Novo romance de Luiz Ruffato conta a trajetória política de um brasileiro que sai do interior


'De Mim Já Nem Se Lembra' ganha edição definitiva e faz escritor refletir sobre a condição social e história do Brasil

Por Guilherme Sobota

Luiz Ruffato adiciona mais um tijolo ao seu projeto pessoal de retratar, por meio da literatura, as condições do trabalhador brasileiro com a edição “revista, ampliada e definitiva” do romance De Mim Já Nem se Lembra, lançada agora pela Companhia das Letras. Feito sob encomenda em 2007 para a editora Moderna, o livro conta a história de um personagem – Luiz Ruffato – que encontra, entre os pertences da mãe recentemente morta, uma caixa e um maço de envelopes, cartas enviadas pelo irmão mais velho, Célio, que havia se mudado para São Paulo e, depois, Diadema.

O leitor acompanha, então, as 50 missivas que descrevem as mudanças, internas e externas, de Célio, e sua crescente conscientização política no Brasil da ditadura nos anos 1970. O livro tem lançamento marcado para esta quarta-feira, 6, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2073), às 18h30.

Ruffato respondeu a algumas perguntas do Estado sobre a obra e sobre o contexto político brasileiro.

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Luiz Ruffato, no centro de São Paulo Foto: Nilton Fukuda|Estadão

Em uma das cartas, o personagem Célio escreve: “Isso é muito triste, porque aqui não é o meu lugar. Mas sinto que aí já não é o meu lugar. Ou seja, não sou de lugar nenhum. E isso dói dentro da gente”. Dada sua própria experiência com a mudança, o que você, hoje, diria para o Célio nessa situação?

Creio que a condição primordial do brasileiro é essa sensação de não pertencimento, de desterritorialização. Esse incômodo de saber-se sempre estrangeiro, esteja onde estiver. Meu caso é emblemático. Meus avós vieram da Itália miseráveis, foram empregados rurais e depois pequenos agricultores numa colônia do interior de Minas Gerais. Meus pais mudaram-se de suas cidades de origem para Cataguases, que oferecia a eles condições mais favoráveis de criar os filhos. Eu me mudei para São Paulo, em busca de uma melhor situação econômica. Ou seja, três gerações, três locais diferentes. A maioria absoluta das histórias dos brasileiros percorre esse mesmo caminho: difícil encontrarmos pessoas que moram no lugar onde nasceram seus pais ou seus avós. Aliás, para mim, essa condição de desenraizamento deveria ser levada em conta na hora de tentarmos compreender alguns aspectos da sociedade contemporânea, como a violência urbana, o descompromisso com a comunidade, o alheamento político.

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É interessante o desenvolvimento político do personagem, que sai de um pequena cidade, sofre na metrópole, vai construindo a vida em Diadema, e então ele dá uma (célebre frase hoje em dia) guinada à esquerda. Podemos dizer que a sua trajetória política foi parecida com isso também?

O personagem Célio representa, de certa maneira, a tomada de consciência do país. Ele vive alienado em Cataguases, alienado pela presença invisível dos liames da ditadura, e continua alienado em Diadema, onde vai trabalhar na indústria metalúrgica. A tomada de consciência dele se dá na prática, na medida em que percebe pouco a pouco o abismo que separa ricos e pobres, a exploração do trabalho, a humilhação no emprego, o estado policialesco, ou seja, a injustiça que marca e caracteriza a sociedade brasileira. Claro, todo livro reflete, uns mais outros menos, aspectos biográficos do autor.

Uma leitura que vem sendo feita sobre a situação política no Brasil é a de que estamos caindo em uma dicotomia bastante superficial, e bem no fim inútil. Você concorda?

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Vivemos hoje um perigoso momento de intolerância. Joga-se um jogo fatal entre nós (os bons, inteligentes e honestos) e eles (os maus, burros e corruptos). Eu acho um horror qualquer tipo de maniqueísmo, qualquer tipo de fanatismo, seja à esquerda, seja à direita. Não é saudável, não leva a lugar algum. As pessoas tornam-se arrogantes, prepotentes, cegas. Abraçam verdades absolutas e esquecem-se algo que até mesmo aquela autora best-seller, Erika Leonard James, já sabia: entre o preto e o branco há pelo menos 50 tons de cinza. O pensamento binário é autoritário, não aceita divergência, é impositivo, ditatorial. A democracia é a convergência de opiniões divergentes. Não a supremacia do pensamento único.

Numa coluna recente para o El País, você mencionou o “nosso fragilíssimo Estado de Direito”. Ele sempre foi frágil, ou se fragilizou nos últimos meses? O que você pensa que causa essa fragilidade?

O nosso Estado de Direito é frágil porque nossa democracia é frágil. O Brasil é um país racista, homofóbico, machista, violento, intolerante. Nossa história política é uma sucessão de golpes e ditaduras. Não temos tradição democrática. Estamos completando 31 anos de democracia, o que é nada, mas que significa o maior período ininterrupto de democracia de toda a história brasileira. Infelizmente, não temos lideranças responsáveis, neste momento, que pudessem chamar para si a proposição de um diálogo, visando a recondução do país para os trilhos da normalidade. O que temos são chefes de partido mais interessados em repartir o butim que em resolver os problemas graves que nos acossam. Em momentos assim, de crise institucional, agravada por uma crise econômica sem precedentes, é que surgem os salvadores da pátria. E salvadores da pátria, a história ensina, apenas conduzem o rebanho ao abismo.

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Numa entrevista recente ao site PublishNews, que recebeu o título de ‘Efeito Ruffato’, você disse ter sofrido represálias por conta do discurso de Frankfurt (em que Ruffato fez duras críticas à situação social e histórica do Brasil). O que aconteceu, especificamente?

Bom, depois que fiz o discurso de abertura da Feira do Livro de Frankfurt tornei-me uma espécie de persona non grata. Nunca mais participei da lista oficial de escritores brasileiros em eventos literários no exterior e o espaço das embaixadas, com raras e honrosas exceções, me foi negado para realização de leituras ou lançamento de livros. Evidentemente, isso me afetou um pouco, mas como tenho uma carreira internacional iniciada em 2003, ou seja, dez anos antes daquele episódio, continuei a participar de feiras internacionais, continuei a ser chamado para palestras em universidade e em festivais literários.

DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA

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Autor: Luiz Ruffato

Editora: Companhia das Letras (144 p., R$34,90)

Lançamento: Quarta, 6/4, Livraria Cultura do Conj. Nacional, 18h30

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TRECHO:

"No quarto, escancarei o guarda-roupa: pendurados em cabides de arame, desolados vestidos abraçavam-se pânicos, compreendendo que aquela a quem um dia haviam servido, essa não regressaria jamais. E pus-me à tarefa, antes que, apavorado, recuasse. Não dobrei saias e blusas, camisola e calça-comprida: enfiei-as maquinalmente em duas bolsas de napa (...). Surpreendi-me com o mínimo de suas coisas – eu, que julgava sabê-la. Bateei gavetas, surgiram lenços-de-cabeça e intimidades, lençóis e cobertas, toalhas e documentos, fotografias, lembranças. Sob a cama-de-casal, uma pequena e ignorada caixa retangular de madeira. Puxei-a (...) e, ao abri-la, interromperam-se os preparativos da pachorrenta segunda-feira: ali, minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado."

Luiz Ruffato adiciona mais um tijolo ao seu projeto pessoal de retratar, por meio da literatura, as condições do trabalhador brasileiro com a edição “revista, ampliada e definitiva” do romance De Mim Já Nem se Lembra, lançada agora pela Companhia das Letras. Feito sob encomenda em 2007 para a editora Moderna, o livro conta a história de um personagem – Luiz Ruffato – que encontra, entre os pertences da mãe recentemente morta, uma caixa e um maço de envelopes, cartas enviadas pelo irmão mais velho, Célio, que havia se mudado para São Paulo e, depois, Diadema.

O leitor acompanha, então, as 50 missivas que descrevem as mudanças, internas e externas, de Célio, e sua crescente conscientização política no Brasil da ditadura nos anos 1970. O livro tem lançamento marcado para esta quarta-feira, 6, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2073), às 18h30.

Ruffato respondeu a algumas perguntas do Estado sobre a obra e sobre o contexto político brasileiro.

Luiz Ruffato, no centro de São Paulo Foto: Nilton Fukuda|Estadão

Em uma das cartas, o personagem Célio escreve: “Isso é muito triste, porque aqui não é o meu lugar. Mas sinto que aí já não é o meu lugar. Ou seja, não sou de lugar nenhum. E isso dói dentro da gente”. Dada sua própria experiência com a mudança, o que você, hoje, diria para o Célio nessa situação?

Creio que a condição primordial do brasileiro é essa sensação de não pertencimento, de desterritorialização. Esse incômodo de saber-se sempre estrangeiro, esteja onde estiver. Meu caso é emblemático. Meus avós vieram da Itália miseráveis, foram empregados rurais e depois pequenos agricultores numa colônia do interior de Minas Gerais. Meus pais mudaram-se de suas cidades de origem para Cataguases, que oferecia a eles condições mais favoráveis de criar os filhos. Eu me mudei para São Paulo, em busca de uma melhor situação econômica. Ou seja, três gerações, três locais diferentes. A maioria absoluta das histórias dos brasileiros percorre esse mesmo caminho: difícil encontrarmos pessoas que moram no lugar onde nasceram seus pais ou seus avós. Aliás, para mim, essa condição de desenraizamento deveria ser levada em conta na hora de tentarmos compreender alguns aspectos da sociedade contemporânea, como a violência urbana, o descompromisso com a comunidade, o alheamento político.

É interessante o desenvolvimento político do personagem, que sai de um pequena cidade, sofre na metrópole, vai construindo a vida em Diadema, e então ele dá uma (célebre frase hoje em dia) guinada à esquerda. Podemos dizer que a sua trajetória política foi parecida com isso também?

O personagem Célio representa, de certa maneira, a tomada de consciência do país. Ele vive alienado em Cataguases, alienado pela presença invisível dos liames da ditadura, e continua alienado em Diadema, onde vai trabalhar na indústria metalúrgica. A tomada de consciência dele se dá na prática, na medida em que percebe pouco a pouco o abismo que separa ricos e pobres, a exploração do trabalho, a humilhação no emprego, o estado policialesco, ou seja, a injustiça que marca e caracteriza a sociedade brasileira. Claro, todo livro reflete, uns mais outros menos, aspectos biográficos do autor.

Uma leitura que vem sendo feita sobre a situação política no Brasil é a de que estamos caindo em uma dicotomia bastante superficial, e bem no fim inútil. Você concorda?

Vivemos hoje um perigoso momento de intolerância. Joga-se um jogo fatal entre nós (os bons, inteligentes e honestos) e eles (os maus, burros e corruptos). Eu acho um horror qualquer tipo de maniqueísmo, qualquer tipo de fanatismo, seja à esquerda, seja à direita. Não é saudável, não leva a lugar algum. As pessoas tornam-se arrogantes, prepotentes, cegas. Abraçam verdades absolutas e esquecem-se algo que até mesmo aquela autora best-seller, Erika Leonard James, já sabia: entre o preto e o branco há pelo menos 50 tons de cinza. O pensamento binário é autoritário, não aceita divergência, é impositivo, ditatorial. A democracia é a convergência de opiniões divergentes. Não a supremacia do pensamento único.

Numa coluna recente para o El País, você mencionou o “nosso fragilíssimo Estado de Direito”. Ele sempre foi frágil, ou se fragilizou nos últimos meses? O que você pensa que causa essa fragilidade?

O nosso Estado de Direito é frágil porque nossa democracia é frágil. O Brasil é um país racista, homofóbico, machista, violento, intolerante. Nossa história política é uma sucessão de golpes e ditaduras. Não temos tradição democrática. Estamos completando 31 anos de democracia, o que é nada, mas que significa o maior período ininterrupto de democracia de toda a história brasileira. Infelizmente, não temos lideranças responsáveis, neste momento, que pudessem chamar para si a proposição de um diálogo, visando a recondução do país para os trilhos da normalidade. O que temos são chefes de partido mais interessados em repartir o butim que em resolver os problemas graves que nos acossam. Em momentos assim, de crise institucional, agravada por uma crise econômica sem precedentes, é que surgem os salvadores da pátria. E salvadores da pátria, a história ensina, apenas conduzem o rebanho ao abismo.

Numa entrevista recente ao site PublishNews, que recebeu o título de ‘Efeito Ruffato’, você disse ter sofrido represálias por conta do discurso de Frankfurt (em que Ruffato fez duras críticas à situação social e histórica do Brasil). O que aconteceu, especificamente?

Bom, depois que fiz o discurso de abertura da Feira do Livro de Frankfurt tornei-me uma espécie de persona non grata. Nunca mais participei da lista oficial de escritores brasileiros em eventos literários no exterior e o espaço das embaixadas, com raras e honrosas exceções, me foi negado para realização de leituras ou lançamento de livros. Evidentemente, isso me afetou um pouco, mas como tenho uma carreira internacional iniciada em 2003, ou seja, dez anos antes daquele episódio, continuei a participar de feiras internacionais, continuei a ser chamado para palestras em universidade e em festivais literários.

DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA

Autor: Luiz Ruffato

Editora: Companhia das Letras (144 p., R$34,90)

Lançamento: Quarta, 6/4, Livraria Cultura do Conj. Nacional, 18h30

TRECHO:

"No quarto, escancarei o guarda-roupa: pendurados em cabides de arame, desolados vestidos abraçavam-se pânicos, compreendendo que aquela a quem um dia haviam servido, essa não regressaria jamais. E pus-me à tarefa, antes que, apavorado, recuasse. Não dobrei saias e blusas, camisola e calça-comprida: enfiei-as maquinalmente em duas bolsas de napa (...). Surpreendi-me com o mínimo de suas coisas – eu, que julgava sabê-la. Bateei gavetas, surgiram lenços-de-cabeça e intimidades, lençóis e cobertas, toalhas e documentos, fotografias, lembranças. Sob a cama-de-casal, uma pequena e ignorada caixa retangular de madeira. Puxei-a (...) e, ao abri-la, interromperam-se os preparativos da pachorrenta segunda-feira: ali, minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado."

Luiz Ruffato adiciona mais um tijolo ao seu projeto pessoal de retratar, por meio da literatura, as condições do trabalhador brasileiro com a edição “revista, ampliada e definitiva” do romance De Mim Já Nem se Lembra, lançada agora pela Companhia das Letras. Feito sob encomenda em 2007 para a editora Moderna, o livro conta a história de um personagem – Luiz Ruffato – que encontra, entre os pertences da mãe recentemente morta, uma caixa e um maço de envelopes, cartas enviadas pelo irmão mais velho, Célio, que havia se mudado para São Paulo e, depois, Diadema.

O leitor acompanha, então, as 50 missivas que descrevem as mudanças, internas e externas, de Célio, e sua crescente conscientização política no Brasil da ditadura nos anos 1970. O livro tem lançamento marcado para esta quarta-feira, 6, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2073), às 18h30.

Ruffato respondeu a algumas perguntas do Estado sobre a obra e sobre o contexto político brasileiro.

Luiz Ruffato, no centro de São Paulo Foto: Nilton Fukuda|Estadão

Em uma das cartas, o personagem Célio escreve: “Isso é muito triste, porque aqui não é o meu lugar. Mas sinto que aí já não é o meu lugar. Ou seja, não sou de lugar nenhum. E isso dói dentro da gente”. Dada sua própria experiência com a mudança, o que você, hoje, diria para o Célio nessa situação?

Creio que a condição primordial do brasileiro é essa sensação de não pertencimento, de desterritorialização. Esse incômodo de saber-se sempre estrangeiro, esteja onde estiver. Meu caso é emblemático. Meus avós vieram da Itália miseráveis, foram empregados rurais e depois pequenos agricultores numa colônia do interior de Minas Gerais. Meus pais mudaram-se de suas cidades de origem para Cataguases, que oferecia a eles condições mais favoráveis de criar os filhos. Eu me mudei para São Paulo, em busca de uma melhor situação econômica. Ou seja, três gerações, três locais diferentes. A maioria absoluta das histórias dos brasileiros percorre esse mesmo caminho: difícil encontrarmos pessoas que moram no lugar onde nasceram seus pais ou seus avós. Aliás, para mim, essa condição de desenraizamento deveria ser levada em conta na hora de tentarmos compreender alguns aspectos da sociedade contemporânea, como a violência urbana, o descompromisso com a comunidade, o alheamento político.

É interessante o desenvolvimento político do personagem, que sai de um pequena cidade, sofre na metrópole, vai construindo a vida em Diadema, e então ele dá uma (célebre frase hoje em dia) guinada à esquerda. Podemos dizer que a sua trajetória política foi parecida com isso também?

O personagem Célio representa, de certa maneira, a tomada de consciência do país. Ele vive alienado em Cataguases, alienado pela presença invisível dos liames da ditadura, e continua alienado em Diadema, onde vai trabalhar na indústria metalúrgica. A tomada de consciência dele se dá na prática, na medida em que percebe pouco a pouco o abismo que separa ricos e pobres, a exploração do trabalho, a humilhação no emprego, o estado policialesco, ou seja, a injustiça que marca e caracteriza a sociedade brasileira. Claro, todo livro reflete, uns mais outros menos, aspectos biográficos do autor.

Uma leitura que vem sendo feita sobre a situação política no Brasil é a de que estamos caindo em uma dicotomia bastante superficial, e bem no fim inútil. Você concorda?

Vivemos hoje um perigoso momento de intolerância. Joga-se um jogo fatal entre nós (os bons, inteligentes e honestos) e eles (os maus, burros e corruptos). Eu acho um horror qualquer tipo de maniqueísmo, qualquer tipo de fanatismo, seja à esquerda, seja à direita. Não é saudável, não leva a lugar algum. As pessoas tornam-se arrogantes, prepotentes, cegas. Abraçam verdades absolutas e esquecem-se algo que até mesmo aquela autora best-seller, Erika Leonard James, já sabia: entre o preto e o branco há pelo menos 50 tons de cinza. O pensamento binário é autoritário, não aceita divergência, é impositivo, ditatorial. A democracia é a convergência de opiniões divergentes. Não a supremacia do pensamento único.

Numa coluna recente para o El País, você mencionou o “nosso fragilíssimo Estado de Direito”. Ele sempre foi frágil, ou se fragilizou nos últimos meses? O que você pensa que causa essa fragilidade?

O nosso Estado de Direito é frágil porque nossa democracia é frágil. O Brasil é um país racista, homofóbico, machista, violento, intolerante. Nossa história política é uma sucessão de golpes e ditaduras. Não temos tradição democrática. Estamos completando 31 anos de democracia, o que é nada, mas que significa o maior período ininterrupto de democracia de toda a história brasileira. Infelizmente, não temos lideranças responsáveis, neste momento, que pudessem chamar para si a proposição de um diálogo, visando a recondução do país para os trilhos da normalidade. O que temos são chefes de partido mais interessados em repartir o butim que em resolver os problemas graves que nos acossam. Em momentos assim, de crise institucional, agravada por uma crise econômica sem precedentes, é que surgem os salvadores da pátria. E salvadores da pátria, a história ensina, apenas conduzem o rebanho ao abismo.

Numa entrevista recente ao site PublishNews, que recebeu o título de ‘Efeito Ruffato’, você disse ter sofrido represálias por conta do discurso de Frankfurt (em que Ruffato fez duras críticas à situação social e histórica do Brasil). O que aconteceu, especificamente?

Bom, depois que fiz o discurso de abertura da Feira do Livro de Frankfurt tornei-me uma espécie de persona non grata. Nunca mais participei da lista oficial de escritores brasileiros em eventos literários no exterior e o espaço das embaixadas, com raras e honrosas exceções, me foi negado para realização de leituras ou lançamento de livros. Evidentemente, isso me afetou um pouco, mas como tenho uma carreira internacional iniciada em 2003, ou seja, dez anos antes daquele episódio, continuei a participar de feiras internacionais, continuei a ser chamado para palestras em universidade e em festivais literários.

DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA

Autor: Luiz Ruffato

Editora: Companhia das Letras (144 p., R$34,90)

Lançamento: Quarta, 6/4, Livraria Cultura do Conj. Nacional, 18h30

TRECHO:

"No quarto, escancarei o guarda-roupa: pendurados em cabides de arame, desolados vestidos abraçavam-se pânicos, compreendendo que aquela a quem um dia haviam servido, essa não regressaria jamais. E pus-me à tarefa, antes que, apavorado, recuasse. Não dobrei saias e blusas, camisola e calça-comprida: enfiei-as maquinalmente em duas bolsas de napa (...). Surpreendi-me com o mínimo de suas coisas – eu, que julgava sabê-la. Bateei gavetas, surgiram lenços-de-cabeça e intimidades, lençóis e cobertas, toalhas e documentos, fotografias, lembranças. Sob a cama-de-casal, uma pequena e ignorada caixa retangular de madeira. Puxei-a (...) e, ao abri-la, interromperam-se os preparativos da pachorrenta segunda-feira: ali, minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado."

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