Por volta das 14h de quase todos os dias, o criador de conteúdo Victor Almeida, 30, abre uma live na plataforma de vídeos Twitch para realizar os chamados “sprints de leitura”.
Mais conhecido como Geek Freak, ou Geefe, ele fica cerca de uma hora lendo em silêncio, ao vivo, enquanto uma música leve toca ao fundo. Depois, ele passa 15 minutos interagindo com os espectadores por meio de um chat. Esse ciclo se repete três vezes em um dia “comum”.
“Sprint”, em inglês, significa algo como correr em alta velocidade em uma distância curta. Quando falamos de um “sprint de leitura” ou “sprint de produtividade”, no entanto, estamos nos referindo a um tempo definido para manter o foco em apenas uma atividade.
Esse é objetivo das lives realizadas por Victor e por outros influenciadores literários em plataformas como o YouTube e, com ainda mais força, na Twitch: reservar sua atenção para a leitura de um livro e, ao mesmo tempo, conversar e trocar experiências com outros leitores.
A atividade virou febre entre a comunidade literária da internet no auge da pandemia de covid-19, cresceu com a consolidação da Twitch no Brasil e sobrevive até hoje, impulsionando criadores de conteúdo e leitores ávidos.
Neste texto, você vai saber:
- Como funcionam os “sprints de leitura”
- Qual o apelo para quem assiste e como eles ajudam com o foco
- Quem são os principais influenciadores que realizam sprints e suas histórias
- Como funciona a monetização desse conteúdo
Veja um exemplo de sprint abaixo:
Leia aí que eu leio aqui
Tamirez Santos, do canal Resenhando Sonhos, já conta com mais de 20 mil seguidores na plataforma. Assim como outros, a streamer - como são chamados os criadores de conteúdo que fazem lives - começou no Youtube, onde já possui quase 100 mil inscritos. Hoje, ela divide o seu conteúdo com a Twitch.
“De forma geral, independentemente do contexto, o que aconteceu com esse movimento foi que conseguimos nos aproximar das pessoas que acompanhavam a gente de uma forma diferente”, ela frisa.
Tamirez Santos
A história de Victor Almeida é parecida. O influenciador faz vídeos sobre literatura para o YouTube há mais de dez anos. Ele lembra que, antes mesmo da pandemia, a ideia de ler em conjunto com os seguidores já começou a circular entre os produtores de conteúdo.
“A gente começou fazendo essas lives lá no YouTube mesmo. No começo, juntávamos vários amigos e abríamos lives quase todos os dias com cinco a dez pessoas. Era muito divertido”, lembra.
Com a chegada da pandemia, parte desses influenciadores começou a realizar as próprias lives. Foi nesse momento que Victor começou a “migrar” para a Twitch. Segundo ele , a plataforma “é mais focada em lives” e oferece melhor interação com o público. Victor realiza os sprints quase diariamente.
No começo, ele sentia dificuldade de se concentrar na leitura sabendo que tinham pessoas o assistindo. “Eu ficava mais focado no chat, pensando no que estavam conversando e ficava bastante distraído. Mas isso é algo que, junto com o pessoal, conseguimos achar um meio termo”.
Com o tempo, ele se acostumou: “Hoje em dia, vejo mais como uma companhia. Como se tivessem outras pessoas aqui comigo, trabalhando ou lendo. Eu estou em evidência na câmera, mas sei que está todo mundo ali comigo.”
Victor também cita o fato de que as lives têm um público menor do que outras redes. “A gente tem, hoje em dia, muita dificuldade de atingir o público com conteúdos mais longos por causa do TikTok, Instagram e essa onda de conteúdos curtos. O YouTube ainda tem um meio termo”, explica.
O influenciador diz que as transmissões ao vivo “afunilam” ainda mais o público, já que atraem pessoas que querem passar o dia “ao lado” de quem faz a live. “Como a proposta é justamente a produtividade, a gente acaba realmente ficando mais de quatro horas [ao vivo] dependendo do dia”.
O benefício disso é criar uma proximidade maior com quem assiste. “É totalmente diferente de um conteúdo que a pessoa simplesmente consome ‘rapidinho’. Nas lives, estamos conversando em tempo real”, diz.
“É realmente uma troca muito mais próxima e muito mais legal. Cria um senso de comunidade ainda maior do que os conteúdos já pré-prontos, porque a gente pode trocar de fato essa ideia de falar sobre os livros e de comentar sobre assuntos do dia a dia também”, completa.
Fidelidade
Mariana Paixão, 32, é um exemplo da ascensão dessa comunidade. Seguidora fiel de Tamirez desde quando ela começou a produzir conteúdo no YouTube, Mariana agora é moderadora do seu canal.
“Somente o formato de sprints já ajuda, mas também ter companhia, fazer os sprints sabendo que quando terminar, a Tami vai perguntar: ‘como foram de sprint?’, e todo mundo vai compartilhar algo”, diz.
Mariana Paixão
“Eu já acompanhava a Tami no Youtube antes de passar a acompanhá-la na Twitch, então foi só uma continuação da fidelidade”, pontua. “Hoje fica até mais difícil fazer as tarefas nos dias em que não tem live.”
Mariana, aliás, não é a única a sentir essa conexão com um influenciador. A proximidade que os sprints de leitura proporcionam é o principal fator que torna o fenômeno popular.
“[Existe] esse sentimento de querer - e me sentir parte - de um grupo de pessoas que compartilham do mesmo desejo meu de ler cada vez mais, conhecer novas histórias e entrar em novos mundo”, explica a professora de inglês Anna Beatriz, de 25 anos.
“Quando surgiu o Booktube [apelido dado ao nicho de livros no Youtube], eu amei porque eu tinha um grupo de pessoas que adoravam ler como eu, indicavam e incentivavam as leituras”, comenta.
Assim como Mariana, Anna percebe que esses minutos de foco são positivos para o seu rendimento. “No geral, o foco melhora, é mais assertivo, consigo manter por mais tempo a minha leitura e me prender no livro”, argumenta.
Para a jornalista Bruna Tavares, 21, por ser uma plataforma de interação, a Twitch garante uma conexão mais verdadeira. “Gosto desse contato de criadores de conteúdo que comentam e estão sempre de olho no público. Sem contar as coisas que promovem, como [um sprint que dura] o dia inteiro.”
Leitura contra ansiedade
A influenciadora Bel Rodrigues, 29, é um dos principais nomes da Twitch. Ela atingiu recentemente mais de oito mil assinantes na plataforma e entrou na lista dos 10 streamers brasileiros com mais inscritos pagos no canal.
Na internet desde 2013, começou no YouTube com resenhas de livros e viralizou com as lives de leitura conjunta, no qual Bel ficava por três horas, ao vivo, lendo com os seguidores. “Queria mostrar minhas reações diante de um livro em específico e aí veio a ideia de ler ao vivo”, conta Bel.
Hoje, o canal já conta com quase um milhão de inscritos. Os sprints, por sua vez, passaram a acontecer na Twitch.
“Sempre almejei a Twitch por conta da interação que a plataforma proporciona, além de abrir caminhos em outros nichos, como o de jogos, que eu gosto bastante”, diz. “Como minha comunidade é super fiel, vários migraram junto comigo. Mas o começo foi cheio de receio da minha parte”, desabafa.
Lívia Golçalves, 20, conhecida na internet como Livresenhas, conta que os sprints a ajudaram com sua ansiedade.
“Eu tenho muito problema de atenção e geralmente a ansiedade me faz criar uma relação muito mais complexa do que necessário com minha grande paixão: a leitura”, explica. “Foi a melhor maneira de administrar minha própria ansiedade e me incentivar a ler também, foi um ambiente de ajuda mútua”.
Ao contrário da maioria dos influenciadores da Twitch, Lívia não começou no YouTube. Ela produzia conteúdo sobre livros em seu Instagram, onde conta com mais de 158 mil seguidores atualmente, e decidiu investir nas lives de leitura.
“No meu canal, geralmente fazemos lives fixas duas vezes na semana, segunda e quinta no final do dia. Nossos sprints variam entre 30 e 40 minutos, mas sempre animamos e acabo juntando dois, então em uma live costumamos ler um total de duas horas”, diz.
Como se ganha dinheiro?
Os influenciadores têm fontes principais de renda:
- Pagamento das próprias plataformas (Twitch e YouTube), principalmente por anúncios veiculados nos vídeos.
- Financiamento coletivo entre os seguidores, que recebem recompensas especiais.
- Publicidade e parceria com marcas, especialmente editoras e lojas.
A streamer Andrea Bistafa, 35, construiu sua comunidade com base nos sprints de leitura e classifica a atividade como seu trabalho oficial.
“Meu público hoje é uma grande mistura de comunidades como leitores, gamers e o pessoal que gosta de debater assuntos sociais. A maior parte deles está comigo desde manhã até o final do dia, e mesmo variando o conteúdo, os sprints ainda são o que a minha comunidade mais curte e consome”, diz.
Andrea conta que toda a sua rotina diária é construída com base nos sprints e que eles a ajudam a realizar diversas tarefas para além da leitura. “Eu sou mãe e até a ajuda no dever de casa do meu filho é realizado durante os primeiros sprints do dia”, conta.
Para a influenciadora, que trabalha exclusivamente com a plataforma, as transmissões no Twitch representam 80% de sua renda mensal. A média é semelhante para Bel Rodrigues, que fala em 75%. “Tenho três canais no Youtube (Bel Rodrigues, Bel no Controle e Cortes da Bel), que cumprem boa parte da porcentagem restante.”
Para Victor Almeida, Tamirez Santos e Livía Gonçalves, que produzem bastante conteúdo para outras redes, essa média é bem menor: 15%, 30% e 30%, respectivamente.
Esse valor vem dos anúncios que passam antes das lives, do valor pago por assinantes da Twitch e pelos “bits”, forma com a qual os espectadores enviam um valor ao vivo em troca de alguma recompensa, como ter sua mensagem em destaque na tela.
Anadege Freitas, Diretora de Conteúdo e Parcerias da Twitch Brasil, explica a monetização do conteúdo na plataforma ocorre por meio do programa de Afiliados e do programa de Parceiros.
Segundo ela, “os criadores de conteúdo precisam cumprir certos requisitos, como atender a um determinado número mínimo de seguidores e horas de transmissão, para se qualificarem a esses programas”
“Uma vez aceitos, eles podem receber doações de seus espectadores, receber uma parte da receita das assinaturas de seus seguidores, exibir anúncios e até mesmo negociar acordos de patrocínio com marcas”, explica.
Outras formas de renda
Victor e Tamirez também possuem um projeto de apoiadores no Catarse, uma plataforma brasileira de financiamento coletivo. Os seguidores mais ávidos dos influenciadores pagam um valor mensal, que varia entre R$ 10 e R$ 90, para terem acesso a “recompensas” especiais.
No caso de Victor, por exemplo, essas recompensas vão de conteúdos exclusivos, acesso antecipado aos vídeos do Youtube, grupo de membros no Whatsapp, leituras coletivas e sorteios a até receber um livro lido e anotado por ele.
O streamer conta que somente o valor do Catarse representa aproximadamente 50% de sua renda, dependendo do mês. Até o fechamento desta reportagem, ele contava com 206 assinantes, que somam um valor de R$ 7.380. Já o projeto de Tamirez tinha 171 pessoas e arrecadava R$ 6.170 por mês.
Outra forma - bastante rentável, mas também mais incerta - de fazer o dinheiro entrar é por meio de publicidade e parcerias com diversas marcas, principalmente editoras ou empresas que comercializam livros.
As ações podem ser feitas de diversas formas: durante as lives, em publicações nas redes sociais, vídeos no Youtube e no TikTok, entre outros. Neste mês de julho, por exemplo, Victor vai realizar a Maratona Literária de Inverno, evento que faz anualmente, e contará com o patrocínio de um aplicativo usado para a leitura de ebooks.
“A maratona literária é um evento que acontece duas vezes ao ano, em janeiro em julho, desde 2013. Hoje, ela se tornou o maior evento de maratona literária do Brasil. A gente tem cerca de 10 a 12 mil participantes por edição”, explica Victor.
A maratona organizada pelo influenciador ocorre durante duas semanas e tem um tema diferente em toda edição, com desafios para incentivar os leitores. “É um momento em que a gente se propõe a ler mais do que a gente está acostumado ou destinar o nosso foco à leitura”. Para se inscrever, basta acessar o site do evento.
*Julia é estagiária sob supervisão de Charlise Morais