Não é difícil imaginar a felicidade desse encontro. Um pai de dois garotos que receberam o diagnóstico de esquizofrenia, Ferreira Gullar (1930-2016) viu em Nise da Silveira (1905-1999) uma experiência de tratamento que, recusando a dor, apostava na criatividade. Uma pioneira aguerrida, a psiquiatra alagoana vinha promovendo desde a década de 1940 a revolução de trocar o eletrochoque pela arte.
O poeta admirava-se particularmente com os feitos de Emygdio de Barros, interno que se revelava de talento extraordinário, mesmo quando comparado a veteranos da pintura brasileira. Pensou em escrever um livro sobre Emygdio, acabou realizando um sobre Nise.
Da proximidade como pai e crítico de arte interessado, eis que Gullar foi convocado pela editora Relume Dumará a produzir um retrato da médica alagoana para uma coleção que movimentava o mercado editorial na década de 1990, a Perfis do Rio. Sentaram-se frente a frente no apartamento onde ela vivia, no Flamengo, durante três sessões de entrevistas em janeiro de 1996.
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Esse, Nise da Silveira, Uma Psiquiatra Rebelde, que recebe agora nova edição pela editora Planeta, pelo selo Paidós, acrescendo, além de textos de Gullar, outros da própria Nise e aparatos editoriais, como apresentação, prefácio, posfácio, caderno de imagens, lista de obras, índice onomástico. Trata-se de uma introdução interessante ao universo dessa cientista e intelectual excepcional, aproveitando suas próprias palavras e seu jeito de recordar.
Como entrevistador, Gullar revela-se calculado, seguindo uma ordem cronológica dos episódios de infância, juventude e início da trajetória de Nise. O perfil dedica-se, portanto, aos anos de formação. Uma pena que as sessões não se tenham estendido, para vasculharmos ainda mais a intimidade, o pensamento e os combates – que não foram poucos – da psiquiatra. Encadeadas numa fala direta e sem afetação, as respostas de Nise revelam uma saga nem um pouco simples.
Os leitores são ajudados pela contextualização que Gullar possibilita na enunciação das perguntas. Já seria uma trajetória extraordinária por seu novo entendimento da terapia ocupacional. E ela ofereceu bem mais que isto: revelou-se uma teórica respeitada, que, sobretudo, se engajou em fazer surgir instituições modelares, o Museu de Imagens do Inconsciente e a Casa das Palmeiras, abordados em textos tanto dela quanto de Gullar.
Revolução no hospital
O desejo da família era que Nise se tornasse pianista, seguindo os passos da mãe, de talento reconhecido. Embora tentasse, a jovem não conseguia distinguir um sol sustenido ou mi bemol. Entusiasmou-se a certa altura com a ideia dos alunos do pai, um professor de matemática, de prestar para a faculdade de medicina da Bahia, à época a única possibilidade de diploma na área, em todo país. Num gesto audacioso de contravenção, alterou a idade de 15 para 16 a fim de garantir o ingresso, e orgulhava-se da foto que, na formatura, a mostrava como única mulher numa turma de 157 alunos. O inusitado é que sentia desde o começo que jamais podia ser médica, uma vez que não conseguia ver sangue.
Com a morte do pai, teve de ganhar a vida e, em vez de retornar a Maceió, se mudou para o Rio, de início integrando o círculo de amigos que ficaria conhecida como a trinca do Curvelo – constituída por ela e os poetas Manuel Bandeira e Ribeiro Couto. Pelo jeito como conta, parece ter sido quase por acaso, para ganhar dinheiro, que Nise começou a fazer trabalhos acadêmicos para psiquiatras: descobria sua vocação. Notamos que a capacidade de pesquisar e pensar estava muito acima da média de seus pares.
Até que, após prestar concurso, obteve aprovação para sua própria vaga de médica psiquiatra da antiga Assistência a Psicopatas e Profilaxia, em 1933. Três anos depois, o trabalho precisou ser interrompido por razões políticas. As leituras marxistas fizeram com que fosse alvo de uma denúncia, levando-a ser presa em 1936 por suspeita de envolvimento com a chamada Intentona Comunista, de que nunca tomara parte. Contrariando a ideia de que pacientes estão indiferentes ao que acontece ao redor, um deles, consternado, pegou de murros a enfermeira que a entregou à polícia.
Nise esteve atrás das grandes no mesmo lugar e época que nomes como Graciliano Ramos e Olga Benário. Após sua liberação por falta de provas, andou pelo País, escondendo-se ajudada por amigos por receio de ser levada outra vez atrás das grades. A aproximação com o partido comunista só ocorreria depois, e logo veio o afastamento, ela e o já marido Mário Silveira, também médico, eram acusados de seguirem a linha trotskista.
A política não a tomaria por muito mais tempo. A ditadura do Estado Novo entrava em colapso quando retornou ao serviço público em 1944 e ali ficou até 1975, ao se aposentar, sempre no Centro Psiquiátrico Pedro II, conhecido por muitos anos também como Hospital do Engenho de Dentro e que hoje tem seu nome. Nise continuou ativa apesar dos problemas de saúde e até seu último ano de vida, 1999.
A sua revolução aconteceu no hospital. Não destoava de seu grupo apenas pela dificuldade em ver sangue. Discordava cada vez mais dos métodos que passavam a ser empregados no tratamento de pacientes que lhe interessavam, os que tinham perdido a lucidez. Uma receita que, virando moda, usava o medicamento cardiazol para provocar convulsões, e, no extremo, a incapacitante lobotomia.
Suspeitava de que havia alternativa, e passou a ler o que havia no mundo sobre o tema, desde Boris Levinson, um pesquisador americano dedicado a entender a importância do convívio de internos com cães e gatos; a Jung, com quem passou a se corresponder quando se deu conta de que as formas geométricas desenhadas nas horas de terapia ocupacional podiam ser as mandalas estudadas pelo suíço em sua psicologia analítica. Nise veio a se tornar uma das grandes divulgadoras de Jung no País, movimentando grupos de leitura e pesquisa, com temporadas na Suíça e publicação de livros.
Entre os acréscimos à nova edição, temos textos de amigos escritores como Vilma Arêas, para quem Nise era “a pessoa mais altiva do planeta”, e Marco Lucchesi, que ressalta o quanto ela e Gullar “pensavam o Brasil”. O posfácio do escritor e psicanalista Christian Dunker ajuda a entender como se vivia o mito Nise nos cursos de psicologia na década de 1980 e é particularmente didático ao falar da aproximação de Nise e Jung, sua leitura de Spinoza, o significado das mandalas, vistas não apenas como possibilidade de interpretação, mas de simbolização e individuação.
Enquanto a médica compartilhava lições de afeto, aqueles que desconfiavam de suas ideias e práticas investiam numa violência nem sempre silenciosa. É chocante quando, em vários momentos das sessões de entrevista, Nise relembra os boicotes e resistências que sofreu mesmo de colegas de hospital. Certo dia um dos diretores a acusou de contratar artistas profissionais para produzir aqueles quadros às escondidas. Tentou proibir uma das exposições, sem considerar o apreço que a médica já angariava na comunidade artística e na imprensa. Com a mobilização o evento se realizou.
Na contabilidade dos gestos mesquinhos, havia até o envenenamento cruel de bichos fundamentais para a melhora de pacientes. Seu estado apresentava recuo visível após a morte de um cão ou gato de companhia. No final da conversa com Gullar, Nise lembra uma frase que Spinoza teria lhe dito num sonho: “A loucura é a pior forma de escravidão humana”. Saímos da leitura com a certeza de que grandes gestos de desrazão partem muitas vezes de gente vista como lúcida.
Gatos, inconsciente e imagens
Uma história bonita de encontro com Nise da Silveira levou Claudio Fragata a produzir um livro infanto-juvenil, O pulo do gato, com ilustrações de Fê, publicado pela Elo Editora. Diante de uma entrevistada refratária a perguntas, que respondia apenas com “sim” e “não” porque desconfiava da imprensa, o repórter, na época atuando numa revista de divulgação científica, foi salvo por um de seus gatos, Carlinhos, assim chamado em homenagem a Carl Jung. Ao ver o visitante, Carlinhos pulou em seu colo e ali ficou aninhado. O sinal que Nise esperava para saber se podia se abrir.
Ao recuperar sua memória pessoal daquela entrevista, Fragata oferece um perfil breve e acessível a muitos públicos. O repórter à época constatava que, dos muitos cientistas entrevistados, poucos eram mulher. Ao responder, Nise admite que pensavam que, enquanto promovia sua revolução no tratamento de pacientes diagnosticados com esquizofrenia, suas ideias de cura pela arte eram vistas como estapafúrdias por uma questão de gênero, e que toda sua vida lutara contra o machismo. Findo o encontro, como tirar gato do colo? “Obrigado, Carlinhos”, ele se despede.
Outro livro que está voltando às livrarias, pela Editora Vozes, é O Mundo das Imagens, publicado originalmente em 1992, e que dá continuidade ao livro de estreia da psiquiatra - Imagens do Inconsciente. Nele, ela aborda as tentativas de mudança da psiquiatria e as histórias de vida dos frequentadores dos ateliês.
Nise da Silveira, Uma Psiquiatra Rebelde
- Autor: Ferreira Gullar
- Editora: Paidós, 192 págs.; $53,90 | E-book: R$ 42,90
O Pulo do Gato: Um Encontro com Nise da Silveira
- Autor: Claudio Fragata
- Ilustrações: Fê
- Editora: Elo, 40 págs.; R$53
O Mundo das Imagens
- Autora: Nise da Silveira
- Org.: Luiz Carlos Mello
- Editora: Vozes (208 págs.; R$ 220)