Nujeen Mustafa conta, em livro, como fugiu da guerra da Síria em sua cadeira de rodas


Ela nasceu com paralisia cerebral e passou a infância na frente da televisão até que a guerra devastou seu país e ela precisou percorrer 5 mil quilômetros em busca de segurança

Por Maria Fernanda Rodrigues

Não se sabe ao certo o que aconteceu com o n.º 19 da rua George al-Aswad, no bairro curdo de Sheikh Maqsoud, noroeste de Alepo. E não dava para prever quando a revolução se transformou em guerra, quando bombas começaram a cair sobre prédios, escolas e hospitais e quando armas químicas começaram a matar civis. Mas uma coisa era certa: assim que cabeças passaram a ser expostas em praça pública e que exterminar famílias dentro de casa virou praxe, era hora de partir.

A autora. Ela tinha apenas 13 anos quando o conflito começou Foto: Chris Floyd

Foi o que fez, em 2012, a família Mustafa, sírios de origem curda, que vivia feliz no tal prédio da maior cidade da Síria. No micro-ônibus arranjado para tirá-los de Alepo, alguns poucos pertences, afinal, a ideia era voltar logo para casa. A filha mais nova, Nujeen, 13 anos, foi reclamando porque não queria viver de novo em Manbij, no norte da Síria, onde passou a infância. 

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Esse foi só o começo de um longo, tortuoso e perigoso caminho rumo a um lugar mais seguro. Uma jornada que só terminou em outubro de 2015, com a família separada – os pais, na Turquia e os filhos, na Alemanha. 

A partir de agora, a história que acompanhamos é a da fuga da garota “mimada”, como ela se considerava, e de sua irmã Nasrine, 9 anos mais velha. 

Nujeen, hoje com 18 anos, diz que não há heróis nessa história, embora Malala tenha dito que ela era uma heroína. Mas empurrar uma cadeira de rodas por três meses e nove países e ser responsável pela vida da irmã temporã nascida com paralisia cerebral, mesmo quando não havia garantia nenhuma de segurança ou sobrevivência, como quando atravessaram de bote inflável, Nujeen sobre a cadeira e Nasrine a segurando, até Lesbos, na Grécia, coloca a irmã mais velha, estudante de Física quando a guerra estourou, nessa posição.

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Força. Hungria fechou as portas e irmãs tiveram de achar outra rota Foto: Universo dos Livros

Mas uma história contada por uma menina que viveu seus primeiros anos trancada no 5.º andar de um prédio sem elevador, que não foi para a escola porque sua paralisia afetou a mobilidade e tirá-la de casa era uma tarefa e tanto, que aprendeu tudo o que sabe, e não é pouco, assistindo à televisão, e que empreende uma viagem “rumo ao desconhecido” tem mais apelo.

Nujeen – A Incrível Jornada de Uma Garota Que Fugiu da Guerra na Síria em Uma Cadeira de Rodas foi escrito pela menina em parceria com Christina Lamb, autora, também, de Eu Sou Malala. É o testemunho, ainda não elaborado, de uma guerra em andamento. O relato sincero de alguém que conseguiu escapar, e que só agora pode respirar aliviada e viver uma vida compatível com a sua idade: ir à escola, ouvir música, ter amigos.

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“Estou segura e não tenho mais medo de estar no meio de um bombardeio”, diz ao Estado, com uma voz doce e o inglês impecável que aprendeu assistindo aos documentários da National Geographic, úteis também na hora em que o pânico batia, e à novela Days of Our Lives.

A jornada de Nujeen rumo à Alemanha, onde seu irmão mais velho, cineasta, vivia desde antes de ela nascer, somou 5.782 quilômetros. O custo total para ela e a irmã foi de 5.045 euros, gastos com atravessadores, subornos, botes, coletes salva-vidas, passagens de ônibus, trem, avião, táxi, o primeiro lanche no McDonald’s e chips de celular. 

Nujeen saiu de casa em 2012 e nunca mais voltou. Passou os dois primeiros anos da guerra no Norte. Depois, com o Estado Islâmico em ação por ali, atravessou para a Turquia. E seguiu para a Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Eslovênia, Áustria e, finalmente, Alemanha. Para onde olhava, via um mundo novo – e centenas de refugiados como ela, em filas por estradas sinuosas, à espera de um bote à beira-mar, em praças negociando o próximo trecho da viagem com desconhecidos, chorando a morte de um familiar. Todos em profundo desamparo.

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Cada detalhe da viagem, da vida antes da guerra e do recomeço no novo país estão registrados na obra narrada por alguém que começa encarando a experiência como uma aventura e que, aos poucos, vai tomando consciência do horror. Por exemplo, foi só ao deparar com a cerca construída pela Hungria na fronteira com a Sérvia para barrar os refugiados, ao ver o rosto perdido de seus conterrâneos sem saber para onde ir, que ela se viu no meio de uma grande tragédia, ela conta.Leia também: Editor sírio publica para resistir à barbárieEditor sírio que desertou na Feira de Abu Dabi segue fazendo bons livros infantis e sonhando com a volta para casa “Sei que muitas pessoas na Europa nunca tinham ouvido falar na Síria até a guerra começar, mas gostaria que pensassem em nós como pessoas. Pessoas orgulhosas de sua cultura, cidades, história, comida e de sua cordialidade para com os países em guerra”, diz. “É humilhante termos nos transformado em um problema que precisa ser resolvido, num pesadelo”, diz a garota que vive com as irmãs e sobrinhas em Wesseling, perto de Colônia.

‘Temos que ser duros como a vida é’ Um ano e meio depois de chegar à Alemanha, Nujeen Mustafa retoma a vida interrompida pela guerra e fala de seus sonhos.

Nujeen desembarcana Grécia, depois de fazer a perigosa travessia em um bote: ela nunca tinha visto o mar Foto: Universo dos Livros
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De tudo o que viu e viveu, o que foi mais triste? A sensação de não se sentir bem-vindo, especialmente na fronteira da Hungria. Foi muito triste ver aquelas pessoas tentando abri-la e ver que os governos não consideraram tudo o que já tínhamos passado. As pessoas só estão pensando na diferença, e não no que temos em comum. Sem contar as tristes histórias que ouvimos na viagem sobre pessoas se afogando e morrendo. É de cortar o coração. 

Durante a travessia, pensou que poderia morrer? Tentei ignorar esse fato ou imaginar minha alma flutuando, mas se eu não queria morrer é porque eu queria ver meus pais de novo. Sabíamos que nossa travessia estava nas mãos de Deus e estávamos OK com o que pudesse acontecer. Nosso destino já estava escrito.

Do que você sente mais falta? De casa. Às vezes sinto como se eu não pertencesse a este lugar, questiono o que estou fazendo aqui. Às vezes só quero ir para casa, abraçar todo mundo. Voltar para aquele lugar seguro, para aquelas pessoas que me dão segurança. Mas isso não é mais possível. Essa sensação aperta à noite. Mas aí acordo renovada para um novo dia. Isso se chama vida. Temos que encarar os desafios, e temos que ser duros como a vida é.

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Qual é o seu sonho? Sempre tive curiosidade pela essência das coisas e os mistérios da ciência. Quero ser útil, influente, deixar minha digital no mundo. Eu gostaria de estudar física, mas meu plano b é ser escritora.

O que a faz feliz hoje? Acordar, ir para a escola, voltar para casa, ajudar as pessoas com a língua.

Trecho "Será que os pássaros sentem a aproximação dos bombardeios? Parecia que sim. Os pássaros paravam de cantar, sentia-se uma calmaria no ar, como se o tempo tivesse parado, e então ressurgia o zumbido dos aviões. Uma vez assisti a um documentário que dizia que as abelhas podiam ser treinadas para farejar explosivos. Não é estranho?

Quando os ataques começavam, todo mundo corria para os abrigos no porão, mas é claro que eu não conseguia. Minha família não me deixaria sozinha, por isso ficávamos todos sentados no quinto andar; o prédio balançava e as janelas tremiam, enquanto nós tentávamos fingir que não estávamos com medo. Eu costumava chorar, mas podia fazer isso porque era a mais nova e era deficiente."

'NUJEEN - A INCRÍVEL JORNADA DE UMA GAROTA QUE FUGIU DA GUERRA NA SÍRIA EM UMA CADEIRA DE RODAS' Autora: Nujeen Mustafa e Christina Lamb Trad.: Elvira Serapicos Editora: Universo dos Livros (240 págs.; R$ 39,90)

Não se sabe ao certo o que aconteceu com o n.º 19 da rua George al-Aswad, no bairro curdo de Sheikh Maqsoud, noroeste de Alepo. E não dava para prever quando a revolução se transformou em guerra, quando bombas começaram a cair sobre prédios, escolas e hospitais e quando armas químicas começaram a matar civis. Mas uma coisa era certa: assim que cabeças passaram a ser expostas em praça pública e que exterminar famílias dentro de casa virou praxe, era hora de partir.

A autora. Ela tinha apenas 13 anos quando o conflito começou Foto: Chris Floyd

Foi o que fez, em 2012, a família Mustafa, sírios de origem curda, que vivia feliz no tal prédio da maior cidade da Síria. No micro-ônibus arranjado para tirá-los de Alepo, alguns poucos pertences, afinal, a ideia era voltar logo para casa. A filha mais nova, Nujeen, 13 anos, foi reclamando porque não queria viver de novo em Manbij, no norte da Síria, onde passou a infância. 

Esse foi só o começo de um longo, tortuoso e perigoso caminho rumo a um lugar mais seguro. Uma jornada que só terminou em outubro de 2015, com a família separada – os pais, na Turquia e os filhos, na Alemanha. 

A partir de agora, a história que acompanhamos é a da fuga da garota “mimada”, como ela se considerava, e de sua irmã Nasrine, 9 anos mais velha. 

Nujeen, hoje com 18 anos, diz que não há heróis nessa história, embora Malala tenha dito que ela era uma heroína. Mas empurrar uma cadeira de rodas por três meses e nove países e ser responsável pela vida da irmã temporã nascida com paralisia cerebral, mesmo quando não havia garantia nenhuma de segurança ou sobrevivência, como quando atravessaram de bote inflável, Nujeen sobre a cadeira e Nasrine a segurando, até Lesbos, na Grécia, coloca a irmã mais velha, estudante de Física quando a guerra estourou, nessa posição.

Força. Hungria fechou as portas e irmãs tiveram de achar outra rota Foto: Universo dos Livros

Mas uma história contada por uma menina que viveu seus primeiros anos trancada no 5.º andar de um prédio sem elevador, que não foi para a escola porque sua paralisia afetou a mobilidade e tirá-la de casa era uma tarefa e tanto, que aprendeu tudo o que sabe, e não é pouco, assistindo à televisão, e que empreende uma viagem “rumo ao desconhecido” tem mais apelo.

Nujeen – A Incrível Jornada de Uma Garota Que Fugiu da Guerra na Síria em Uma Cadeira de Rodas foi escrito pela menina em parceria com Christina Lamb, autora, também, de Eu Sou Malala. É o testemunho, ainda não elaborado, de uma guerra em andamento. O relato sincero de alguém que conseguiu escapar, e que só agora pode respirar aliviada e viver uma vida compatível com a sua idade: ir à escola, ouvir música, ter amigos.

“Estou segura e não tenho mais medo de estar no meio de um bombardeio”, diz ao Estado, com uma voz doce e o inglês impecável que aprendeu assistindo aos documentários da National Geographic, úteis também na hora em que o pânico batia, e à novela Days of Our Lives.

A jornada de Nujeen rumo à Alemanha, onde seu irmão mais velho, cineasta, vivia desde antes de ela nascer, somou 5.782 quilômetros. O custo total para ela e a irmã foi de 5.045 euros, gastos com atravessadores, subornos, botes, coletes salva-vidas, passagens de ônibus, trem, avião, táxi, o primeiro lanche no McDonald’s e chips de celular. 

Nujeen saiu de casa em 2012 e nunca mais voltou. Passou os dois primeiros anos da guerra no Norte. Depois, com o Estado Islâmico em ação por ali, atravessou para a Turquia. E seguiu para a Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Eslovênia, Áustria e, finalmente, Alemanha. Para onde olhava, via um mundo novo – e centenas de refugiados como ela, em filas por estradas sinuosas, à espera de um bote à beira-mar, em praças negociando o próximo trecho da viagem com desconhecidos, chorando a morte de um familiar. Todos em profundo desamparo.

Cada detalhe da viagem, da vida antes da guerra e do recomeço no novo país estão registrados na obra narrada por alguém que começa encarando a experiência como uma aventura e que, aos poucos, vai tomando consciência do horror. Por exemplo, foi só ao deparar com a cerca construída pela Hungria na fronteira com a Sérvia para barrar os refugiados, ao ver o rosto perdido de seus conterrâneos sem saber para onde ir, que ela se viu no meio de uma grande tragédia, ela conta.Leia também: Editor sírio publica para resistir à barbárieEditor sírio que desertou na Feira de Abu Dabi segue fazendo bons livros infantis e sonhando com a volta para casa “Sei que muitas pessoas na Europa nunca tinham ouvido falar na Síria até a guerra começar, mas gostaria que pensassem em nós como pessoas. Pessoas orgulhosas de sua cultura, cidades, história, comida e de sua cordialidade para com os países em guerra”, diz. “É humilhante termos nos transformado em um problema que precisa ser resolvido, num pesadelo”, diz a garota que vive com as irmãs e sobrinhas em Wesseling, perto de Colônia.

‘Temos que ser duros como a vida é’ Um ano e meio depois de chegar à Alemanha, Nujeen Mustafa retoma a vida interrompida pela guerra e fala de seus sonhos.

Nujeen desembarcana Grécia, depois de fazer a perigosa travessia em um bote: ela nunca tinha visto o mar Foto: Universo dos Livros

De tudo o que viu e viveu, o que foi mais triste? A sensação de não se sentir bem-vindo, especialmente na fronteira da Hungria. Foi muito triste ver aquelas pessoas tentando abri-la e ver que os governos não consideraram tudo o que já tínhamos passado. As pessoas só estão pensando na diferença, e não no que temos em comum. Sem contar as tristes histórias que ouvimos na viagem sobre pessoas se afogando e morrendo. É de cortar o coração. 

Durante a travessia, pensou que poderia morrer? Tentei ignorar esse fato ou imaginar minha alma flutuando, mas se eu não queria morrer é porque eu queria ver meus pais de novo. Sabíamos que nossa travessia estava nas mãos de Deus e estávamos OK com o que pudesse acontecer. Nosso destino já estava escrito.

Do que você sente mais falta? De casa. Às vezes sinto como se eu não pertencesse a este lugar, questiono o que estou fazendo aqui. Às vezes só quero ir para casa, abraçar todo mundo. Voltar para aquele lugar seguro, para aquelas pessoas que me dão segurança. Mas isso não é mais possível. Essa sensação aperta à noite. Mas aí acordo renovada para um novo dia. Isso se chama vida. Temos que encarar os desafios, e temos que ser duros como a vida é.

Qual é o seu sonho? Sempre tive curiosidade pela essência das coisas e os mistérios da ciência. Quero ser útil, influente, deixar minha digital no mundo. Eu gostaria de estudar física, mas meu plano b é ser escritora.

O que a faz feliz hoje? Acordar, ir para a escola, voltar para casa, ajudar as pessoas com a língua.

Trecho "Será que os pássaros sentem a aproximação dos bombardeios? Parecia que sim. Os pássaros paravam de cantar, sentia-se uma calmaria no ar, como se o tempo tivesse parado, e então ressurgia o zumbido dos aviões. Uma vez assisti a um documentário que dizia que as abelhas podiam ser treinadas para farejar explosivos. Não é estranho?

Quando os ataques começavam, todo mundo corria para os abrigos no porão, mas é claro que eu não conseguia. Minha família não me deixaria sozinha, por isso ficávamos todos sentados no quinto andar; o prédio balançava e as janelas tremiam, enquanto nós tentávamos fingir que não estávamos com medo. Eu costumava chorar, mas podia fazer isso porque era a mais nova e era deficiente."

'NUJEEN - A INCRÍVEL JORNADA DE UMA GAROTA QUE FUGIU DA GUERRA NA SÍRIA EM UMA CADEIRA DE RODAS' Autora: Nujeen Mustafa e Christina Lamb Trad.: Elvira Serapicos Editora: Universo dos Livros (240 págs.; R$ 39,90)

Não se sabe ao certo o que aconteceu com o n.º 19 da rua George al-Aswad, no bairro curdo de Sheikh Maqsoud, noroeste de Alepo. E não dava para prever quando a revolução se transformou em guerra, quando bombas começaram a cair sobre prédios, escolas e hospitais e quando armas químicas começaram a matar civis. Mas uma coisa era certa: assim que cabeças passaram a ser expostas em praça pública e que exterminar famílias dentro de casa virou praxe, era hora de partir.

A autora. Ela tinha apenas 13 anos quando o conflito começou Foto: Chris Floyd

Foi o que fez, em 2012, a família Mustafa, sírios de origem curda, que vivia feliz no tal prédio da maior cidade da Síria. No micro-ônibus arranjado para tirá-los de Alepo, alguns poucos pertences, afinal, a ideia era voltar logo para casa. A filha mais nova, Nujeen, 13 anos, foi reclamando porque não queria viver de novo em Manbij, no norte da Síria, onde passou a infância. 

Esse foi só o começo de um longo, tortuoso e perigoso caminho rumo a um lugar mais seguro. Uma jornada que só terminou em outubro de 2015, com a família separada – os pais, na Turquia e os filhos, na Alemanha. 

A partir de agora, a história que acompanhamos é a da fuga da garota “mimada”, como ela se considerava, e de sua irmã Nasrine, 9 anos mais velha. 

Nujeen, hoje com 18 anos, diz que não há heróis nessa história, embora Malala tenha dito que ela era uma heroína. Mas empurrar uma cadeira de rodas por três meses e nove países e ser responsável pela vida da irmã temporã nascida com paralisia cerebral, mesmo quando não havia garantia nenhuma de segurança ou sobrevivência, como quando atravessaram de bote inflável, Nujeen sobre a cadeira e Nasrine a segurando, até Lesbos, na Grécia, coloca a irmã mais velha, estudante de Física quando a guerra estourou, nessa posição.

Força. Hungria fechou as portas e irmãs tiveram de achar outra rota Foto: Universo dos Livros

Mas uma história contada por uma menina que viveu seus primeiros anos trancada no 5.º andar de um prédio sem elevador, que não foi para a escola porque sua paralisia afetou a mobilidade e tirá-la de casa era uma tarefa e tanto, que aprendeu tudo o que sabe, e não é pouco, assistindo à televisão, e que empreende uma viagem “rumo ao desconhecido” tem mais apelo.

Nujeen – A Incrível Jornada de Uma Garota Que Fugiu da Guerra na Síria em Uma Cadeira de Rodas foi escrito pela menina em parceria com Christina Lamb, autora, também, de Eu Sou Malala. É o testemunho, ainda não elaborado, de uma guerra em andamento. O relato sincero de alguém que conseguiu escapar, e que só agora pode respirar aliviada e viver uma vida compatível com a sua idade: ir à escola, ouvir música, ter amigos.

“Estou segura e não tenho mais medo de estar no meio de um bombardeio”, diz ao Estado, com uma voz doce e o inglês impecável que aprendeu assistindo aos documentários da National Geographic, úteis também na hora em que o pânico batia, e à novela Days of Our Lives.

A jornada de Nujeen rumo à Alemanha, onde seu irmão mais velho, cineasta, vivia desde antes de ela nascer, somou 5.782 quilômetros. O custo total para ela e a irmã foi de 5.045 euros, gastos com atravessadores, subornos, botes, coletes salva-vidas, passagens de ônibus, trem, avião, táxi, o primeiro lanche no McDonald’s e chips de celular. 

Nujeen saiu de casa em 2012 e nunca mais voltou. Passou os dois primeiros anos da guerra no Norte. Depois, com o Estado Islâmico em ação por ali, atravessou para a Turquia. E seguiu para a Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Eslovênia, Áustria e, finalmente, Alemanha. Para onde olhava, via um mundo novo – e centenas de refugiados como ela, em filas por estradas sinuosas, à espera de um bote à beira-mar, em praças negociando o próximo trecho da viagem com desconhecidos, chorando a morte de um familiar. Todos em profundo desamparo.

Cada detalhe da viagem, da vida antes da guerra e do recomeço no novo país estão registrados na obra narrada por alguém que começa encarando a experiência como uma aventura e que, aos poucos, vai tomando consciência do horror. Por exemplo, foi só ao deparar com a cerca construída pela Hungria na fronteira com a Sérvia para barrar os refugiados, ao ver o rosto perdido de seus conterrâneos sem saber para onde ir, que ela se viu no meio de uma grande tragédia, ela conta.Leia também: Editor sírio publica para resistir à barbárieEditor sírio que desertou na Feira de Abu Dabi segue fazendo bons livros infantis e sonhando com a volta para casa “Sei que muitas pessoas na Europa nunca tinham ouvido falar na Síria até a guerra começar, mas gostaria que pensassem em nós como pessoas. Pessoas orgulhosas de sua cultura, cidades, história, comida e de sua cordialidade para com os países em guerra”, diz. “É humilhante termos nos transformado em um problema que precisa ser resolvido, num pesadelo”, diz a garota que vive com as irmãs e sobrinhas em Wesseling, perto de Colônia.

‘Temos que ser duros como a vida é’ Um ano e meio depois de chegar à Alemanha, Nujeen Mustafa retoma a vida interrompida pela guerra e fala de seus sonhos.

Nujeen desembarcana Grécia, depois de fazer a perigosa travessia em um bote: ela nunca tinha visto o mar Foto: Universo dos Livros

De tudo o que viu e viveu, o que foi mais triste? A sensação de não se sentir bem-vindo, especialmente na fronteira da Hungria. Foi muito triste ver aquelas pessoas tentando abri-la e ver que os governos não consideraram tudo o que já tínhamos passado. As pessoas só estão pensando na diferença, e não no que temos em comum. Sem contar as tristes histórias que ouvimos na viagem sobre pessoas se afogando e morrendo. É de cortar o coração. 

Durante a travessia, pensou que poderia morrer? Tentei ignorar esse fato ou imaginar minha alma flutuando, mas se eu não queria morrer é porque eu queria ver meus pais de novo. Sabíamos que nossa travessia estava nas mãos de Deus e estávamos OK com o que pudesse acontecer. Nosso destino já estava escrito.

Do que você sente mais falta? De casa. Às vezes sinto como se eu não pertencesse a este lugar, questiono o que estou fazendo aqui. Às vezes só quero ir para casa, abraçar todo mundo. Voltar para aquele lugar seguro, para aquelas pessoas que me dão segurança. Mas isso não é mais possível. Essa sensação aperta à noite. Mas aí acordo renovada para um novo dia. Isso se chama vida. Temos que encarar os desafios, e temos que ser duros como a vida é.

Qual é o seu sonho? Sempre tive curiosidade pela essência das coisas e os mistérios da ciência. Quero ser útil, influente, deixar minha digital no mundo. Eu gostaria de estudar física, mas meu plano b é ser escritora.

O que a faz feliz hoje? Acordar, ir para a escola, voltar para casa, ajudar as pessoas com a língua.

Trecho "Será que os pássaros sentem a aproximação dos bombardeios? Parecia que sim. Os pássaros paravam de cantar, sentia-se uma calmaria no ar, como se o tempo tivesse parado, e então ressurgia o zumbido dos aviões. Uma vez assisti a um documentário que dizia que as abelhas podiam ser treinadas para farejar explosivos. Não é estranho?

Quando os ataques começavam, todo mundo corria para os abrigos no porão, mas é claro que eu não conseguia. Minha família não me deixaria sozinha, por isso ficávamos todos sentados no quinto andar; o prédio balançava e as janelas tremiam, enquanto nós tentávamos fingir que não estávamos com medo. Eu costumava chorar, mas podia fazer isso porque era a mais nova e era deficiente."

'NUJEEN - A INCRÍVEL JORNADA DE UMA GAROTA QUE FUGIU DA GUERRA NA SÍRIA EM UMA CADEIRA DE RODAS' Autora: Nujeen Mustafa e Christina Lamb Trad.: Elvira Serapicos Editora: Universo dos Livros (240 págs.; R$ 39,90)

Não se sabe ao certo o que aconteceu com o n.º 19 da rua George al-Aswad, no bairro curdo de Sheikh Maqsoud, noroeste de Alepo. E não dava para prever quando a revolução se transformou em guerra, quando bombas começaram a cair sobre prédios, escolas e hospitais e quando armas químicas começaram a matar civis. Mas uma coisa era certa: assim que cabeças passaram a ser expostas em praça pública e que exterminar famílias dentro de casa virou praxe, era hora de partir.

A autora. Ela tinha apenas 13 anos quando o conflito começou Foto: Chris Floyd

Foi o que fez, em 2012, a família Mustafa, sírios de origem curda, que vivia feliz no tal prédio da maior cidade da Síria. No micro-ônibus arranjado para tirá-los de Alepo, alguns poucos pertences, afinal, a ideia era voltar logo para casa. A filha mais nova, Nujeen, 13 anos, foi reclamando porque não queria viver de novo em Manbij, no norte da Síria, onde passou a infância. 

Esse foi só o começo de um longo, tortuoso e perigoso caminho rumo a um lugar mais seguro. Uma jornada que só terminou em outubro de 2015, com a família separada – os pais, na Turquia e os filhos, na Alemanha. 

A partir de agora, a história que acompanhamos é a da fuga da garota “mimada”, como ela se considerava, e de sua irmã Nasrine, 9 anos mais velha. 

Nujeen, hoje com 18 anos, diz que não há heróis nessa história, embora Malala tenha dito que ela era uma heroína. Mas empurrar uma cadeira de rodas por três meses e nove países e ser responsável pela vida da irmã temporã nascida com paralisia cerebral, mesmo quando não havia garantia nenhuma de segurança ou sobrevivência, como quando atravessaram de bote inflável, Nujeen sobre a cadeira e Nasrine a segurando, até Lesbos, na Grécia, coloca a irmã mais velha, estudante de Física quando a guerra estourou, nessa posição.

Força. Hungria fechou as portas e irmãs tiveram de achar outra rota Foto: Universo dos Livros

Mas uma história contada por uma menina que viveu seus primeiros anos trancada no 5.º andar de um prédio sem elevador, que não foi para a escola porque sua paralisia afetou a mobilidade e tirá-la de casa era uma tarefa e tanto, que aprendeu tudo o que sabe, e não é pouco, assistindo à televisão, e que empreende uma viagem “rumo ao desconhecido” tem mais apelo.

Nujeen – A Incrível Jornada de Uma Garota Que Fugiu da Guerra na Síria em Uma Cadeira de Rodas foi escrito pela menina em parceria com Christina Lamb, autora, também, de Eu Sou Malala. É o testemunho, ainda não elaborado, de uma guerra em andamento. O relato sincero de alguém que conseguiu escapar, e que só agora pode respirar aliviada e viver uma vida compatível com a sua idade: ir à escola, ouvir música, ter amigos.

“Estou segura e não tenho mais medo de estar no meio de um bombardeio”, diz ao Estado, com uma voz doce e o inglês impecável que aprendeu assistindo aos documentários da National Geographic, úteis também na hora em que o pânico batia, e à novela Days of Our Lives.

A jornada de Nujeen rumo à Alemanha, onde seu irmão mais velho, cineasta, vivia desde antes de ela nascer, somou 5.782 quilômetros. O custo total para ela e a irmã foi de 5.045 euros, gastos com atravessadores, subornos, botes, coletes salva-vidas, passagens de ônibus, trem, avião, táxi, o primeiro lanche no McDonald’s e chips de celular. 

Nujeen saiu de casa em 2012 e nunca mais voltou. Passou os dois primeiros anos da guerra no Norte. Depois, com o Estado Islâmico em ação por ali, atravessou para a Turquia. E seguiu para a Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Eslovênia, Áustria e, finalmente, Alemanha. Para onde olhava, via um mundo novo – e centenas de refugiados como ela, em filas por estradas sinuosas, à espera de um bote à beira-mar, em praças negociando o próximo trecho da viagem com desconhecidos, chorando a morte de um familiar. Todos em profundo desamparo.

Cada detalhe da viagem, da vida antes da guerra e do recomeço no novo país estão registrados na obra narrada por alguém que começa encarando a experiência como uma aventura e que, aos poucos, vai tomando consciência do horror. Por exemplo, foi só ao deparar com a cerca construída pela Hungria na fronteira com a Sérvia para barrar os refugiados, ao ver o rosto perdido de seus conterrâneos sem saber para onde ir, que ela se viu no meio de uma grande tragédia, ela conta.Leia também: Editor sírio publica para resistir à barbárieEditor sírio que desertou na Feira de Abu Dabi segue fazendo bons livros infantis e sonhando com a volta para casa “Sei que muitas pessoas na Europa nunca tinham ouvido falar na Síria até a guerra começar, mas gostaria que pensassem em nós como pessoas. Pessoas orgulhosas de sua cultura, cidades, história, comida e de sua cordialidade para com os países em guerra”, diz. “É humilhante termos nos transformado em um problema que precisa ser resolvido, num pesadelo”, diz a garota que vive com as irmãs e sobrinhas em Wesseling, perto de Colônia.

‘Temos que ser duros como a vida é’ Um ano e meio depois de chegar à Alemanha, Nujeen Mustafa retoma a vida interrompida pela guerra e fala de seus sonhos.

Nujeen desembarcana Grécia, depois de fazer a perigosa travessia em um bote: ela nunca tinha visto o mar Foto: Universo dos Livros

De tudo o que viu e viveu, o que foi mais triste? A sensação de não se sentir bem-vindo, especialmente na fronteira da Hungria. Foi muito triste ver aquelas pessoas tentando abri-la e ver que os governos não consideraram tudo o que já tínhamos passado. As pessoas só estão pensando na diferença, e não no que temos em comum. Sem contar as tristes histórias que ouvimos na viagem sobre pessoas se afogando e morrendo. É de cortar o coração. 

Durante a travessia, pensou que poderia morrer? Tentei ignorar esse fato ou imaginar minha alma flutuando, mas se eu não queria morrer é porque eu queria ver meus pais de novo. Sabíamos que nossa travessia estava nas mãos de Deus e estávamos OK com o que pudesse acontecer. Nosso destino já estava escrito.

Do que você sente mais falta? De casa. Às vezes sinto como se eu não pertencesse a este lugar, questiono o que estou fazendo aqui. Às vezes só quero ir para casa, abraçar todo mundo. Voltar para aquele lugar seguro, para aquelas pessoas que me dão segurança. Mas isso não é mais possível. Essa sensação aperta à noite. Mas aí acordo renovada para um novo dia. Isso se chama vida. Temos que encarar os desafios, e temos que ser duros como a vida é.

Qual é o seu sonho? Sempre tive curiosidade pela essência das coisas e os mistérios da ciência. Quero ser útil, influente, deixar minha digital no mundo. Eu gostaria de estudar física, mas meu plano b é ser escritora.

O que a faz feliz hoje? Acordar, ir para a escola, voltar para casa, ajudar as pessoas com a língua.

Trecho "Será que os pássaros sentem a aproximação dos bombardeios? Parecia que sim. Os pássaros paravam de cantar, sentia-se uma calmaria no ar, como se o tempo tivesse parado, e então ressurgia o zumbido dos aviões. Uma vez assisti a um documentário que dizia que as abelhas podiam ser treinadas para farejar explosivos. Não é estranho?

Quando os ataques começavam, todo mundo corria para os abrigos no porão, mas é claro que eu não conseguia. Minha família não me deixaria sozinha, por isso ficávamos todos sentados no quinto andar; o prédio balançava e as janelas tremiam, enquanto nós tentávamos fingir que não estávamos com medo. Eu costumava chorar, mas podia fazer isso porque era a mais nova e era deficiente."

'NUJEEN - A INCRÍVEL JORNADA DE UMA GAROTA QUE FUGIU DA GUERRA NA SÍRIA EM UMA CADEIRA DE RODAS' Autora: Nujeen Mustafa e Christina Lamb Trad.: Elvira Serapicos Editora: Universo dos Livros (240 págs.; R$ 39,90)

Não se sabe ao certo o que aconteceu com o n.º 19 da rua George al-Aswad, no bairro curdo de Sheikh Maqsoud, noroeste de Alepo. E não dava para prever quando a revolução se transformou em guerra, quando bombas começaram a cair sobre prédios, escolas e hospitais e quando armas químicas começaram a matar civis. Mas uma coisa era certa: assim que cabeças passaram a ser expostas em praça pública e que exterminar famílias dentro de casa virou praxe, era hora de partir.

A autora. Ela tinha apenas 13 anos quando o conflito começou Foto: Chris Floyd

Foi o que fez, em 2012, a família Mustafa, sírios de origem curda, que vivia feliz no tal prédio da maior cidade da Síria. No micro-ônibus arranjado para tirá-los de Alepo, alguns poucos pertences, afinal, a ideia era voltar logo para casa. A filha mais nova, Nujeen, 13 anos, foi reclamando porque não queria viver de novo em Manbij, no norte da Síria, onde passou a infância. 

Esse foi só o começo de um longo, tortuoso e perigoso caminho rumo a um lugar mais seguro. Uma jornada que só terminou em outubro de 2015, com a família separada – os pais, na Turquia e os filhos, na Alemanha. 

A partir de agora, a história que acompanhamos é a da fuga da garota “mimada”, como ela se considerava, e de sua irmã Nasrine, 9 anos mais velha. 

Nujeen, hoje com 18 anos, diz que não há heróis nessa história, embora Malala tenha dito que ela era uma heroína. Mas empurrar uma cadeira de rodas por três meses e nove países e ser responsável pela vida da irmã temporã nascida com paralisia cerebral, mesmo quando não havia garantia nenhuma de segurança ou sobrevivência, como quando atravessaram de bote inflável, Nujeen sobre a cadeira e Nasrine a segurando, até Lesbos, na Grécia, coloca a irmã mais velha, estudante de Física quando a guerra estourou, nessa posição.

Força. Hungria fechou as portas e irmãs tiveram de achar outra rota Foto: Universo dos Livros

Mas uma história contada por uma menina que viveu seus primeiros anos trancada no 5.º andar de um prédio sem elevador, que não foi para a escola porque sua paralisia afetou a mobilidade e tirá-la de casa era uma tarefa e tanto, que aprendeu tudo o que sabe, e não é pouco, assistindo à televisão, e que empreende uma viagem “rumo ao desconhecido” tem mais apelo.

Nujeen – A Incrível Jornada de Uma Garota Que Fugiu da Guerra na Síria em Uma Cadeira de Rodas foi escrito pela menina em parceria com Christina Lamb, autora, também, de Eu Sou Malala. É o testemunho, ainda não elaborado, de uma guerra em andamento. O relato sincero de alguém que conseguiu escapar, e que só agora pode respirar aliviada e viver uma vida compatível com a sua idade: ir à escola, ouvir música, ter amigos.

“Estou segura e não tenho mais medo de estar no meio de um bombardeio”, diz ao Estado, com uma voz doce e o inglês impecável que aprendeu assistindo aos documentários da National Geographic, úteis também na hora em que o pânico batia, e à novela Days of Our Lives.

A jornada de Nujeen rumo à Alemanha, onde seu irmão mais velho, cineasta, vivia desde antes de ela nascer, somou 5.782 quilômetros. O custo total para ela e a irmã foi de 5.045 euros, gastos com atravessadores, subornos, botes, coletes salva-vidas, passagens de ônibus, trem, avião, táxi, o primeiro lanche no McDonald’s e chips de celular. 

Nujeen saiu de casa em 2012 e nunca mais voltou. Passou os dois primeiros anos da guerra no Norte. Depois, com o Estado Islâmico em ação por ali, atravessou para a Turquia. E seguiu para a Grécia, Macedônia, Sérvia, Croácia, Eslovênia, Áustria e, finalmente, Alemanha. Para onde olhava, via um mundo novo – e centenas de refugiados como ela, em filas por estradas sinuosas, à espera de um bote à beira-mar, em praças negociando o próximo trecho da viagem com desconhecidos, chorando a morte de um familiar. Todos em profundo desamparo.

Cada detalhe da viagem, da vida antes da guerra e do recomeço no novo país estão registrados na obra narrada por alguém que começa encarando a experiência como uma aventura e que, aos poucos, vai tomando consciência do horror. Por exemplo, foi só ao deparar com a cerca construída pela Hungria na fronteira com a Sérvia para barrar os refugiados, ao ver o rosto perdido de seus conterrâneos sem saber para onde ir, que ela se viu no meio de uma grande tragédia, ela conta.Leia também: Editor sírio publica para resistir à barbárieEditor sírio que desertou na Feira de Abu Dabi segue fazendo bons livros infantis e sonhando com a volta para casa “Sei que muitas pessoas na Europa nunca tinham ouvido falar na Síria até a guerra começar, mas gostaria que pensassem em nós como pessoas. Pessoas orgulhosas de sua cultura, cidades, história, comida e de sua cordialidade para com os países em guerra”, diz. “É humilhante termos nos transformado em um problema que precisa ser resolvido, num pesadelo”, diz a garota que vive com as irmãs e sobrinhas em Wesseling, perto de Colônia.

‘Temos que ser duros como a vida é’ Um ano e meio depois de chegar à Alemanha, Nujeen Mustafa retoma a vida interrompida pela guerra e fala de seus sonhos.

Nujeen desembarcana Grécia, depois de fazer a perigosa travessia em um bote: ela nunca tinha visto o mar Foto: Universo dos Livros

De tudo o que viu e viveu, o que foi mais triste? A sensação de não se sentir bem-vindo, especialmente na fronteira da Hungria. Foi muito triste ver aquelas pessoas tentando abri-la e ver que os governos não consideraram tudo o que já tínhamos passado. As pessoas só estão pensando na diferença, e não no que temos em comum. Sem contar as tristes histórias que ouvimos na viagem sobre pessoas se afogando e morrendo. É de cortar o coração. 

Durante a travessia, pensou que poderia morrer? Tentei ignorar esse fato ou imaginar minha alma flutuando, mas se eu não queria morrer é porque eu queria ver meus pais de novo. Sabíamos que nossa travessia estava nas mãos de Deus e estávamos OK com o que pudesse acontecer. Nosso destino já estava escrito.

Do que você sente mais falta? De casa. Às vezes sinto como se eu não pertencesse a este lugar, questiono o que estou fazendo aqui. Às vezes só quero ir para casa, abraçar todo mundo. Voltar para aquele lugar seguro, para aquelas pessoas que me dão segurança. Mas isso não é mais possível. Essa sensação aperta à noite. Mas aí acordo renovada para um novo dia. Isso se chama vida. Temos que encarar os desafios, e temos que ser duros como a vida é.

Qual é o seu sonho? Sempre tive curiosidade pela essência das coisas e os mistérios da ciência. Quero ser útil, influente, deixar minha digital no mundo. Eu gostaria de estudar física, mas meu plano b é ser escritora.

O que a faz feliz hoje? Acordar, ir para a escola, voltar para casa, ajudar as pessoas com a língua.

Trecho "Será que os pássaros sentem a aproximação dos bombardeios? Parecia que sim. Os pássaros paravam de cantar, sentia-se uma calmaria no ar, como se o tempo tivesse parado, e então ressurgia o zumbido dos aviões. Uma vez assisti a um documentário que dizia que as abelhas podiam ser treinadas para farejar explosivos. Não é estranho?

Quando os ataques começavam, todo mundo corria para os abrigos no porão, mas é claro que eu não conseguia. Minha família não me deixaria sozinha, por isso ficávamos todos sentados no quinto andar; o prédio balançava e as janelas tremiam, enquanto nós tentávamos fingir que não estávamos com medo. Eu costumava chorar, mas podia fazer isso porque era a mais nova e era deficiente."

'NUJEEN - A INCRÍVEL JORNADA DE UMA GAROTA QUE FUGIU DA GUERRA NA SÍRIA EM UMA CADEIRA DE RODAS' Autora: Nujeen Mustafa e Christina Lamb Trad.: Elvira Serapicos Editora: Universo dos Livros (240 págs.; R$ 39,90)

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