual em áreas de conflito, e como isso afeta tanto os indivíduos quanto a comunidade?

Isso varia de lugar para lugar. Em conflitos religiosos, é dito aos combatentes que é seu dever religioso fazer aquilo. É o caso das yazidis. Em outros locais, em que pessoas são alvo de violência étnica, como Ruanda e Bósnia, isso pode ser uma forma de premiar os combatentes. Esse provavelmente também é o caso do Boko Haram, que é em parte religioso, mas, também, porque esses jovens rapazes são tão pobres que não poderiam pagar o dote. Então, essas meninas sequestradas são dadas a eles.

Meninas sequestradas na Nigéria, em imagem fornecida pelo Boko Haram Foto: Boko Haram/Sahara Reporters/Reuters

Mas às vezes é por vingança. O que estamos vendo na Ucrânia é em parte ideológico - foi dito a eles que os ucranianos roubaram sua terra, que são nazistas, fascistas, inimigos e que deveriam fazer o que pudessem contra eles. E há o elemento de frustração dos combatentes, de que as coisas não estão indo bem.

Há inúmeros motivos. E em alguns lugares o que se vê é o uso do estupro como uma forma de tortura. Ele ocorre na frente da família, como nas histórias que ouvimos sobre a Ucrânia, e como aconteceu com uma menina que foi obrigada a ver sua irmã mais nova sendo estuprada - ela acabou morrendo. Isso ocorre também nos centros de detenção contra manifestantes, como na Bielorrússia e no Irã, por exemplo. Fora isso, é preciso dizer também que às vezes os agressores usam objetos, e não necessariamente o próprio corpo. Enfim, são vários tipos de mensagem - e é muito difícil entender que isso está acontecendo em 2023.

A guerra na Ucrânia causou uma comoção diferente no Ocidente, porque muitas pessoas se identificaram. Não se trata mais de uma mulher de uma determinada religião ou grupo étnico numa região rural de um país africano ou asiático que está sofrendo abuso, mas uma professora de literatura num país do leste europeu, cuja história você conta no livro, por exemplo. Você acredita que essa proximidade pode colocar, de alguma forma, o problema em discussão, e ajudar todas?

Não parece correto, não é? Você está certa no que diz. Recentemente eu entrevistei o procurador-chefe da International Criminal Court e ele disse que a Ucrânia é uma oportunidade, uma oportunidade terrível claro, porque ela está atraindo toda essa atenção e as pessoas parecem mais determinadas a fazer alguma coisa. Agora, não precisaria que algo assim acontecesse para que as pessoas soubessem disso. Essa situação não deveria ser aceita em nenhum lugar, de nenhuma forma. Mas se isso fizer com que as pessoas olhem para o problema e façam realmente alguma coisa, então é um ponto positivo. Eu viajei para 12 diferentes países, em todos os continentes. O que eu posso dizer é que isso acontece em todos os lugares.

A mudança deve ser gestada em diferentes níveis - politicamente, institucionalmente, socialmente e individualmente. O que precisa ser feito exatamente? Quais devem ser as prioridades?

Essa é uma pergunta-chave. Há muita coisa que pode ser feita e deveríamos sentir vergonha por essa situação existir hoje. É difícil condenar um estuprador, mas não é difícil tomar uma atitude. Até o momento, quase ninguém foi levado a julgamento num tribunal internacional. Uma pessoa foi julgada nos últimos 20 anos, quando há milhares de mulheres e meninas e meninos que foram vítimas de violência sexual. Não há justificativa para isso. É preciso mais do que atenção internacional. É preciso que as pessoas sejam julgadas, que haja melhores evidências, proteção para as pessoas que levam a questão adiante.

Precisamos de mais representação feminina no Sistema de Justiça. E também mais mulheres na negociação de paz. Uma mulher sentada à mesa vai trazer o assunto à tona em vez de deixá-lo de lado. Quanto à Ucrânia, dizem que precisamos de um novo Nuremberg, mas essa é a última coisa de que precisamos. Nuremberg ignorou completamente o que aconteceu com as mulheres. Se for para ter outro tribunal internacional para julgar o que está acontecendo na Ucrânia, espero que o estupro seja tratado como um crime de guerra como os demais.

Como a imprensa pode cobrir essas histórias de uma maneira que seja ética e respeitosa com os sobreviventes?

Primeiro de tudo, é muito importante que a gente escreva sobre esse tema, que espalhe o assunto para criar uma consciência de que ele existe. Tive um editor, um homem de uma certa idade, que dizia que ninguém queria ler sobre isso. Eu respondia que não era porque o assunto era desconfortável e ele não queria ouvir sobre aquilo que não deveríamos fazer reportagens sobre ele. E que era o nosso dever escrever sobre temas desconfortáveis. E como fazer isso eticamente, considerando que estamos entrevistando pessoas que estão profundamente traumatizadas pelo que passaram e que não queremos traumatizá-las mais uma vez?

Para escrever meu livro, não saí perguntando para mulheres se elas falavam inglês, se tinham sido estupradas. Procurei organizações que apoiam sobreviventes e pedi que perguntassem se alguém gostaria de falar com uma jornalista. As pessoas escolheram entre falar ou não. Em alguns casos, como no cruzamento da fronteira de Bangladesh, nós fomos os primeiros rostos que essas pessoas viram. Temos que ser muito cuidadosos.

Trabalhar no meu livro me fez perceber como é fácil traumatizar ainda mais uma pessoa que já passou por um grande trauma e como podemos atrapalhar o seu processo legal, caso nos digam algo que possa contradizer minimamente seus depoimentos - o que é frequentemente o caso, porque as pessoas se lembram das coisas de forma diferente. Comecei a trabalhar com uma cineasta e, com um grupo de sobreviventes, criamos uma espécie de roteiro. Fora que escrever sobre isso também pode nos traumatizar. Não é fácil cobrir esse tipo de assunto, e também temos que tomar conta de nós mesmos.

De tudo o que ouviu, o que mais te feriu?

Provavelmente, as histórias com crianças. Na República Democrática do Congo eu vi crianças, vi bebês. Não fazemos ideia de como uma pessoa pode estuprar um bebê pequeno. Talvez a pior coisa que eu tenha visto tenha sido uma menina de cinco anos... Crianças sequestradas pelo Estado Islâmico, que passavam de mão em mão, que chegavam a ser estupradas por 12 homens diferentes. Ela disse que se sentiu como uma cabra. Foi tratada como um objeto.

Meu livro é sobre mulheres, mas isso também acontece com homens e meninos. Entrevistei o homem que inspirou o filme O Mauritano, que ficou preso 16 anos em Guantánamo, sem condenação. Eu o entrevistei quando o filme ia sair e não sabia nada sobre a violência sexual que ele sofreu. Perguntei qual tinha sido a pior coisa que ele tinha passado e ele disse que foi a violência sexual, que mulheres americanas o estupraram e que ele sentiu completamente objetificado, e que não conseguiu ter nenhuma intimidade depois disso.

São histórias muito parecidas, vividas por mulheres diferentes, de culturas diversas. O que você conclui?

Que é uma coisa fácil. As pessoas não estão pagando pelo que estão fazendo. Até que haja punição, isso vai continuar acontecendo em todos os lugares. Outra coisa é a inacreditável resiliência dessas mulheres. Essas mulheres se apresentaram, contaram suas histórias. Elas são incrivelmente corajosas. Escrevo no livro sobre minha ida à City of Joy, no Congo (há um filme sobre esse centro de recuperação no Congo, City of Joy: Onde Vive a Esperança, disponível na Netflix). As mulheres são como o nome do lugar: alegres, coloridas, transbordam luz, e ainda assim passaram por coisas realmente terríveis. Uma das meninas que conheci lá foi estuprada tão violentamente que havia passado por 13 cirurgias e ainda precisava de outras. E ela tinha o maior sorriso no rosto. Ela me disse que queria que as pessoas soubessem o que aconteceu, por isso contava sua história.

O que aprendeu com essas mulheres?

A resiliência. É realmente humilhante. Mas também te faz pensar sobre homens em conflitos. Se for dada a eles a oportunidade, a maioria vai fazer isso? É difícil entender porque não vejo que tipo de prazer pode existir nisso. Mulheres e crianças gritando, amarradas numa bananeira, sendo estupradas. Mas não tem a ver com sexo. É sobre poder.

Onde a situação é mais perigosa hoje para as mulheres?

Infelizmente, não há lugar pior hoje do que o Afeganistão. A ideia de que as meninas não podem ir ao ensino médio e à universidade e de que mulheres não podem trabalhar nem ir a nenhum lugar sem acompanhantes masculinos é de cortar o coração. Todo mundo se revoltou com o Taleban, mas ninguém fez nada contra isso. Em agosto, vão se completar dois anos que o Taleban retomou o controle do Afeganistão.

Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha

Autora: Christina Lamb

Tradução: Ligia Azevedo

Editora: Companhia das Letras, 496 págs.; R$ 114,90; R$ 44,90 o e-book)

Entrevista por Maria Fernanda Rodrigues

Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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