O centenário do pensador Edgar Morin


Homenagens no Brasil e no mundo ao filósofo e sociólogo humanista francês que lança ‘Lições de um Século de Vida’

Por Luiz Zanin Oricchio

Edgar Nahoum viu muita coisa em sua vida. Na Paris onde nasceu, ainda se sentia no ar o baque europeu com a 1ª Guerra, fim da belle époque, como escreveria mais tarde o historiador Eric Hobsbawm. Viu o crack da Bolsa em 1929 e suas repercussões globais, assistiu à ascensão do nazismo na Alemanha e à invasão da França em 1940. Engajado na Resistência durante a 2ª Guerra, adotou o codinome Morin e o manteve findo o conflito. Edgar Morin completa cem anos nesta quinta-feira, dia 8 de julho. Todas as homenagens estão lhe sendo prestadas mundo afora, no Brasil inclusive, não apenas por ter atingido idade tão avançada em plena lucidez, mas por ser, provavelmente, o último representante dessa espécie rara, o intelectual engajado e humanista.

Edgar Morin completa cem anos nesta quarta-feira, dia 8 de julho. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

  Em sua longa trajetória, Morin escreveu cerca de 80 livros. O mais recente acaba de ser lançado na França, com um título que não poderia ser diferente: Leçons d'un Siècle de Vie (Editions Denoël). Nessas lições de um século, faz um balanço de existência, aponta alguns impasses da humanidade, sugere saídas e reconhece alguns erros, coletivos e individuais. 

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Dois, em particular, relacionados à política e seus efeitos mortíferos. Seu radical pacifismo de jovem o impediu de perceber durante algum tempo a natureza mortífera do nazismo e a necessidade de enfrentá-lo. No reverso, o encantamento com a sociedade igualitária da União Soviética o levou a minimizar, também por algum tempo, o regime totalitário de Josef Stalin

Os homens erram porque a névoa da história é espessa, mas podem corrigir-se. Ele mesmo diz que "A história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori." Não se adivinha o que está por vir. Mas pode se tentar compreender o que passou. O conhecimento não é uma vacina de eficácia total contra os equívocos históricos, mas a compreensão é necessidade humana, pode indicar caminhos e evitar desvios. Só o conhecimento nos faz avançar e nos dá alguma chance na luta inglória contra a barbárie, sempre à espreita nas esquinas da história como assistimos em nossos dias atuais. 

Não espanta que, como humanista, Morin tenha em sua longa vida se empenhado em debater a questão crucial do conhecimento humano e seu relacionamento com a educação. Neste livro recente, ele recorda as perguntas de Kant: "O que posso conhecer? O que fazer do que conheço? O que posso esperar?" Perguntas do iluminismo. 

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Como estrelas-guias, tais indagações o levam a pensar sobre a natureza do conhecimento e suas derivas. Uma delas, grave e fatal, como o excesso de especialização dos nossos dias, conduz a uma separação radical entre os saberes. Engenheiros não conhecem a história humana, economistas ignoram a cultura, biólogos desprezam a psicanálise, e assim por diante. Mesmo no interior das disciplinas, a especialização torna-se radical. Um médico ocupa-se do fígado, outro do coração, um terceiro dos rins e assim por diante. O corpo do paciente, o organismo em seu todo, é ignorado. 

Morin entende que a natureza humana, em sua complexidade (nele, este conceito é fundamental), só pode ser abordada quando diversas disciplinas conversam entre si. O homem é ele e a sociedade na qual vive. Ele e sua história. Mas é também um ser biológico, em determinado meio ambiente, num planeta que orbita um sistema solar, numa galáxia menor chamada Via-Láctea. O conhecimento tem essa vocação cósmica, em que tudo se relaciona com tudo, não por capricho epistemológico, mas porque assim é na realidade. 

Em outro livro, com o sugestivo título de A Cabeça Bem-feita (Bertrand Brasil), Morin defende esse tipo de formação polivalente. Este é um texto que teve interessante origem. Em 1997, o então ministro da Educação da França, Claude Allègre, o convidou para presidir o conselho científico deum projeto de reforma do ensino médio. O livro é resultado das reflexões do pensador e das recomendações feitas ao governo. Apesar de escrito sob encomenda, e para uma determinada realidade, tem luz própria e valor universal. 

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Nele, Morin defende a tese de que um problema - em qualquer área - só pode ser corretamente equacionado quando colocado em seu contexto. E o próprio contexto deve ser colocado em um contexto maior, em escala planetária. Era o que se chamava, muito tempo antes, de "pensamento em bloco". Você não chega a nada, ou a muito pouco, se olhar apenas para determinado objeto, sem levar em conta os outros com os quais ele se relaciona e interage. 

Mas, atenção, isso não quer dizer que o simples acúmulo de informações de diversas áreas tenha como resultado o aumento de compreensão. É quase o contrário. Nosso celular passa o dia piscando com informações de última hora sem que essa sobrecarga de novidades beneficie nosso entendimento sobre o que está acontecendo no mundo. Pelo contrário. O empilhamento de fatos não raro implica em confusão e não em discernimento. Por isso Morin cita um dos seus ídolos, Michel de Montaigne, que escreveu, no século 16: "Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia". Percebem de onde saiu o título do livro? Das reflexões do célebre autor dos Ensaios

Portanto, o pensamento diversificado e interdisciplinar tem de estar bem organizado para funcionar. Não pode ser reducionista ou binário; não pode também ser anárquico. O detalhismo obsessivo não conduz à sabedoria, mas a bagunça intelectual também não. 

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Se o ordenado diálogo entre as disciplinas melhora nossa visão de mundo, o contato frequente com as artes a aguça ainda mais. "São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com o mundo...O milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço", escreve Morin.

Cabe lembrar que ele próprio é autor de um grande filme, em parceria com Jean Rouch. Em Crônica de um Verão (1961), os dois percorrem as ruas de Paris fazendo aos transeuntes uma simples pergunta: "Você é feliz?" As respostas são surpreendentes e desenham uma França ainda angustiada no pós-guerra mundial, atormentada pela questão da independência da Argélia e inquieta quanto ao futuro. Compreende-se. Não é mesmo fácil dar resposta categórica a essa pergunta. Cada ser humano é um mundo e esconde dentro de si abismos de ambivalências e contradições. O ser humano é múltiplo e não aceita definições simplistas. O que Crônica de um Verão faz é explicitar essa complexidade. 

O longo trabalho de Morin nos ajuda a compreender a imensidão da nossa própria humanidade e a dos outros. Sem esgotá-las, porque isso é impossível. E sem nos apegarmos a certezas, porque estas são enganadoras. Gosta de uma frase de Dante Alighieri, muito citada por Montaigne: "Tanto quanto o saber, agrada-me a dúvida".  Só os tolos, os tiranos e os fanáticos religiosos sustentam certezas absolutas. O espírito livre tem na dúvida a companheira inseparável do saber. O conhecimento pode ser um pouco como o oráculo de Delfos, conforme o definiu o filósofo pré-socrático Heráclito, um dos favoritos de Edgar Morin: "Não afirma, não esconde, mas sugere". 

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Em sua longa trajetória, Edgard Morin escreveu cerca de 80 livros. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Principais livros de Edgard Morin:

  • O Método (seis volumes). Editora Sulina. Talvez sua obra-prima, O Método faz a crítica do pensamento reducionista e institui a necessidade de uma nova cientificidade, marcada pela transdisciplinaridade. 
  • Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez Editora). Morin desenvolve os temas: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano.
  • Introdução ao Pensamento Complexo (Sulina). Tudo se interliga. Como num holograma, a parte está no todo e o todo está na parte. Em linguagem simples, Morin esmiúça os fundamentos do seu pensamento complexo, em oposição a todo reducionismo e simplismo. 
  • Minha Paris, Minha Memória (Bertrand Brasil). Em delicioso tom memorialístico, Morin descreve os bairros parisienses em que morou ao longo da vida. Em especial a rua Menilmontant, no 20 ème arrondissement, onde viveu a adolescência e se deixou influenciar pelo ambiente popular do bairro. 

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Homenagem no Brasil

O Sesc promoveu duas lives em homenagem ao centenário do filósofo, que esteve diversas vezes em nosso país: as Jornadas Edgar Morin, a vida em tempos de incertezas e a construção do futuro. Com a presença de Morin e debate com especialistas em sua obra. Veja abaixo:

Edgar Nahoum viu muita coisa em sua vida. Na Paris onde nasceu, ainda se sentia no ar o baque europeu com a 1ª Guerra, fim da belle époque, como escreveria mais tarde o historiador Eric Hobsbawm. Viu o crack da Bolsa em 1929 e suas repercussões globais, assistiu à ascensão do nazismo na Alemanha e à invasão da França em 1940. Engajado na Resistência durante a 2ª Guerra, adotou o codinome Morin e o manteve findo o conflito. Edgar Morin completa cem anos nesta quinta-feira, dia 8 de julho. Todas as homenagens estão lhe sendo prestadas mundo afora, no Brasil inclusive, não apenas por ter atingido idade tão avançada em plena lucidez, mas por ser, provavelmente, o último representante dessa espécie rara, o intelectual engajado e humanista.

Edgar Morin completa cem anos nesta quarta-feira, dia 8 de julho. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

  Em sua longa trajetória, Morin escreveu cerca de 80 livros. O mais recente acaba de ser lançado na França, com um título que não poderia ser diferente: Leçons d'un Siècle de Vie (Editions Denoël). Nessas lições de um século, faz um balanço de existência, aponta alguns impasses da humanidade, sugere saídas e reconhece alguns erros, coletivos e individuais. 

Dois, em particular, relacionados à política e seus efeitos mortíferos. Seu radical pacifismo de jovem o impediu de perceber durante algum tempo a natureza mortífera do nazismo e a necessidade de enfrentá-lo. No reverso, o encantamento com a sociedade igualitária da União Soviética o levou a minimizar, também por algum tempo, o regime totalitário de Josef Stalin

Os homens erram porque a névoa da história é espessa, mas podem corrigir-se. Ele mesmo diz que "A história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori." Não se adivinha o que está por vir. Mas pode se tentar compreender o que passou. O conhecimento não é uma vacina de eficácia total contra os equívocos históricos, mas a compreensão é necessidade humana, pode indicar caminhos e evitar desvios. Só o conhecimento nos faz avançar e nos dá alguma chance na luta inglória contra a barbárie, sempre à espreita nas esquinas da história como assistimos em nossos dias atuais. 

Não espanta que, como humanista, Morin tenha em sua longa vida se empenhado em debater a questão crucial do conhecimento humano e seu relacionamento com a educação. Neste livro recente, ele recorda as perguntas de Kant: "O que posso conhecer? O que fazer do que conheço? O que posso esperar?" Perguntas do iluminismo. 

Como estrelas-guias, tais indagações o levam a pensar sobre a natureza do conhecimento e suas derivas. Uma delas, grave e fatal, como o excesso de especialização dos nossos dias, conduz a uma separação radical entre os saberes. Engenheiros não conhecem a história humana, economistas ignoram a cultura, biólogos desprezam a psicanálise, e assim por diante. Mesmo no interior das disciplinas, a especialização torna-se radical. Um médico ocupa-se do fígado, outro do coração, um terceiro dos rins e assim por diante. O corpo do paciente, o organismo em seu todo, é ignorado. 

Morin entende que a natureza humana, em sua complexidade (nele, este conceito é fundamental), só pode ser abordada quando diversas disciplinas conversam entre si. O homem é ele e a sociedade na qual vive. Ele e sua história. Mas é também um ser biológico, em determinado meio ambiente, num planeta que orbita um sistema solar, numa galáxia menor chamada Via-Láctea. O conhecimento tem essa vocação cósmica, em que tudo se relaciona com tudo, não por capricho epistemológico, mas porque assim é na realidade. 

Em outro livro, com o sugestivo título de A Cabeça Bem-feita (Bertrand Brasil), Morin defende esse tipo de formação polivalente. Este é um texto que teve interessante origem. Em 1997, o então ministro da Educação da França, Claude Allègre, o convidou para presidir o conselho científico deum projeto de reforma do ensino médio. O livro é resultado das reflexões do pensador e das recomendações feitas ao governo. Apesar de escrito sob encomenda, e para uma determinada realidade, tem luz própria e valor universal. 

Nele, Morin defende a tese de que um problema - em qualquer área - só pode ser corretamente equacionado quando colocado em seu contexto. E o próprio contexto deve ser colocado em um contexto maior, em escala planetária. Era o que se chamava, muito tempo antes, de "pensamento em bloco". Você não chega a nada, ou a muito pouco, se olhar apenas para determinado objeto, sem levar em conta os outros com os quais ele se relaciona e interage. 

Mas, atenção, isso não quer dizer que o simples acúmulo de informações de diversas áreas tenha como resultado o aumento de compreensão. É quase o contrário. Nosso celular passa o dia piscando com informações de última hora sem que essa sobrecarga de novidades beneficie nosso entendimento sobre o que está acontecendo no mundo. Pelo contrário. O empilhamento de fatos não raro implica em confusão e não em discernimento. Por isso Morin cita um dos seus ídolos, Michel de Montaigne, que escreveu, no século 16: "Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia". Percebem de onde saiu o título do livro? Das reflexões do célebre autor dos Ensaios

Portanto, o pensamento diversificado e interdisciplinar tem de estar bem organizado para funcionar. Não pode ser reducionista ou binário; não pode também ser anárquico. O detalhismo obsessivo não conduz à sabedoria, mas a bagunça intelectual também não. 

Se o ordenado diálogo entre as disciplinas melhora nossa visão de mundo, o contato frequente com as artes a aguça ainda mais. "São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com o mundo...O milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço", escreve Morin.

Cabe lembrar que ele próprio é autor de um grande filme, em parceria com Jean Rouch. Em Crônica de um Verão (1961), os dois percorrem as ruas de Paris fazendo aos transeuntes uma simples pergunta: "Você é feliz?" As respostas são surpreendentes e desenham uma França ainda angustiada no pós-guerra mundial, atormentada pela questão da independência da Argélia e inquieta quanto ao futuro. Compreende-se. Não é mesmo fácil dar resposta categórica a essa pergunta. Cada ser humano é um mundo e esconde dentro de si abismos de ambivalências e contradições. O ser humano é múltiplo e não aceita definições simplistas. O que Crônica de um Verão faz é explicitar essa complexidade. 

O longo trabalho de Morin nos ajuda a compreender a imensidão da nossa própria humanidade e a dos outros. Sem esgotá-las, porque isso é impossível. E sem nos apegarmos a certezas, porque estas são enganadoras. Gosta de uma frase de Dante Alighieri, muito citada por Montaigne: "Tanto quanto o saber, agrada-me a dúvida".  Só os tolos, os tiranos e os fanáticos religiosos sustentam certezas absolutas. O espírito livre tem na dúvida a companheira inseparável do saber. O conhecimento pode ser um pouco como o oráculo de Delfos, conforme o definiu o filósofo pré-socrático Heráclito, um dos favoritos de Edgar Morin: "Não afirma, não esconde, mas sugere". 

Em sua longa trajetória, Edgard Morin escreveu cerca de 80 livros. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Principais livros de Edgard Morin:

  • O Método (seis volumes). Editora Sulina. Talvez sua obra-prima, O Método faz a crítica do pensamento reducionista e institui a necessidade de uma nova cientificidade, marcada pela transdisciplinaridade. 
  • Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez Editora). Morin desenvolve os temas: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano.
  • Introdução ao Pensamento Complexo (Sulina). Tudo se interliga. Como num holograma, a parte está no todo e o todo está na parte. Em linguagem simples, Morin esmiúça os fundamentos do seu pensamento complexo, em oposição a todo reducionismo e simplismo. 
  • Minha Paris, Minha Memória (Bertrand Brasil). Em delicioso tom memorialístico, Morin descreve os bairros parisienses em que morou ao longo da vida. Em especial a rua Menilmontant, no 20 ème arrondissement, onde viveu a adolescência e se deixou influenciar pelo ambiente popular do bairro. 

Homenagem no Brasil

O Sesc promoveu duas lives em homenagem ao centenário do filósofo, que esteve diversas vezes em nosso país: as Jornadas Edgar Morin, a vida em tempos de incertezas e a construção do futuro. Com a presença de Morin e debate com especialistas em sua obra. Veja abaixo:

Edgar Nahoum viu muita coisa em sua vida. Na Paris onde nasceu, ainda se sentia no ar o baque europeu com a 1ª Guerra, fim da belle époque, como escreveria mais tarde o historiador Eric Hobsbawm. Viu o crack da Bolsa em 1929 e suas repercussões globais, assistiu à ascensão do nazismo na Alemanha e à invasão da França em 1940. Engajado na Resistência durante a 2ª Guerra, adotou o codinome Morin e o manteve findo o conflito. Edgar Morin completa cem anos nesta quinta-feira, dia 8 de julho. Todas as homenagens estão lhe sendo prestadas mundo afora, no Brasil inclusive, não apenas por ter atingido idade tão avançada em plena lucidez, mas por ser, provavelmente, o último representante dessa espécie rara, o intelectual engajado e humanista.

Edgar Morin completa cem anos nesta quarta-feira, dia 8 de julho. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

  Em sua longa trajetória, Morin escreveu cerca de 80 livros. O mais recente acaba de ser lançado na França, com um título que não poderia ser diferente: Leçons d'un Siècle de Vie (Editions Denoël). Nessas lições de um século, faz um balanço de existência, aponta alguns impasses da humanidade, sugere saídas e reconhece alguns erros, coletivos e individuais. 

Dois, em particular, relacionados à política e seus efeitos mortíferos. Seu radical pacifismo de jovem o impediu de perceber durante algum tempo a natureza mortífera do nazismo e a necessidade de enfrentá-lo. No reverso, o encantamento com a sociedade igualitária da União Soviética o levou a minimizar, também por algum tempo, o regime totalitário de Josef Stalin

Os homens erram porque a névoa da história é espessa, mas podem corrigir-se. Ele mesmo diz que "A história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori." Não se adivinha o que está por vir. Mas pode se tentar compreender o que passou. O conhecimento não é uma vacina de eficácia total contra os equívocos históricos, mas a compreensão é necessidade humana, pode indicar caminhos e evitar desvios. Só o conhecimento nos faz avançar e nos dá alguma chance na luta inglória contra a barbárie, sempre à espreita nas esquinas da história como assistimos em nossos dias atuais. 

Não espanta que, como humanista, Morin tenha em sua longa vida se empenhado em debater a questão crucial do conhecimento humano e seu relacionamento com a educação. Neste livro recente, ele recorda as perguntas de Kant: "O que posso conhecer? O que fazer do que conheço? O que posso esperar?" Perguntas do iluminismo. 

Como estrelas-guias, tais indagações o levam a pensar sobre a natureza do conhecimento e suas derivas. Uma delas, grave e fatal, como o excesso de especialização dos nossos dias, conduz a uma separação radical entre os saberes. Engenheiros não conhecem a história humana, economistas ignoram a cultura, biólogos desprezam a psicanálise, e assim por diante. Mesmo no interior das disciplinas, a especialização torna-se radical. Um médico ocupa-se do fígado, outro do coração, um terceiro dos rins e assim por diante. O corpo do paciente, o organismo em seu todo, é ignorado. 

Morin entende que a natureza humana, em sua complexidade (nele, este conceito é fundamental), só pode ser abordada quando diversas disciplinas conversam entre si. O homem é ele e a sociedade na qual vive. Ele e sua história. Mas é também um ser biológico, em determinado meio ambiente, num planeta que orbita um sistema solar, numa galáxia menor chamada Via-Láctea. O conhecimento tem essa vocação cósmica, em que tudo se relaciona com tudo, não por capricho epistemológico, mas porque assim é na realidade. 

Em outro livro, com o sugestivo título de A Cabeça Bem-feita (Bertrand Brasil), Morin defende esse tipo de formação polivalente. Este é um texto que teve interessante origem. Em 1997, o então ministro da Educação da França, Claude Allègre, o convidou para presidir o conselho científico deum projeto de reforma do ensino médio. O livro é resultado das reflexões do pensador e das recomendações feitas ao governo. Apesar de escrito sob encomenda, e para uma determinada realidade, tem luz própria e valor universal. 

Nele, Morin defende a tese de que um problema - em qualquer área - só pode ser corretamente equacionado quando colocado em seu contexto. E o próprio contexto deve ser colocado em um contexto maior, em escala planetária. Era o que se chamava, muito tempo antes, de "pensamento em bloco". Você não chega a nada, ou a muito pouco, se olhar apenas para determinado objeto, sem levar em conta os outros com os quais ele se relaciona e interage. 

Mas, atenção, isso não quer dizer que o simples acúmulo de informações de diversas áreas tenha como resultado o aumento de compreensão. É quase o contrário. Nosso celular passa o dia piscando com informações de última hora sem que essa sobrecarga de novidades beneficie nosso entendimento sobre o que está acontecendo no mundo. Pelo contrário. O empilhamento de fatos não raro implica em confusão e não em discernimento. Por isso Morin cita um dos seus ídolos, Michel de Montaigne, que escreveu, no século 16: "Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia". Percebem de onde saiu o título do livro? Das reflexões do célebre autor dos Ensaios

Portanto, o pensamento diversificado e interdisciplinar tem de estar bem organizado para funcionar. Não pode ser reducionista ou binário; não pode também ser anárquico. O detalhismo obsessivo não conduz à sabedoria, mas a bagunça intelectual também não. 

Se o ordenado diálogo entre as disciplinas melhora nossa visão de mundo, o contato frequente com as artes a aguça ainda mais. "São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com o mundo...O milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço", escreve Morin.

Cabe lembrar que ele próprio é autor de um grande filme, em parceria com Jean Rouch. Em Crônica de um Verão (1961), os dois percorrem as ruas de Paris fazendo aos transeuntes uma simples pergunta: "Você é feliz?" As respostas são surpreendentes e desenham uma França ainda angustiada no pós-guerra mundial, atormentada pela questão da independência da Argélia e inquieta quanto ao futuro. Compreende-se. Não é mesmo fácil dar resposta categórica a essa pergunta. Cada ser humano é um mundo e esconde dentro de si abismos de ambivalências e contradições. O ser humano é múltiplo e não aceita definições simplistas. O que Crônica de um Verão faz é explicitar essa complexidade. 

O longo trabalho de Morin nos ajuda a compreender a imensidão da nossa própria humanidade e a dos outros. Sem esgotá-las, porque isso é impossível. E sem nos apegarmos a certezas, porque estas são enganadoras. Gosta de uma frase de Dante Alighieri, muito citada por Montaigne: "Tanto quanto o saber, agrada-me a dúvida".  Só os tolos, os tiranos e os fanáticos religiosos sustentam certezas absolutas. O espírito livre tem na dúvida a companheira inseparável do saber. O conhecimento pode ser um pouco como o oráculo de Delfos, conforme o definiu o filósofo pré-socrático Heráclito, um dos favoritos de Edgar Morin: "Não afirma, não esconde, mas sugere". 

Em sua longa trajetória, Edgard Morin escreveu cerca de 80 livros. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Principais livros de Edgard Morin:

  • O Método (seis volumes). Editora Sulina. Talvez sua obra-prima, O Método faz a crítica do pensamento reducionista e institui a necessidade de uma nova cientificidade, marcada pela transdisciplinaridade. 
  • Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez Editora). Morin desenvolve os temas: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano.
  • Introdução ao Pensamento Complexo (Sulina). Tudo se interliga. Como num holograma, a parte está no todo e o todo está na parte. Em linguagem simples, Morin esmiúça os fundamentos do seu pensamento complexo, em oposição a todo reducionismo e simplismo. 
  • Minha Paris, Minha Memória (Bertrand Brasil). Em delicioso tom memorialístico, Morin descreve os bairros parisienses em que morou ao longo da vida. Em especial a rua Menilmontant, no 20 ème arrondissement, onde viveu a adolescência e se deixou influenciar pelo ambiente popular do bairro. 

Homenagem no Brasil

O Sesc promoveu duas lives em homenagem ao centenário do filósofo, que esteve diversas vezes em nosso país: as Jornadas Edgar Morin, a vida em tempos de incertezas e a construção do futuro. Com a presença de Morin e debate com especialistas em sua obra. Veja abaixo:

Edgar Nahoum viu muita coisa em sua vida. Na Paris onde nasceu, ainda se sentia no ar o baque europeu com a 1ª Guerra, fim da belle époque, como escreveria mais tarde o historiador Eric Hobsbawm. Viu o crack da Bolsa em 1929 e suas repercussões globais, assistiu à ascensão do nazismo na Alemanha e à invasão da França em 1940. Engajado na Resistência durante a 2ª Guerra, adotou o codinome Morin e o manteve findo o conflito. Edgar Morin completa cem anos nesta quinta-feira, dia 8 de julho. Todas as homenagens estão lhe sendo prestadas mundo afora, no Brasil inclusive, não apenas por ter atingido idade tão avançada em plena lucidez, mas por ser, provavelmente, o último representante dessa espécie rara, o intelectual engajado e humanista.

Edgar Morin completa cem anos nesta quarta-feira, dia 8 de julho. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

  Em sua longa trajetória, Morin escreveu cerca de 80 livros. O mais recente acaba de ser lançado na França, com um título que não poderia ser diferente: Leçons d'un Siècle de Vie (Editions Denoël). Nessas lições de um século, faz um balanço de existência, aponta alguns impasses da humanidade, sugere saídas e reconhece alguns erros, coletivos e individuais. 

Dois, em particular, relacionados à política e seus efeitos mortíferos. Seu radical pacifismo de jovem o impediu de perceber durante algum tempo a natureza mortífera do nazismo e a necessidade de enfrentá-lo. No reverso, o encantamento com a sociedade igualitária da União Soviética o levou a minimizar, também por algum tempo, o regime totalitário de Josef Stalin

Os homens erram porque a névoa da história é espessa, mas podem corrigir-se. Ele mesmo diz que "A história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori." Não se adivinha o que está por vir. Mas pode se tentar compreender o que passou. O conhecimento não é uma vacina de eficácia total contra os equívocos históricos, mas a compreensão é necessidade humana, pode indicar caminhos e evitar desvios. Só o conhecimento nos faz avançar e nos dá alguma chance na luta inglória contra a barbárie, sempre à espreita nas esquinas da história como assistimos em nossos dias atuais. 

Não espanta que, como humanista, Morin tenha em sua longa vida se empenhado em debater a questão crucial do conhecimento humano e seu relacionamento com a educação. Neste livro recente, ele recorda as perguntas de Kant: "O que posso conhecer? O que fazer do que conheço? O que posso esperar?" Perguntas do iluminismo. 

Como estrelas-guias, tais indagações o levam a pensar sobre a natureza do conhecimento e suas derivas. Uma delas, grave e fatal, como o excesso de especialização dos nossos dias, conduz a uma separação radical entre os saberes. Engenheiros não conhecem a história humana, economistas ignoram a cultura, biólogos desprezam a psicanálise, e assim por diante. Mesmo no interior das disciplinas, a especialização torna-se radical. Um médico ocupa-se do fígado, outro do coração, um terceiro dos rins e assim por diante. O corpo do paciente, o organismo em seu todo, é ignorado. 

Morin entende que a natureza humana, em sua complexidade (nele, este conceito é fundamental), só pode ser abordada quando diversas disciplinas conversam entre si. O homem é ele e a sociedade na qual vive. Ele e sua história. Mas é também um ser biológico, em determinado meio ambiente, num planeta que orbita um sistema solar, numa galáxia menor chamada Via-Láctea. O conhecimento tem essa vocação cósmica, em que tudo se relaciona com tudo, não por capricho epistemológico, mas porque assim é na realidade. 

Em outro livro, com o sugestivo título de A Cabeça Bem-feita (Bertrand Brasil), Morin defende esse tipo de formação polivalente. Este é um texto que teve interessante origem. Em 1997, o então ministro da Educação da França, Claude Allègre, o convidou para presidir o conselho científico deum projeto de reforma do ensino médio. O livro é resultado das reflexões do pensador e das recomendações feitas ao governo. Apesar de escrito sob encomenda, e para uma determinada realidade, tem luz própria e valor universal. 

Nele, Morin defende a tese de que um problema - em qualquer área - só pode ser corretamente equacionado quando colocado em seu contexto. E o próprio contexto deve ser colocado em um contexto maior, em escala planetária. Era o que se chamava, muito tempo antes, de "pensamento em bloco". Você não chega a nada, ou a muito pouco, se olhar apenas para determinado objeto, sem levar em conta os outros com os quais ele se relaciona e interage. 

Mas, atenção, isso não quer dizer que o simples acúmulo de informações de diversas áreas tenha como resultado o aumento de compreensão. É quase o contrário. Nosso celular passa o dia piscando com informações de última hora sem que essa sobrecarga de novidades beneficie nosso entendimento sobre o que está acontecendo no mundo. Pelo contrário. O empilhamento de fatos não raro implica em confusão e não em discernimento. Por isso Morin cita um dos seus ídolos, Michel de Montaigne, que escreveu, no século 16: "Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia". Percebem de onde saiu o título do livro? Das reflexões do célebre autor dos Ensaios

Portanto, o pensamento diversificado e interdisciplinar tem de estar bem organizado para funcionar. Não pode ser reducionista ou binário; não pode também ser anárquico. O detalhismo obsessivo não conduz à sabedoria, mas a bagunça intelectual também não. 

Se o ordenado diálogo entre as disciplinas melhora nossa visão de mundo, o contato frequente com as artes a aguça ainda mais. "São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com o mundo...O milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço", escreve Morin.

Cabe lembrar que ele próprio é autor de um grande filme, em parceria com Jean Rouch. Em Crônica de um Verão (1961), os dois percorrem as ruas de Paris fazendo aos transeuntes uma simples pergunta: "Você é feliz?" As respostas são surpreendentes e desenham uma França ainda angustiada no pós-guerra mundial, atormentada pela questão da independência da Argélia e inquieta quanto ao futuro. Compreende-se. Não é mesmo fácil dar resposta categórica a essa pergunta. Cada ser humano é um mundo e esconde dentro de si abismos de ambivalências e contradições. O ser humano é múltiplo e não aceita definições simplistas. O que Crônica de um Verão faz é explicitar essa complexidade. 

O longo trabalho de Morin nos ajuda a compreender a imensidão da nossa própria humanidade e a dos outros. Sem esgotá-las, porque isso é impossível. E sem nos apegarmos a certezas, porque estas são enganadoras. Gosta de uma frase de Dante Alighieri, muito citada por Montaigne: "Tanto quanto o saber, agrada-me a dúvida".  Só os tolos, os tiranos e os fanáticos religiosos sustentam certezas absolutas. O espírito livre tem na dúvida a companheira inseparável do saber. O conhecimento pode ser um pouco como o oráculo de Delfos, conforme o definiu o filósofo pré-socrático Heráclito, um dos favoritos de Edgar Morin: "Não afirma, não esconde, mas sugere". 

Em sua longa trajetória, Edgard Morin escreveu cerca de 80 livros. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Principais livros de Edgard Morin:

  • O Método (seis volumes). Editora Sulina. Talvez sua obra-prima, O Método faz a crítica do pensamento reducionista e institui a necessidade de uma nova cientificidade, marcada pela transdisciplinaridade. 
  • Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez Editora). Morin desenvolve os temas: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano.
  • Introdução ao Pensamento Complexo (Sulina). Tudo se interliga. Como num holograma, a parte está no todo e o todo está na parte. Em linguagem simples, Morin esmiúça os fundamentos do seu pensamento complexo, em oposição a todo reducionismo e simplismo. 
  • Minha Paris, Minha Memória (Bertrand Brasil). Em delicioso tom memorialístico, Morin descreve os bairros parisienses em que morou ao longo da vida. Em especial a rua Menilmontant, no 20 ème arrondissement, onde viveu a adolescência e se deixou influenciar pelo ambiente popular do bairro. 

Homenagem no Brasil

O Sesc promoveu duas lives em homenagem ao centenário do filósofo, que esteve diversas vezes em nosso país: as Jornadas Edgar Morin, a vida em tempos de incertezas e a construção do futuro. Com a presença de Morin e debate com especialistas em sua obra. Veja abaixo:

Edgar Nahoum viu muita coisa em sua vida. Na Paris onde nasceu, ainda se sentia no ar o baque europeu com a 1ª Guerra, fim da belle époque, como escreveria mais tarde o historiador Eric Hobsbawm. Viu o crack da Bolsa em 1929 e suas repercussões globais, assistiu à ascensão do nazismo na Alemanha e à invasão da França em 1940. Engajado na Resistência durante a 2ª Guerra, adotou o codinome Morin e o manteve findo o conflito. Edgar Morin completa cem anos nesta quinta-feira, dia 8 de julho. Todas as homenagens estão lhe sendo prestadas mundo afora, no Brasil inclusive, não apenas por ter atingido idade tão avançada em plena lucidez, mas por ser, provavelmente, o último representante dessa espécie rara, o intelectual engajado e humanista.

Edgar Morin completa cem anos nesta quarta-feira, dia 8 de julho. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

  Em sua longa trajetória, Morin escreveu cerca de 80 livros. O mais recente acaba de ser lançado na França, com um título que não poderia ser diferente: Leçons d'un Siècle de Vie (Editions Denoël). Nessas lições de um século, faz um balanço de existência, aponta alguns impasses da humanidade, sugere saídas e reconhece alguns erros, coletivos e individuais. 

Dois, em particular, relacionados à política e seus efeitos mortíferos. Seu radical pacifismo de jovem o impediu de perceber durante algum tempo a natureza mortífera do nazismo e a necessidade de enfrentá-lo. No reverso, o encantamento com a sociedade igualitária da União Soviética o levou a minimizar, também por algum tempo, o regime totalitário de Josef Stalin

Os homens erram porque a névoa da história é espessa, mas podem corrigir-se. Ele mesmo diz que "A história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori." Não se adivinha o que está por vir. Mas pode se tentar compreender o que passou. O conhecimento não é uma vacina de eficácia total contra os equívocos históricos, mas a compreensão é necessidade humana, pode indicar caminhos e evitar desvios. Só o conhecimento nos faz avançar e nos dá alguma chance na luta inglória contra a barbárie, sempre à espreita nas esquinas da história como assistimos em nossos dias atuais. 

Não espanta que, como humanista, Morin tenha em sua longa vida se empenhado em debater a questão crucial do conhecimento humano e seu relacionamento com a educação. Neste livro recente, ele recorda as perguntas de Kant: "O que posso conhecer? O que fazer do que conheço? O que posso esperar?" Perguntas do iluminismo. 

Como estrelas-guias, tais indagações o levam a pensar sobre a natureza do conhecimento e suas derivas. Uma delas, grave e fatal, como o excesso de especialização dos nossos dias, conduz a uma separação radical entre os saberes. Engenheiros não conhecem a história humana, economistas ignoram a cultura, biólogos desprezam a psicanálise, e assim por diante. Mesmo no interior das disciplinas, a especialização torna-se radical. Um médico ocupa-se do fígado, outro do coração, um terceiro dos rins e assim por diante. O corpo do paciente, o organismo em seu todo, é ignorado. 

Morin entende que a natureza humana, em sua complexidade (nele, este conceito é fundamental), só pode ser abordada quando diversas disciplinas conversam entre si. O homem é ele e a sociedade na qual vive. Ele e sua história. Mas é também um ser biológico, em determinado meio ambiente, num planeta que orbita um sistema solar, numa galáxia menor chamada Via-Láctea. O conhecimento tem essa vocação cósmica, em que tudo se relaciona com tudo, não por capricho epistemológico, mas porque assim é na realidade. 

Em outro livro, com o sugestivo título de A Cabeça Bem-feita (Bertrand Brasil), Morin defende esse tipo de formação polivalente. Este é um texto que teve interessante origem. Em 1997, o então ministro da Educação da França, Claude Allègre, o convidou para presidir o conselho científico deum projeto de reforma do ensino médio. O livro é resultado das reflexões do pensador e das recomendações feitas ao governo. Apesar de escrito sob encomenda, e para uma determinada realidade, tem luz própria e valor universal. 

Nele, Morin defende a tese de que um problema - em qualquer área - só pode ser corretamente equacionado quando colocado em seu contexto. E o próprio contexto deve ser colocado em um contexto maior, em escala planetária. Era o que se chamava, muito tempo antes, de "pensamento em bloco". Você não chega a nada, ou a muito pouco, se olhar apenas para determinado objeto, sem levar em conta os outros com os quais ele se relaciona e interage. 

Mas, atenção, isso não quer dizer que o simples acúmulo de informações de diversas áreas tenha como resultado o aumento de compreensão. É quase o contrário. Nosso celular passa o dia piscando com informações de última hora sem que essa sobrecarga de novidades beneficie nosso entendimento sobre o que está acontecendo no mundo. Pelo contrário. O empilhamento de fatos não raro implica em confusão e não em discernimento. Por isso Morin cita um dos seus ídolos, Michel de Montaigne, que escreveu, no século 16: "Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia". Percebem de onde saiu o título do livro? Das reflexões do célebre autor dos Ensaios

Portanto, o pensamento diversificado e interdisciplinar tem de estar bem organizado para funcionar. Não pode ser reducionista ou binário; não pode também ser anárquico. O detalhismo obsessivo não conduz à sabedoria, mas a bagunça intelectual também não. 

Se o ordenado diálogo entre as disciplinas melhora nossa visão de mundo, o contato frequente com as artes a aguça ainda mais. "São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com o mundo...O milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço", escreve Morin.

Cabe lembrar que ele próprio é autor de um grande filme, em parceria com Jean Rouch. Em Crônica de um Verão (1961), os dois percorrem as ruas de Paris fazendo aos transeuntes uma simples pergunta: "Você é feliz?" As respostas são surpreendentes e desenham uma França ainda angustiada no pós-guerra mundial, atormentada pela questão da independência da Argélia e inquieta quanto ao futuro. Compreende-se. Não é mesmo fácil dar resposta categórica a essa pergunta. Cada ser humano é um mundo e esconde dentro de si abismos de ambivalências e contradições. O ser humano é múltiplo e não aceita definições simplistas. O que Crônica de um Verão faz é explicitar essa complexidade. 

O longo trabalho de Morin nos ajuda a compreender a imensidão da nossa própria humanidade e a dos outros. Sem esgotá-las, porque isso é impossível. E sem nos apegarmos a certezas, porque estas são enganadoras. Gosta de uma frase de Dante Alighieri, muito citada por Montaigne: "Tanto quanto o saber, agrada-me a dúvida".  Só os tolos, os tiranos e os fanáticos religiosos sustentam certezas absolutas. O espírito livre tem na dúvida a companheira inseparável do saber. O conhecimento pode ser um pouco como o oráculo de Delfos, conforme o definiu o filósofo pré-socrático Heráclito, um dos favoritos de Edgar Morin: "Não afirma, não esconde, mas sugere". 

Em sua longa trajetória, Edgard Morin escreveu cerca de 80 livros. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Principais livros de Edgard Morin:

  • O Método (seis volumes). Editora Sulina. Talvez sua obra-prima, O Método faz a crítica do pensamento reducionista e institui a necessidade de uma nova cientificidade, marcada pela transdisciplinaridade. 
  • Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez Editora). Morin desenvolve os temas: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano.
  • Introdução ao Pensamento Complexo (Sulina). Tudo se interliga. Como num holograma, a parte está no todo e o todo está na parte. Em linguagem simples, Morin esmiúça os fundamentos do seu pensamento complexo, em oposição a todo reducionismo e simplismo. 
  • Minha Paris, Minha Memória (Bertrand Brasil). Em delicioso tom memorialístico, Morin descreve os bairros parisienses em que morou ao longo da vida. Em especial a rua Menilmontant, no 20 ème arrondissement, onde viveu a adolescência e se deixou influenciar pelo ambiente popular do bairro. 

Homenagem no Brasil

O Sesc promoveu duas lives em homenagem ao centenário do filósofo, que esteve diversas vezes em nosso país: as Jornadas Edgar Morin, a vida em tempos de incertezas e a construção do futuro. Com a presença de Morin e debate com especialistas em sua obra. Veja abaixo:

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