Em mais de um século de premiações, a Academia Sueca confere o Nobel de Literatura pela primeira vez a um autor sul-coreano. A uma autora, no caso: Han Kang é a 18ª mulher a receber o prêmio. Na terça-feira, 8, dois dias antes da divulgação do vencedor de 2024, o jornal The Guardian apontava como favorita a chinesa Can Xue. Han Kang era listada como uma possibilidade remota. Vinham na sua frente os já veteranos “nobelizáveis” Haruki Murakami, Thomas Pynchon e Margaret Atwood (em 2017, Kazuo Ishiguro pediu desculpas a Atwood por ter levado o prêmio que supunha caber a ela).
Na primeira entrevista com Han Kang divulgada pela organização do prêmio, a autora conta: “Alguém me telefonou e me deu a notícia. Eram oito da noite na Coreia e eu estava terminando de jantar com o meu filho. Era uma noite muito tranquila. Fiquei bastante surpresa.” Kang diz que no dia seguinte “leu um pouco e saiu para caminhar.”
Sua desafetação e sua simplicidade parecem ecoar algo que acompanha a leitura de seus livros: as questões humanas são sérias demais para que uma relação superficial e frívola com o mundo tome a dianteira. Quando a entrevistadora lhe pergunta como pretende comemorar o Nobel, ela diz que ao desligar o telefone vai tomar um chá em companhia do filho.
Um de seus temas, talvez o prevalente, é justamente o da fragilidade humana. Que aparece em contraponto à crueldade humana. Em seu livro mais conhecido, o romance A Vegetariana (vencedor do Booker International Prize), a jovem Yeong-hye tenta se “vegetalizar” após ser assolada por pesadelos perturbadores, retirando-se aos poucos de um mundo que é retratado como violento e autoritário. Nos três episódios que compõem o livro, ela comparece sempre através da voz dos outros.
O primeiro deles é narrado pelo marido, que se opõe autoritariamente à sua decisão de de se tornar vegetariana. O segundo centra-se no cunhado, um artista obcecado por imagens sexuais de corpos pintados com flores, e o terceiro é narrado pela irmã de Yeong-hye. A protagonista quer, em última instância, viver de terra, água e luz, como fazem as árvores. Ou seja: opor-se da forma mais cabal à violência da presença humana no mundo. Mas como evitar, com isso, realizar atos de violência contra si mesma? São questões profundas tratadas com um pensamento sofisticado. Han Kang jamais cai no maniqueísmo e jamais oferece respostas fáceis.
Dois anos depois de vencer o Booker International, ela voltou à lista dos finalistas do prêmio com O Livro Branco, uma reflexão de cunho autobiográfico sobre a perda de uma irmã ainda bebê. O livro foi escrito em Varsóvia, e a autora relata que, ao observar os edifícios reconstruídos na cidade após a Segunda Guerra, entende que a perda da irmã também é parte estrutural de sua própria história. A narrativa faz pensar na Han Kang poeta (ela publicou um livro de poesia em 2013) ao fazer um inventário de objetos brancos que de algum modo se relacionam à vida e à morte da irmã. “Certos objetos parecem brancos na escuridão”, ela escreve – o que poderia valer como definição do próprio livro: a metafórica tentativa de deitar luz sobre a funda escuridão da existência humana.
Essa luz inclui o trabalho da memória. Às vezes se trata da memória mais íntima e individual, como a do luto pela perda de um ente próximo em O Livro Branco, e às vezes da memória coletiva, como a que é invocada em Atos Humanos. Nesse romance, Kang aborda o levante estudantil ocorrido em 1980 na cidade sul-coreana de Gwangju (sua cidade natal) e violentamente reprimido pelo exército. Elenca uma série de personagens de algum modo relacionados à tragédia, marcada pela tortura e pelo assassinato. As almas perdidas ou arrancadas à força. O algoz e a vítima lado a lado na formulação que o romance faz de uma mesma pergunta: “O que é a humanidade?”
Parece que é a pergunta que Han Kang vem fazendo com sua literatura. Ela publicou um total de 11 livros de ficção e um de poesia. Até o momento, foram publicados no Brasil os três mencionados aqui. Na nota de imprensa divulgada pela Academia Sueca, a escolha da autora para o Nobel deste ano se deve à “sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”. Fragilidade essa, poderíamos dizer, que é uma espécie de prerrogativa da nossa condição. Mas que também é, em muitos casos, imposta autoritariamente, seja no âmbito de uma relação familiar, seja na brutalidade do algoz diante da vítima, seja na complexa relação dos seres humanos com o mundo não humano.
Han Kang é uma autora importante para estes tempos em que nos deparamos com as catástrofes criadas por nós mesmos – as catástrofes dos nossos atos humanos. Mas é uma autora que não escreve panfletos e que, portanto, reconhece que é complexa a nossa condição.
Os livros de Han Kang no Brasil
A Vegetariana (2018)
- Trad.: Jae Hyung Woo
- Editora: Todavia (176 págs.; R$ 74,90; R$ 51,90 o e-book)
Atos Humanos (2021)
- Trad.: Ji Yun Kim
- Editora: Todavia (192 págs.; R$ 70,90; R$ 51,90 o e-book)
O Livro Branco (2023)
- Trad.: Natália T. M. Okabayashi
- Editora: Todavia (68,90; R$ 52,90 o e-book)