‘O homem não é suicida, ainda que vacile’, diz Ignácio de Loyola Brandão, que lança livro


Romance distópico encerra tetralogia iniciada com ‘Zero’ e foi motivado pelos desgovernos que marcaram a pandemia

Atualização:

Evaristo vive o momento mais difícil de sua vida ao enterrar, com as próprias mãos, o corpo de sua mulher, Neluce. O mundo à sua volta vive sob uma pandemia (chamada de Funesta ou Infame) que perdura há anos e, por isso, ele não tem consciência do que é realidade, sentido e expectativa. É sob esse clima distópico que se passa a trama de Deus, O Que Quer de Nós? (Global), novo romance do escritor e colunista do Estadão Ignácio de Loyola Brandão.

Escrito sob a sombra da pandemia, o romance (que terá lançamento no dia 25, na Livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, a partir das 15h) reflete o incômodo do autor com a situação vivida pelo Brasil, inspirando figuras como o presidente identificado como Desatinado ou Destemperado, cujas atitudes causam desamparo, confusão e morte. E, à medida que relembra sua vida ao lado da mulher, Evaristo, isolado em seu apartamento, alterna crises de ansiedade, depressão, ternura e felicidade.

Autor de outros clássicos, como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), Loyola mantém-se, aos 86 anos, como um mestre em criar realidades distópicas, descritas em uma trama ao mesmo tempo crítica e bem-humorada, mas sem perder o humanismo. É o que se observa na entrevista a seguir.

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Loyola encerra trama com volta surreal ao tempo dos dinossauros. Foto: Hélvio Romero/Estadão - 6/11/2019

A pandemia mudou seu conceito sobre a morte?

Li muito sobre pestes, epidemias e mortes. O livro de Heloisa Starling (A Bailarina da Morte, escrito com Lilia Schwarcz) sobre a gripe espanhola me impressionou tanto que parei de ler, depois retomei. Era inconcebível tanta gente morrer ao mesmo tempo, caindo nas ruas e não sendo uma guerra. O horror dos campos de concentração me bateu quando visitei Dachau, na Alemanha. Inimaginável aquela indiferença diante de corpos nos fornos crematórios. O primeiro grande choque que tive com uma pessoa querida foi a morte de meu irmão José Maria, aos 7 anos, com uma meningite que o matou em dois dias. Jamais esqueço meu pai trazendo o corpo dele no colo em um táxi e entrando em casa à meia-noite, sem deixar cair uma lágrima, mas varado pela dor. Minha mãe nunca teve medo da morte, era católica, piedosa, tinha certeza de que no máximo passaria pelo purgatório, cumpriria uma pena e iria para o céu. Teve uma morte tranquila. Nunca pensei na possibilidade de morrer. Afastava o pensamento. Quando coroinha em Araraquara, eu gostava de ir com o vigário quando ele era chamado para dar a extrema-unção a alguém. Sabia que a família do morto me daria uma gorjetinha com a qual eu pagava a matinê do cinema aos domingos.

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E como vê a morte?

Jovem, repórter de jornal, estava cobrindo uma greve e pancadaria na Central do Brasil. Coisa feia. Em certo momento - eu tinha 23 anos -, o fotógrafo e eu saímos na direção de um entrevero fantástico. Corremos, minha cadernetinha de anotações caiu, abaixei-me para pegar. O fotógrafo estava ao meu lado e disse: olhe para trás. Um jovem militar estava caído com uma bala na testa. A bala seria para mim, não tivesse me abaixado. A segunda vez foi em 1996, quando descobri um aneurisma e passei por uma cirurgia no cérebro. O aneurisma estava para estourar, teria me matado. Há um mês, meu olho direito fechou. Fui para o Einstein, fiquei oito dias, passei por uma infinita bateria de exames. Conclusão: eu estava à beira de um AVC avassalador e estou com diabete. A morte me acompanha - estou me acostumando? Ninguém se acostuma com isso. Quando chegará a minha vez? E sentir a indiferença do governo, ministros da Saúde impiedosos, fazendo tramoias e trapaças, corruptos, desumanos, tanto quanto aquele austríaco (Hitler) que enviava prisioneiros para os crematórios. Vivi intimamente o pânico, horror, medo, a raiva e nem sei se estarei vivo amanhã.

Mudou também sua forma de ver o amor?

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Mudou no sentido de perceber como eu e minha mulher, Marcia, estivemos muito mais próximos na pandemia. Ela é muito forte, comandava a casa, colaborei no que podia, aprendi a estar junto, sentar-me na cozinha enquanto ela preparava um jantarzinho. Fui percebendo que o amor era essa cumplicidade, a lembrança dos bons momentos que vivemos juntos, os momentos que vivemos viajando, passeando, descobrindo coisas que nos ligavam, e percebendo que tínhamos muitas memórias dessa ligação, dessa cumplicidade. Amor é isso, solidariedade, estar ali ao lado, temeroso de que a companheira morresse, temeroso de que eu morresse e a deixasse só, e os filhos, netos, as vidas tinham de ser preservadas, isso era o amor, preservar a vida. E sentir a impotência de viver sem saber se daqui a pouco viria a falta de ar, o sufoco.

O atual governante (vergonha usar esta palavra) e a pandemia escorreram com facilidade do computador: vivíamos – ainda vivemos – o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, gênios do mal e, quando percebi, construía uma trama diabólica

Ignácio de Loyola Brandão, escritor

O romance fecha a tetralogia distópica iniciada por ‘Zero’. Você tinha intenção de realmente escrever essa “quarta parte” ou foi a pandemia que o estimulou?

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Na verdade, nem tinha tido a ideia de uma trilogia, mas vi que havia ligação entre a ditadura de Zero e o sistema que governa o Brasil e o avassala em Não Verás. A distância entre os dois foi de seis anos. Os escândalos de gente como Sérgio Cabral, Valdemar Cordeiro, Geddel, dinheiro nas malas, corrupção desenfreada me levaram ao Desta Terra Nada Vai Sobrar (2018). E o atual governante (vergonha usar esta palavra) e também a pandemia escorreram com facilidade do computador, foi um processo automático, nem precisei usar delírio, imaginação, fantasias: vivíamos - ainda vivemos - o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, magos, gênios do mal e, quando percebi, estava construindo uma trama diabólica. No meio do livro, tive a ideia de que o Brasil estava sendo conduzido para trás, os relógios girando ao contrário, fim da educação, da cultura, da economia, da ciência, das universidades, do saber, mentes dinossáuricas e, quando vi, estava na pré-história, de onde sai a resistência, comandada por quem? Pelas mulheres, e aqui misturo nomes reais, grandes pessoas, gente que fez bem ao Brasil e à humanidade. Esse retorno ao tempo atual pode demorar bilhões de anos, mas é o retorno do homem a sua sobrevivência.

Há, em seus livros, além do bom humor, uma dose de perplexidade com os rumos da civilização contemporânea. Você acredita que haverá motivo de saudade do século 21?

Cada um terá saudades de certos momentos, porque cada um de nós teve bons momentos, apesar de tudo. Um passeio, um lugar especial, uma canção, uma comida, uma paisagem, um perfume de mulher, uma visão, o rosto de uma criança, uma eleição não fraudada, um sorriso, um cheiro, uma lembrança, um gol excepcional, a cena de um filme, o rosto de Claudia Cardinale em Oito e Meio, uma planta crescendo em nossa varanda, um beijo.

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O final é apocalíptico, mas exala um certo otimismo. Ainda temos esperança?

Esperança? O que é isso? Só tenho uma certeza: o homem não é suicida, ainda que, em certos momentos, vacile.

Há algum respiro no livro?

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As viagens do casal principal, as comidas, os passeios, as brigas e reconciliações, a perplexidade, a ironia, o jantar de aniversário de Neluce no restaurante Manacá, do Edinho, em Camburi ao som de Libertango, a visão da Acrópole no crepúsculo de Atenas embalada por litros de Negroni, as rendas de Burano, as ginjinhas tomadas em um barzinho de Óbidos, as “chamadas na chincha” de Neluce ao marido Evaristo.

Capa do livro Deus, O Que Quer de Nós?, de Ignácio Loyola Brandão.  Foto: Global Editora

Evaristo vive o momento mais difícil de sua vida ao enterrar, com as próprias mãos, o corpo de sua mulher, Neluce. O mundo à sua volta vive sob uma pandemia (chamada de Funesta ou Infame) que perdura há anos e, por isso, ele não tem consciência do que é realidade, sentido e expectativa. É sob esse clima distópico que se passa a trama de Deus, O Que Quer de Nós? (Global), novo romance do escritor e colunista do Estadão Ignácio de Loyola Brandão.

Escrito sob a sombra da pandemia, o romance (que terá lançamento no dia 25, na Livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, a partir das 15h) reflete o incômodo do autor com a situação vivida pelo Brasil, inspirando figuras como o presidente identificado como Desatinado ou Destemperado, cujas atitudes causam desamparo, confusão e morte. E, à medida que relembra sua vida ao lado da mulher, Evaristo, isolado em seu apartamento, alterna crises de ansiedade, depressão, ternura e felicidade.

Autor de outros clássicos, como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), Loyola mantém-se, aos 86 anos, como um mestre em criar realidades distópicas, descritas em uma trama ao mesmo tempo crítica e bem-humorada, mas sem perder o humanismo. É o que se observa na entrevista a seguir.

Loyola encerra trama com volta surreal ao tempo dos dinossauros. Foto: Hélvio Romero/Estadão - 6/11/2019

A pandemia mudou seu conceito sobre a morte?

Li muito sobre pestes, epidemias e mortes. O livro de Heloisa Starling (A Bailarina da Morte, escrito com Lilia Schwarcz) sobre a gripe espanhola me impressionou tanto que parei de ler, depois retomei. Era inconcebível tanta gente morrer ao mesmo tempo, caindo nas ruas e não sendo uma guerra. O horror dos campos de concentração me bateu quando visitei Dachau, na Alemanha. Inimaginável aquela indiferença diante de corpos nos fornos crematórios. O primeiro grande choque que tive com uma pessoa querida foi a morte de meu irmão José Maria, aos 7 anos, com uma meningite que o matou em dois dias. Jamais esqueço meu pai trazendo o corpo dele no colo em um táxi e entrando em casa à meia-noite, sem deixar cair uma lágrima, mas varado pela dor. Minha mãe nunca teve medo da morte, era católica, piedosa, tinha certeza de que no máximo passaria pelo purgatório, cumpriria uma pena e iria para o céu. Teve uma morte tranquila. Nunca pensei na possibilidade de morrer. Afastava o pensamento. Quando coroinha em Araraquara, eu gostava de ir com o vigário quando ele era chamado para dar a extrema-unção a alguém. Sabia que a família do morto me daria uma gorjetinha com a qual eu pagava a matinê do cinema aos domingos.

E como vê a morte?

Jovem, repórter de jornal, estava cobrindo uma greve e pancadaria na Central do Brasil. Coisa feia. Em certo momento - eu tinha 23 anos -, o fotógrafo e eu saímos na direção de um entrevero fantástico. Corremos, minha cadernetinha de anotações caiu, abaixei-me para pegar. O fotógrafo estava ao meu lado e disse: olhe para trás. Um jovem militar estava caído com uma bala na testa. A bala seria para mim, não tivesse me abaixado. A segunda vez foi em 1996, quando descobri um aneurisma e passei por uma cirurgia no cérebro. O aneurisma estava para estourar, teria me matado. Há um mês, meu olho direito fechou. Fui para o Einstein, fiquei oito dias, passei por uma infinita bateria de exames. Conclusão: eu estava à beira de um AVC avassalador e estou com diabete. A morte me acompanha - estou me acostumando? Ninguém se acostuma com isso. Quando chegará a minha vez? E sentir a indiferença do governo, ministros da Saúde impiedosos, fazendo tramoias e trapaças, corruptos, desumanos, tanto quanto aquele austríaco (Hitler) que enviava prisioneiros para os crematórios. Vivi intimamente o pânico, horror, medo, a raiva e nem sei se estarei vivo amanhã.

Mudou também sua forma de ver o amor?

Mudou no sentido de perceber como eu e minha mulher, Marcia, estivemos muito mais próximos na pandemia. Ela é muito forte, comandava a casa, colaborei no que podia, aprendi a estar junto, sentar-me na cozinha enquanto ela preparava um jantarzinho. Fui percebendo que o amor era essa cumplicidade, a lembrança dos bons momentos que vivemos juntos, os momentos que vivemos viajando, passeando, descobrindo coisas que nos ligavam, e percebendo que tínhamos muitas memórias dessa ligação, dessa cumplicidade. Amor é isso, solidariedade, estar ali ao lado, temeroso de que a companheira morresse, temeroso de que eu morresse e a deixasse só, e os filhos, netos, as vidas tinham de ser preservadas, isso era o amor, preservar a vida. E sentir a impotência de viver sem saber se daqui a pouco viria a falta de ar, o sufoco.

O atual governante (vergonha usar esta palavra) e a pandemia escorreram com facilidade do computador: vivíamos – ainda vivemos – o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, gênios do mal e, quando percebi, construía uma trama diabólica

Ignácio de Loyola Brandão, escritor

O romance fecha a tetralogia distópica iniciada por ‘Zero’. Você tinha intenção de realmente escrever essa “quarta parte” ou foi a pandemia que o estimulou?

Na verdade, nem tinha tido a ideia de uma trilogia, mas vi que havia ligação entre a ditadura de Zero e o sistema que governa o Brasil e o avassala em Não Verás. A distância entre os dois foi de seis anos. Os escândalos de gente como Sérgio Cabral, Valdemar Cordeiro, Geddel, dinheiro nas malas, corrupção desenfreada me levaram ao Desta Terra Nada Vai Sobrar (2018). E o atual governante (vergonha usar esta palavra) e também a pandemia escorreram com facilidade do computador, foi um processo automático, nem precisei usar delírio, imaginação, fantasias: vivíamos - ainda vivemos - o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, magos, gênios do mal e, quando percebi, estava construindo uma trama diabólica. No meio do livro, tive a ideia de que o Brasil estava sendo conduzido para trás, os relógios girando ao contrário, fim da educação, da cultura, da economia, da ciência, das universidades, do saber, mentes dinossáuricas e, quando vi, estava na pré-história, de onde sai a resistência, comandada por quem? Pelas mulheres, e aqui misturo nomes reais, grandes pessoas, gente que fez bem ao Brasil e à humanidade. Esse retorno ao tempo atual pode demorar bilhões de anos, mas é o retorno do homem a sua sobrevivência.

Há, em seus livros, além do bom humor, uma dose de perplexidade com os rumos da civilização contemporânea. Você acredita que haverá motivo de saudade do século 21?

Cada um terá saudades de certos momentos, porque cada um de nós teve bons momentos, apesar de tudo. Um passeio, um lugar especial, uma canção, uma comida, uma paisagem, um perfume de mulher, uma visão, o rosto de uma criança, uma eleição não fraudada, um sorriso, um cheiro, uma lembrança, um gol excepcional, a cena de um filme, o rosto de Claudia Cardinale em Oito e Meio, uma planta crescendo em nossa varanda, um beijo.

O final é apocalíptico, mas exala um certo otimismo. Ainda temos esperança?

Esperança? O que é isso? Só tenho uma certeza: o homem não é suicida, ainda que, em certos momentos, vacile.

Há algum respiro no livro?

As viagens do casal principal, as comidas, os passeios, as brigas e reconciliações, a perplexidade, a ironia, o jantar de aniversário de Neluce no restaurante Manacá, do Edinho, em Camburi ao som de Libertango, a visão da Acrópole no crepúsculo de Atenas embalada por litros de Negroni, as rendas de Burano, as ginjinhas tomadas em um barzinho de Óbidos, as “chamadas na chincha” de Neluce ao marido Evaristo.

Capa do livro Deus, O Que Quer de Nós?, de Ignácio Loyola Brandão.  Foto: Global Editora

Evaristo vive o momento mais difícil de sua vida ao enterrar, com as próprias mãos, o corpo de sua mulher, Neluce. O mundo à sua volta vive sob uma pandemia (chamada de Funesta ou Infame) que perdura há anos e, por isso, ele não tem consciência do que é realidade, sentido e expectativa. É sob esse clima distópico que se passa a trama de Deus, O Que Quer de Nós? (Global), novo romance do escritor e colunista do Estadão Ignácio de Loyola Brandão.

Escrito sob a sombra da pandemia, o romance (que terá lançamento no dia 25, na Livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, a partir das 15h) reflete o incômodo do autor com a situação vivida pelo Brasil, inspirando figuras como o presidente identificado como Desatinado ou Destemperado, cujas atitudes causam desamparo, confusão e morte. E, à medida que relembra sua vida ao lado da mulher, Evaristo, isolado em seu apartamento, alterna crises de ansiedade, depressão, ternura e felicidade.

Autor de outros clássicos, como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), Loyola mantém-se, aos 86 anos, como um mestre em criar realidades distópicas, descritas em uma trama ao mesmo tempo crítica e bem-humorada, mas sem perder o humanismo. É o que se observa na entrevista a seguir.

Loyola encerra trama com volta surreal ao tempo dos dinossauros. Foto: Hélvio Romero/Estadão - 6/11/2019

A pandemia mudou seu conceito sobre a morte?

Li muito sobre pestes, epidemias e mortes. O livro de Heloisa Starling (A Bailarina da Morte, escrito com Lilia Schwarcz) sobre a gripe espanhola me impressionou tanto que parei de ler, depois retomei. Era inconcebível tanta gente morrer ao mesmo tempo, caindo nas ruas e não sendo uma guerra. O horror dos campos de concentração me bateu quando visitei Dachau, na Alemanha. Inimaginável aquela indiferença diante de corpos nos fornos crematórios. O primeiro grande choque que tive com uma pessoa querida foi a morte de meu irmão José Maria, aos 7 anos, com uma meningite que o matou em dois dias. Jamais esqueço meu pai trazendo o corpo dele no colo em um táxi e entrando em casa à meia-noite, sem deixar cair uma lágrima, mas varado pela dor. Minha mãe nunca teve medo da morte, era católica, piedosa, tinha certeza de que no máximo passaria pelo purgatório, cumpriria uma pena e iria para o céu. Teve uma morte tranquila. Nunca pensei na possibilidade de morrer. Afastava o pensamento. Quando coroinha em Araraquara, eu gostava de ir com o vigário quando ele era chamado para dar a extrema-unção a alguém. Sabia que a família do morto me daria uma gorjetinha com a qual eu pagava a matinê do cinema aos domingos.

E como vê a morte?

Jovem, repórter de jornal, estava cobrindo uma greve e pancadaria na Central do Brasil. Coisa feia. Em certo momento - eu tinha 23 anos -, o fotógrafo e eu saímos na direção de um entrevero fantástico. Corremos, minha cadernetinha de anotações caiu, abaixei-me para pegar. O fotógrafo estava ao meu lado e disse: olhe para trás. Um jovem militar estava caído com uma bala na testa. A bala seria para mim, não tivesse me abaixado. A segunda vez foi em 1996, quando descobri um aneurisma e passei por uma cirurgia no cérebro. O aneurisma estava para estourar, teria me matado. Há um mês, meu olho direito fechou. Fui para o Einstein, fiquei oito dias, passei por uma infinita bateria de exames. Conclusão: eu estava à beira de um AVC avassalador e estou com diabete. A morte me acompanha - estou me acostumando? Ninguém se acostuma com isso. Quando chegará a minha vez? E sentir a indiferença do governo, ministros da Saúde impiedosos, fazendo tramoias e trapaças, corruptos, desumanos, tanto quanto aquele austríaco (Hitler) que enviava prisioneiros para os crematórios. Vivi intimamente o pânico, horror, medo, a raiva e nem sei se estarei vivo amanhã.

Mudou também sua forma de ver o amor?

Mudou no sentido de perceber como eu e minha mulher, Marcia, estivemos muito mais próximos na pandemia. Ela é muito forte, comandava a casa, colaborei no que podia, aprendi a estar junto, sentar-me na cozinha enquanto ela preparava um jantarzinho. Fui percebendo que o amor era essa cumplicidade, a lembrança dos bons momentos que vivemos juntos, os momentos que vivemos viajando, passeando, descobrindo coisas que nos ligavam, e percebendo que tínhamos muitas memórias dessa ligação, dessa cumplicidade. Amor é isso, solidariedade, estar ali ao lado, temeroso de que a companheira morresse, temeroso de que eu morresse e a deixasse só, e os filhos, netos, as vidas tinham de ser preservadas, isso era o amor, preservar a vida. E sentir a impotência de viver sem saber se daqui a pouco viria a falta de ar, o sufoco.

O atual governante (vergonha usar esta palavra) e a pandemia escorreram com facilidade do computador: vivíamos – ainda vivemos – o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, gênios do mal e, quando percebi, construía uma trama diabólica

Ignácio de Loyola Brandão, escritor

O romance fecha a tetralogia distópica iniciada por ‘Zero’. Você tinha intenção de realmente escrever essa “quarta parte” ou foi a pandemia que o estimulou?

Na verdade, nem tinha tido a ideia de uma trilogia, mas vi que havia ligação entre a ditadura de Zero e o sistema que governa o Brasil e o avassala em Não Verás. A distância entre os dois foi de seis anos. Os escândalos de gente como Sérgio Cabral, Valdemar Cordeiro, Geddel, dinheiro nas malas, corrupção desenfreada me levaram ao Desta Terra Nada Vai Sobrar (2018). E o atual governante (vergonha usar esta palavra) e também a pandemia escorreram com facilidade do computador, foi um processo automático, nem precisei usar delírio, imaginação, fantasias: vivíamos - ainda vivemos - o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, magos, gênios do mal e, quando percebi, estava construindo uma trama diabólica. No meio do livro, tive a ideia de que o Brasil estava sendo conduzido para trás, os relógios girando ao contrário, fim da educação, da cultura, da economia, da ciência, das universidades, do saber, mentes dinossáuricas e, quando vi, estava na pré-história, de onde sai a resistência, comandada por quem? Pelas mulheres, e aqui misturo nomes reais, grandes pessoas, gente que fez bem ao Brasil e à humanidade. Esse retorno ao tempo atual pode demorar bilhões de anos, mas é o retorno do homem a sua sobrevivência.

Há, em seus livros, além do bom humor, uma dose de perplexidade com os rumos da civilização contemporânea. Você acredita que haverá motivo de saudade do século 21?

Cada um terá saudades de certos momentos, porque cada um de nós teve bons momentos, apesar de tudo. Um passeio, um lugar especial, uma canção, uma comida, uma paisagem, um perfume de mulher, uma visão, o rosto de uma criança, uma eleição não fraudada, um sorriso, um cheiro, uma lembrança, um gol excepcional, a cena de um filme, o rosto de Claudia Cardinale em Oito e Meio, uma planta crescendo em nossa varanda, um beijo.

O final é apocalíptico, mas exala um certo otimismo. Ainda temos esperança?

Esperança? O que é isso? Só tenho uma certeza: o homem não é suicida, ainda que, em certos momentos, vacile.

Há algum respiro no livro?

As viagens do casal principal, as comidas, os passeios, as brigas e reconciliações, a perplexidade, a ironia, o jantar de aniversário de Neluce no restaurante Manacá, do Edinho, em Camburi ao som de Libertango, a visão da Acrópole no crepúsculo de Atenas embalada por litros de Negroni, as rendas de Burano, as ginjinhas tomadas em um barzinho de Óbidos, as “chamadas na chincha” de Neluce ao marido Evaristo.

Capa do livro Deus, O Que Quer de Nós?, de Ignácio Loyola Brandão.  Foto: Global Editora

Evaristo vive o momento mais difícil de sua vida ao enterrar, com as próprias mãos, o corpo de sua mulher, Neluce. O mundo à sua volta vive sob uma pandemia (chamada de Funesta ou Infame) que perdura há anos e, por isso, ele não tem consciência do que é realidade, sentido e expectativa. É sob esse clima distópico que se passa a trama de Deus, O Que Quer de Nós? (Global), novo romance do escritor e colunista do Estadão Ignácio de Loyola Brandão.

Escrito sob a sombra da pandemia, o romance (que terá lançamento no dia 25, na Livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, a partir das 15h) reflete o incômodo do autor com a situação vivida pelo Brasil, inspirando figuras como o presidente identificado como Desatinado ou Destemperado, cujas atitudes causam desamparo, confusão e morte. E, à medida que relembra sua vida ao lado da mulher, Evaristo, isolado em seu apartamento, alterna crises de ansiedade, depressão, ternura e felicidade.

Autor de outros clássicos, como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), Loyola mantém-se, aos 86 anos, como um mestre em criar realidades distópicas, descritas em uma trama ao mesmo tempo crítica e bem-humorada, mas sem perder o humanismo. É o que se observa na entrevista a seguir.

Loyola encerra trama com volta surreal ao tempo dos dinossauros. Foto: Hélvio Romero/Estadão - 6/11/2019

A pandemia mudou seu conceito sobre a morte?

Li muito sobre pestes, epidemias e mortes. O livro de Heloisa Starling (A Bailarina da Morte, escrito com Lilia Schwarcz) sobre a gripe espanhola me impressionou tanto que parei de ler, depois retomei. Era inconcebível tanta gente morrer ao mesmo tempo, caindo nas ruas e não sendo uma guerra. O horror dos campos de concentração me bateu quando visitei Dachau, na Alemanha. Inimaginável aquela indiferença diante de corpos nos fornos crematórios. O primeiro grande choque que tive com uma pessoa querida foi a morte de meu irmão José Maria, aos 7 anos, com uma meningite que o matou em dois dias. Jamais esqueço meu pai trazendo o corpo dele no colo em um táxi e entrando em casa à meia-noite, sem deixar cair uma lágrima, mas varado pela dor. Minha mãe nunca teve medo da morte, era católica, piedosa, tinha certeza de que no máximo passaria pelo purgatório, cumpriria uma pena e iria para o céu. Teve uma morte tranquila. Nunca pensei na possibilidade de morrer. Afastava o pensamento. Quando coroinha em Araraquara, eu gostava de ir com o vigário quando ele era chamado para dar a extrema-unção a alguém. Sabia que a família do morto me daria uma gorjetinha com a qual eu pagava a matinê do cinema aos domingos.

E como vê a morte?

Jovem, repórter de jornal, estava cobrindo uma greve e pancadaria na Central do Brasil. Coisa feia. Em certo momento - eu tinha 23 anos -, o fotógrafo e eu saímos na direção de um entrevero fantástico. Corremos, minha cadernetinha de anotações caiu, abaixei-me para pegar. O fotógrafo estava ao meu lado e disse: olhe para trás. Um jovem militar estava caído com uma bala na testa. A bala seria para mim, não tivesse me abaixado. A segunda vez foi em 1996, quando descobri um aneurisma e passei por uma cirurgia no cérebro. O aneurisma estava para estourar, teria me matado. Há um mês, meu olho direito fechou. Fui para o Einstein, fiquei oito dias, passei por uma infinita bateria de exames. Conclusão: eu estava à beira de um AVC avassalador e estou com diabete. A morte me acompanha - estou me acostumando? Ninguém se acostuma com isso. Quando chegará a minha vez? E sentir a indiferença do governo, ministros da Saúde impiedosos, fazendo tramoias e trapaças, corruptos, desumanos, tanto quanto aquele austríaco (Hitler) que enviava prisioneiros para os crematórios. Vivi intimamente o pânico, horror, medo, a raiva e nem sei se estarei vivo amanhã.

Mudou também sua forma de ver o amor?

Mudou no sentido de perceber como eu e minha mulher, Marcia, estivemos muito mais próximos na pandemia. Ela é muito forte, comandava a casa, colaborei no que podia, aprendi a estar junto, sentar-me na cozinha enquanto ela preparava um jantarzinho. Fui percebendo que o amor era essa cumplicidade, a lembrança dos bons momentos que vivemos juntos, os momentos que vivemos viajando, passeando, descobrindo coisas que nos ligavam, e percebendo que tínhamos muitas memórias dessa ligação, dessa cumplicidade. Amor é isso, solidariedade, estar ali ao lado, temeroso de que a companheira morresse, temeroso de que eu morresse e a deixasse só, e os filhos, netos, as vidas tinham de ser preservadas, isso era o amor, preservar a vida. E sentir a impotência de viver sem saber se daqui a pouco viria a falta de ar, o sufoco.

O atual governante (vergonha usar esta palavra) e a pandemia escorreram com facilidade do computador: vivíamos – ainda vivemos – o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, gênios do mal e, quando percebi, construía uma trama diabólica

Ignácio de Loyola Brandão, escritor

O romance fecha a tetralogia distópica iniciada por ‘Zero’. Você tinha intenção de realmente escrever essa “quarta parte” ou foi a pandemia que o estimulou?

Na verdade, nem tinha tido a ideia de uma trilogia, mas vi que havia ligação entre a ditadura de Zero e o sistema que governa o Brasil e o avassala em Não Verás. A distância entre os dois foi de seis anos. Os escândalos de gente como Sérgio Cabral, Valdemar Cordeiro, Geddel, dinheiro nas malas, corrupção desenfreada me levaram ao Desta Terra Nada Vai Sobrar (2018). E o atual governante (vergonha usar esta palavra) e também a pandemia escorreram com facilidade do computador, foi um processo automático, nem precisei usar delírio, imaginação, fantasias: vivíamos - ainda vivemos - o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, magos, gênios do mal e, quando percebi, estava construindo uma trama diabólica. No meio do livro, tive a ideia de que o Brasil estava sendo conduzido para trás, os relógios girando ao contrário, fim da educação, da cultura, da economia, da ciência, das universidades, do saber, mentes dinossáuricas e, quando vi, estava na pré-história, de onde sai a resistência, comandada por quem? Pelas mulheres, e aqui misturo nomes reais, grandes pessoas, gente que fez bem ao Brasil e à humanidade. Esse retorno ao tempo atual pode demorar bilhões de anos, mas é o retorno do homem a sua sobrevivência.

Há, em seus livros, além do bom humor, uma dose de perplexidade com os rumos da civilização contemporânea. Você acredita que haverá motivo de saudade do século 21?

Cada um terá saudades de certos momentos, porque cada um de nós teve bons momentos, apesar de tudo. Um passeio, um lugar especial, uma canção, uma comida, uma paisagem, um perfume de mulher, uma visão, o rosto de uma criança, uma eleição não fraudada, um sorriso, um cheiro, uma lembrança, um gol excepcional, a cena de um filme, o rosto de Claudia Cardinale em Oito e Meio, uma planta crescendo em nossa varanda, um beijo.

O final é apocalíptico, mas exala um certo otimismo. Ainda temos esperança?

Esperança? O que é isso? Só tenho uma certeza: o homem não é suicida, ainda que, em certos momentos, vacile.

Há algum respiro no livro?

As viagens do casal principal, as comidas, os passeios, as brigas e reconciliações, a perplexidade, a ironia, o jantar de aniversário de Neluce no restaurante Manacá, do Edinho, em Camburi ao som de Libertango, a visão da Acrópole no crepúsculo de Atenas embalada por litros de Negroni, as rendas de Burano, as ginjinhas tomadas em um barzinho de Óbidos, as “chamadas na chincha” de Neluce ao marido Evaristo.

Capa do livro Deus, O Que Quer de Nós?, de Ignácio Loyola Brandão.  Foto: Global Editora

Evaristo vive o momento mais difícil de sua vida ao enterrar, com as próprias mãos, o corpo de sua mulher, Neluce. O mundo à sua volta vive sob uma pandemia (chamada de Funesta ou Infame) que perdura há anos e, por isso, ele não tem consciência do que é realidade, sentido e expectativa. É sob esse clima distópico que se passa a trama de Deus, O Que Quer de Nós? (Global), novo romance do escritor e colunista do Estadão Ignácio de Loyola Brandão.

Escrito sob a sombra da pandemia, o romance (que terá lançamento no dia 25, na Livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, a partir das 15h) reflete o incômodo do autor com a situação vivida pelo Brasil, inspirando figuras como o presidente identificado como Desatinado ou Destemperado, cujas atitudes causam desamparo, confusão e morte. E, à medida que relembra sua vida ao lado da mulher, Evaristo, isolado em seu apartamento, alterna crises de ansiedade, depressão, ternura e felicidade.

Autor de outros clássicos, como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), Loyola mantém-se, aos 86 anos, como um mestre em criar realidades distópicas, descritas em uma trama ao mesmo tempo crítica e bem-humorada, mas sem perder o humanismo. É o que se observa na entrevista a seguir.

Loyola encerra trama com volta surreal ao tempo dos dinossauros. Foto: Hélvio Romero/Estadão - 6/11/2019

A pandemia mudou seu conceito sobre a morte?

Li muito sobre pestes, epidemias e mortes. O livro de Heloisa Starling (A Bailarina da Morte, escrito com Lilia Schwarcz) sobre a gripe espanhola me impressionou tanto que parei de ler, depois retomei. Era inconcebível tanta gente morrer ao mesmo tempo, caindo nas ruas e não sendo uma guerra. O horror dos campos de concentração me bateu quando visitei Dachau, na Alemanha. Inimaginável aquela indiferença diante de corpos nos fornos crematórios. O primeiro grande choque que tive com uma pessoa querida foi a morte de meu irmão José Maria, aos 7 anos, com uma meningite que o matou em dois dias. Jamais esqueço meu pai trazendo o corpo dele no colo em um táxi e entrando em casa à meia-noite, sem deixar cair uma lágrima, mas varado pela dor. Minha mãe nunca teve medo da morte, era católica, piedosa, tinha certeza de que no máximo passaria pelo purgatório, cumpriria uma pena e iria para o céu. Teve uma morte tranquila. Nunca pensei na possibilidade de morrer. Afastava o pensamento. Quando coroinha em Araraquara, eu gostava de ir com o vigário quando ele era chamado para dar a extrema-unção a alguém. Sabia que a família do morto me daria uma gorjetinha com a qual eu pagava a matinê do cinema aos domingos.

E como vê a morte?

Jovem, repórter de jornal, estava cobrindo uma greve e pancadaria na Central do Brasil. Coisa feia. Em certo momento - eu tinha 23 anos -, o fotógrafo e eu saímos na direção de um entrevero fantástico. Corremos, minha cadernetinha de anotações caiu, abaixei-me para pegar. O fotógrafo estava ao meu lado e disse: olhe para trás. Um jovem militar estava caído com uma bala na testa. A bala seria para mim, não tivesse me abaixado. A segunda vez foi em 1996, quando descobri um aneurisma e passei por uma cirurgia no cérebro. O aneurisma estava para estourar, teria me matado. Há um mês, meu olho direito fechou. Fui para o Einstein, fiquei oito dias, passei por uma infinita bateria de exames. Conclusão: eu estava à beira de um AVC avassalador e estou com diabete. A morte me acompanha - estou me acostumando? Ninguém se acostuma com isso. Quando chegará a minha vez? E sentir a indiferença do governo, ministros da Saúde impiedosos, fazendo tramoias e trapaças, corruptos, desumanos, tanto quanto aquele austríaco (Hitler) que enviava prisioneiros para os crematórios. Vivi intimamente o pânico, horror, medo, a raiva e nem sei se estarei vivo amanhã.

Mudou também sua forma de ver o amor?

Mudou no sentido de perceber como eu e minha mulher, Marcia, estivemos muito mais próximos na pandemia. Ela é muito forte, comandava a casa, colaborei no que podia, aprendi a estar junto, sentar-me na cozinha enquanto ela preparava um jantarzinho. Fui percebendo que o amor era essa cumplicidade, a lembrança dos bons momentos que vivemos juntos, os momentos que vivemos viajando, passeando, descobrindo coisas que nos ligavam, e percebendo que tínhamos muitas memórias dessa ligação, dessa cumplicidade. Amor é isso, solidariedade, estar ali ao lado, temeroso de que a companheira morresse, temeroso de que eu morresse e a deixasse só, e os filhos, netos, as vidas tinham de ser preservadas, isso era o amor, preservar a vida. E sentir a impotência de viver sem saber se daqui a pouco viria a falta de ar, o sufoco.

O atual governante (vergonha usar esta palavra) e a pandemia escorreram com facilidade do computador: vivíamos – ainda vivemos – o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, gênios do mal e, quando percebi, construía uma trama diabólica

Ignácio de Loyola Brandão, escritor

O romance fecha a tetralogia distópica iniciada por ‘Zero’. Você tinha intenção de realmente escrever essa “quarta parte” ou foi a pandemia que o estimulou?

Na verdade, nem tinha tido a ideia de uma trilogia, mas vi que havia ligação entre a ditadura de Zero e o sistema que governa o Brasil e o avassala em Não Verás. A distância entre os dois foi de seis anos. Os escândalos de gente como Sérgio Cabral, Valdemar Cordeiro, Geddel, dinheiro nas malas, corrupção desenfreada me levaram ao Desta Terra Nada Vai Sobrar (2018). E o atual governante (vergonha usar esta palavra) e também a pandemia escorreram com facilidade do computador, foi um processo automático, nem precisei usar delírio, imaginação, fantasias: vivíamos - ainda vivemos - o horror à nossa volta. Foi só usar o absurdo kafkiano, orwelliano, swiftiano, evocar vilões, magos, gênios do mal e, quando percebi, estava construindo uma trama diabólica. No meio do livro, tive a ideia de que o Brasil estava sendo conduzido para trás, os relógios girando ao contrário, fim da educação, da cultura, da economia, da ciência, das universidades, do saber, mentes dinossáuricas e, quando vi, estava na pré-história, de onde sai a resistência, comandada por quem? Pelas mulheres, e aqui misturo nomes reais, grandes pessoas, gente que fez bem ao Brasil e à humanidade. Esse retorno ao tempo atual pode demorar bilhões de anos, mas é o retorno do homem a sua sobrevivência.

Há, em seus livros, além do bom humor, uma dose de perplexidade com os rumos da civilização contemporânea. Você acredita que haverá motivo de saudade do século 21?

Cada um terá saudades de certos momentos, porque cada um de nós teve bons momentos, apesar de tudo. Um passeio, um lugar especial, uma canção, uma comida, uma paisagem, um perfume de mulher, uma visão, o rosto de uma criança, uma eleição não fraudada, um sorriso, um cheiro, uma lembrança, um gol excepcional, a cena de um filme, o rosto de Claudia Cardinale em Oito e Meio, uma planta crescendo em nossa varanda, um beijo.

O final é apocalíptico, mas exala um certo otimismo. Ainda temos esperança?

Esperança? O que é isso? Só tenho uma certeza: o homem não é suicida, ainda que, em certos momentos, vacile.

Há algum respiro no livro?

As viagens do casal principal, as comidas, os passeios, as brigas e reconciliações, a perplexidade, a ironia, o jantar de aniversário de Neluce no restaurante Manacá, do Edinho, em Camburi ao som de Libertango, a visão da Acrópole no crepúsculo de Atenas embalada por litros de Negroni, as rendas de Burano, as ginjinhas tomadas em um barzinho de Óbidos, as “chamadas na chincha” de Neluce ao marido Evaristo.

Capa do livro Deus, O Que Quer de Nós?, de Ignácio Loyola Brandão.  Foto: Global Editora

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