Em um conto de três páginas sem título, Ernest Hemingway coloca F. Scott Fitzgerald como um pugilista aguerrido que deixa o ringue espancado e desfigurado, mas que acaba vitorioso.
Ele esboça um romance que nunca escreverá, A New Slain Knight, chamando-o de “romance picaresco para a América” que seguirá seu protagonista através de uma fuga da prisão, um assalto a banco e traições no estilo noir.
Vestindo seu uniforme da Cruz Vermelha americana e sorrindo para a câmera, Hemingway, com 18 anos, se aconchega em uma trincheira com soldados italianos durante a Primeira Guerra Mundial, poucos dias antes de ser ferido por um morteiro e tiros de metralhadora, uma experiência que o inspirou a escrever “Adeus às Armas”.
E em uma anotação de 1926 em um caderno, há uma meditação de três páginas sobre morte e suicídio – 35 anos antes de ele tirar a própria vida.
Os itens, parte do esconderijo mais significativo de materiais de Hemingway descobertos em 60 anos, estão em um novo arquivo recentemente aberto a acadêmicos e ao público na Penn State University. Chamado de Toby and Betty Bruce Collection of Ernest Hemingway, o material inclui quatro contos inéditos, rascunhos de manuscritos, centenas de fotografias, pacotes de correspondência e caixas de objetos pessoais que, segundo especialistas, devem remodelar a percepção pública e acadêmica de um artista cuja vida e trabalho definiram uma era.
Carl Eby, presidente da Ernest Hemingway Foundation and Society, disse que ficou “verdadeiramente impressionado” com a abundância de materiais de um artista mais conhecido pela escrita tensa e discreta de obras como “O Sol Também se Levanta” e “O Velho e o Mar”, relatos da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Civil Espanhola, e sua personalidade grandiosa como um homem que gostava de estar ao ar livre, beber muito e que trabalhava duro.
“Hemingway reinventou a prosa americana moderna e o conto. Seus melhores trabalhos são profundamente comoventes e ricos em significado e complexidade psicológica”, disse Eby, professor de inglês na Appalachian State University. “Ele parecia viver em uma escala épica, em tempos fascinantes, em lugares fascinantes, e como ele foi mitificado durante sua própria vida, sua imagem pública até hoje – para o bem ou para o mal – mantém todo o fascínio e poder do mítico. Há material novo suficiente aqui para gerar novos insights biográficos e interpretativos nos próximos anos.”
Durante anos, a maioria dos estudiosos de Hemingway só conseguia salivar sobre a Bruce collection, incertos de seu conteúdo exato ou mesmo de sua localização. O que eles sabiam era que em 1939, depois que seu segundo casamento desmoronou, Hemingway, um notório acumulador, deixou seus pertences no depósito do Sloppy Joe’s, seu bar favorito em Key West, na Flórida. Ele nunca mais voltou para buscá-los.
Após a morte de Hemingway, sua quarta esposa, Mary Welsh Hemingway, analisou o material, empacotou o que queria e deu o resto para amigos de longa data, Betty e Telly Otto Bruce, conhecidos por seus amigos como Toby. Toby Bruce fez parte do círculo íntimo de Hemingway por anos, não apenas como seu braço direito, mas também como empreiteiro, mecânico e motorista ocasional.
O tesouro de materiais passou décadas sem ser catalogado em caixas de papelão e recipientes de armazenamento de munição, sobrevivendo a furacões e inundações. Anos atrás, o filho de Betty e Toby, Benjamin Bruce (conhecido como Dink) e um historiador local, Brewster Chamberlin, começaram a fazer um inventário consultando a estudiosa de Hemingway, Sandra Spanier. Foi aqui, entre bilhetes de touradas, cheques, recortes de jornais e cartas do seu advogado, familiares e amigos como o escritor John Dos Passos e os artistas Joan Miró e Waldo Peirce, que descobriram um caderno castanho manchado. Dentro estava o primeiro conto conhecido de Hemingway, sobre uma viagem fictícia à Irlanda, escrito quando ele tinha 10 anos.
Quando essa descoberta foi revelada em 2017, Dink Bruce disse ao The New York Times que esperava que a coleção de sua família encontrasse um lar de arquivo permanente. Spanier, editora geral do Hemingway Letters Project e professora de inglês na Penn State, também pensava assim. Nos cinco anos seguintes, ela trabalhou para trazer o arquivo para a universidade, que o comprou em outubro de 2021 por uma quantia não revelada.
“Eu senti uma responsabilidade para fazer isso acontecer, tanto como alguém que tinha um carinho e respeito incrível por Dink e Brewster, mas também como estudiosa”, disse Spanier. “Esta é uma mina de ouro para um estudioso.”
O arquivo abrange a vida de Hemingway e se estende até além de sua morte. Em uma caixa, rotulada “Tesouros do bebê Ernest” com a caligrafia de sua mãe, está uma mecha de seu cabelo, suas botinhas de couro e a cabeça de seu brinquedo favorito, “Doggie”, com o qual ele dormiu até os 6 anos e meio. Em outra pasta, um telegrama pede a Toby Bruce que carregue o caixão no funeral do autor. Há também o uniforme da Cruz Vermelha americana de Hemingway – aquele que ele não estava usando quando foi ferido – que está em uma caixa destinada a um vestido de noiva.
“Na condição de ser apenas uma fã, me dá calafrios tocar seu uniforme da Primeira Guerra Mundial ou folhear suas cartas”, disse Spanier. “Só de tocar no papel, há uma conexão elétrica que você sente pessoalmente, bem como intelectualmente enquanto estudiosa.”
Em uma carta recém-descoberta do verão de 1945, Hemingway escreve a Bruce sobre seu filho Jack, apelidado de Bumby, que havia sido recentemente libertado de um campo de prisioneiros de guerra alemão durante a Segunda Guerra Mundial.
“Ele está o.k. As feridas estavam muito feias. Havia uma no ombro em que você poderia enfiar o punho. Outra no antebraço e outra no ombro”, escreveu Hemingway. “Ele ficou seis meses só tomando sopa e passando um tempo infernal.”
A peça mais assombrosa do arquivo vem de um caderno datado de 6 de março de 1926.
“Quando me sinto deprimido, gosto de pensar na morte e nas várias maneiras de morrer e acho que provavelmente a melhor maneira, a menos que você possa achar uma maneira de morrer enquanto dorme, seria saltar de um transatlântico à noite”, escreveu Hemingway, então com 26 anos e a apenas sete meses de publicar seu romance de sucesso “O Sol Também se Levanta”. Enquanto o acadêmico Carlos Baker citou esta seção em sua biografia de 1969, Ernest Hemingway: A Life Story, o próprio caderno ficou escondido por anos. O que Baker não incluiu em seu livro é igualmente revelador.
Hemingway, em sua caligrafia cerrada, explora várias formas de morrer em três páginas, escrevendo: “Por tantos anos tive medo da morte e é muito confortável ficar sem esse medo. Claro que pode voltar a qualquer momento.”
Tudo isso fica moderado, talvez, por uma anotação a lápis que Hemingway escreveu mais tarde: “Isso é [palavrão]”.
Hemingway escreveu essas passagens dois anos antes de seu pai se matar, sugerindo que as próprias ideias suicidas do autor começaram mais cedo e talvez fossem mais profundas do que os estudiosos sabiam anteriormente. Em 1961, o escritor vencedor do Pulitzer e do Prêmio Nobel se matou com uma espingarda em sua casa em Ketchum, Idaho, poucas semanas antes de seu 62º aniversário.
A coleção não é inteiramente sombria.
Em uma série de fotos de fevereiro de 1936, Hemingway é o juiz de adolescentes suados em uma luta de boxe durante uma confraternização entre cubanos e americanos para a “Semana da Alegria” de Key West, comemorando a independência cubana. Em outra, ele sorri em uma foto sincera com o colega escritor Sinclair Lewis (Babbitt, Elmer Gantry) durante um encontro casual em 1940. Ele pode ser visto radiante nos negativos de seu casamento com sua primeira esposa, Elizabeth Hadley Richardson , em 3 de setembro de 1921, em Horton Bay, Michigan.
A coleção não só permite o acesso a coisas que Hemingway escreveu, tocou e vestiu, mas também permite que os estudiosos vejam através de seus olhos.
Existem dezenas de pequenas fotos de 2 por 3 polegadas que Hemingway tirou em seu safári de 1933-34 pela África Oriental Britânica (agora Quênia) e pela Tanganica (agora Tanzânia). Com sua câmera Graflex, Hemingway capturou girafas nas planícies africanas, dois elefantes que olham desconfiados no mato e uma foto de sua segunda esposa, Pauline Pfeiffer, examinando a paisagem com seus guias. Hemingway narrou a viagem em uma série de artigos para a revista Esquire, e isso serviu de base para seu livro de não ficção de 1935 As Verdes Colinas de África.
“É um pequeno flash de viagem no tempo. A história ganha vida por um minuto”, diz Spanier. “Você pode ver exatamente o que ele estava experimentando em um determinado dia.”
Um dos achados mais divertidos é o conto sobre Fitzgerald como um pugilista fictício. O novato Kid Fitz vence a partida e “apareceu em boas condições após sua batalha extenuante”, escreve Hemingway. “Suas únicas marcas eram uma hérnia estrangulada, um nariz faltando e dois olhos roxos”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES