O que Freud diria sobre nosso comportamento online?


No livro ‘The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World’, Mark Edmundson se volta ao conceito psicanalítico do superego para entender: por que tantas pessoas estão obcecadas em julgar a si mesmas e às outras?

Por Michael S. Roth

THE WASHINGTON POST - Não é novidade que vivemos uma era repleta de crítica e julgamento. Houve um tempo em que críticos de direita, como o filósofo Allan Bloom, reclamavam do relativismo flácido dos progressistas que pregavam a tolerância como a maior das virtudes. Hoje em dia, esses críticos protestam contra a “Cultura Woke” e, em uma surpreendente reversão, pedem ao governo que controle o que é ensinado nas universidades ou lido nas bibliotecas.

Já os críticos de esquerda costumavam construir coalizões para melhorar o salário mínimo ou reduzir o desemprego, mas agora querem garantir que todas as pessoas usem a linguagem apropriada para se referir a indivíduos e grupos étnicos. A esquerda e a direita se acusam mutuamente de serem excessivamente julgadoras. Só concordam que as redes sociais estão piorando o problema. No entanto, mesmo que escolhamos culpar os algoritmos por acentuar os prazeres da indignação, precisamos lembrar que a genealogia da cultura do cancelamento é bem antiga: afinal, o bode expiatório tem raízes bíblicas.

Capa de 'The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World' Foto: Yale University Press /
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Mark Edmundson examina as dimensões psicológicas da cultura de julgamento dos dias de hoje através de uma lente freudiana. Em seu livro anterior, The Death of Sigmund Freud, ele mostrou o quão resoluto e resolutamente secular Freud era em face da morte – fosse diante de ameaças nazistas ou de câncer terminal. Edmundson, professor de humanidades na Universidade da Virgínia, é um escritor cativante, seja falando sobre Freud, futebol, leitura, ensino ou, como parte de sua discussão neste último volume, a política de seus alunos. Seu tom é amigável, mas incisivo, mais coloquial que acadêmico.

Em The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World [algo como “A era da culpa: o superego no mundo online”, sem edição brasileira], ele se volta para o conceito psicanalítico do superego para entender por que tantas pessoas estão obcecadas em julgar a si mesmas e às outras. Segundo Freud, os seres humanos são fundamentalmente cindidos: somos criaturas ambivalentes que querem coisas que temos medo de querer. Freud introduziu a ideia de superego na década de 1920 para descrever como uma parte de nossa personalidade julga as outras partes.

O superego é uma autoridade internalizada que nos mantém em um padrão que somos incapazes de alcançar e, ao mesmo tempo, nos pune por nossas deficiências. Quando ficamos nos torturando com autorrecriminação ou simplesmente sentimos culpa por não corresponder às nossas aspirações, é o superego que está em ação. O mundo online oferece uma maneira de deslocar esse trabalho ao satisfazer o desejo de julgamento com a indignação das redes sociais. Em vez de punir a si mesmo, alguém pode compartilhar seus julgamentos e ser “curtido” por ter padrões elevados – ou, pelo menos, padrões aprovados pela multidão. Vivendo online, esse alguém pode dominar a moralidade do grupo e ficar hipnotizado pela perfeição física. A internet é “o grande executor da socialização do superego”.

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Hoje não são poucas as oportunidades para fugir do autojulgamento desagradável e julgar os outros. Cancelando desconhecidos de maneiras altamente performativas, mostramos que não somos assim tão ruins. A vida online facilita isso. “Quando você aplica o superego ao mundo, sente um alívio temporário”, escreve Edmundson. “Você julga e julga e, por um momento, parece que seus pecados foram perdoados”. Ele não gasta muito tempo com o perdão e suas dificuldades na cultura contemporânea.

Sigmund Freud Foto:

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Para isso talvez seja melhor ler, digamos, Wilfred M. McClay falando sobre os paradoxos de uma cultura de culpa que não oferece caminho para a redenção. Edmundson segue o rumo psicanalítico que procura nos deixar mais conscientes de nossos valores e desejos conflitantes, na esperança de que a consciência nos traga algum alívio e nos torne mais tolerantes com as outras pessoas.

A psicanálise ensina que nossos desejos sempre estarão em tensão uns com os outros e que, em vez de tentar resolver essas tensões – por meio da fé ou da obediência à autoridade, por exemplo – precisamos aprender a conviver com elas. Em vez de tentar apagar a tensão interna por meio da violência ou da submissão, devemos aprender a aceitar que somos criaturas imperfeitas, cujas necessidades não podem ser totalmente satisfeitas. “É uma bênção para o eu”, escreve Edmundson, “pensar em nós mesmos como sempre e para sempre inacabados. Nunca coincidiremos com a imagem brilhante e aprovada pelo superego”.

Depois de estabelecer uma moldura psicanalítica, The Age of Guilt passa à breve consideração de uma série de tópicos de interesse contemporâneo: psicofarmacologia, identidade, patriarcado, raça. Capítulos breves e desconexos pretendem mostrar como a cultura do “superego” produz modos de comportamento que acabam sendo contraproducentes – ou apenas mesquinhos e desagradáveis.

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Para escapar do sentimento de culpa, atacamos os outros ou nos banhamos com aquilo que Freud chamou de “medidas paliativas”. Edmundson, que deve ser um professor talentoso, acredita que, ao conscientizar seus leitores e alunos sobre como nos perdemos, talvez possamos encontrar novos caminhos. Talvez possamos aprender a conviver com nossos conflitos internos e alcançar certa autonomia, sem tanto julgamento.

Infelizmente, a última seção de The Age of Guilt, intitulada “Abrace os ideais”, dá uma guinada muito estranha em relação ao esforço freudiano de aumentar a liberdade por meio de uma autocompreensão mais profunda, embora incompleta. Nas últimas páginas, Edmundson abandona a psicanálise para apresentar três ideais (o Heitor de Homero, o Sócrates de Platão e o Jesus do Evangelho) que podem “deslocar o superego (...) indo além dele”. Em outras palavras, Edmundson tem um super superego para nos oferecer.

Como advertiu Freud, porém, “os julgamentos de valor do homem seguem diretamente seus desejos de felicidade – que, portanto, são uma tentativa de sustentar suas ilusões com argumentos”. Em vez de tomar a lista de ideais de Edmundson como novas formas de consolo ou sementes de aspiração, os leitores talvez prefiram seguir com os eus inacabados e imperfeitos que ele descreve tão bem no restante de seu livro perspicaz.

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The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World

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  • Autor: Mark Edmundson
  • Editora: Yale University Press - 164 páginas - US$ 26 (sem edição brasileira)

Michael S. Roth é presidente da Wesleyan University. Entre seus livros recentes estão Safe Enough Spaces: A Pragmatist’s Approach to Inclusion, Free Speech and Political Correctness on College Campuses e The Student: A Short History. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Não é novidade que vivemos uma era repleta de crítica e julgamento. Houve um tempo em que críticos de direita, como o filósofo Allan Bloom, reclamavam do relativismo flácido dos progressistas que pregavam a tolerância como a maior das virtudes. Hoje em dia, esses críticos protestam contra a “Cultura Woke” e, em uma surpreendente reversão, pedem ao governo que controle o que é ensinado nas universidades ou lido nas bibliotecas.

Já os críticos de esquerda costumavam construir coalizões para melhorar o salário mínimo ou reduzir o desemprego, mas agora querem garantir que todas as pessoas usem a linguagem apropriada para se referir a indivíduos e grupos étnicos. A esquerda e a direita se acusam mutuamente de serem excessivamente julgadoras. Só concordam que as redes sociais estão piorando o problema. No entanto, mesmo que escolhamos culpar os algoritmos por acentuar os prazeres da indignação, precisamos lembrar que a genealogia da cultura do cancelamento é bem antiga: afinal, o bode expiatório tem raízes bíblicas.

Capa de 'The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World' Foto: Yale University Press /

Mark Edmundson examina as dimensões psicológicas da cultura de julgamento dos dias de hoje através de uma lente freudiana. Em seu livro anterior, The Death of Sigmund Freud, ele mostrou o quão resoluto e resolutamente secular Freud era em face da morte – fosse diante de ameaças nazistas ou de câncer terminal. Edmundson, professor de humanidades na Universidade da Virgínia, é um escritor cativante, seja falando sobre Freud, futebol, leitura, ensino ou, como parte de sua discussão neste último volume, a política de seus alunos. Seu tom é amigável, mas incisivo, mais coloquial que acadêmico.

Em The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World [algo como “A era da culpa: o superego no mundo online”, sem edição brasileira], ele se volta para o conceito psicanalítico do superego para entender por que tantas pessoas estão obcecadas em julgar a si mesmas e às outras. Segundo Freud, os seres humanos são fundamentalmente cindidos: somos criaturas ambivalentes que querem coisas que temos medo de querer. Freud introduziu a ideia de superego na década de 1920 para descrever como uma parte de nossa personalidade julga as outras partes.

O superego é uma autoridade internalizada que nos mantém em um padrão que somos incapazes de alcançar e, ao mesmo tempo, nos pune por nossas deficiências. Quando ficamos nos torturando com autorrecriminação ou simplesmente sentimos culpa por não corresponder às nossas aspirações, é o superego que está em ação. O mundo online oferece uma maneira de deslocar esse trabalho ao satisfazer o desejo de julgamento com a indignação das redes sociais. Em vez de punir a si mesmo, alguém pode compartilhar seus julgamentos e ser “curtido” por ter padrões elevados – ou, pelo menos, padrões aprovados pela multidão. Vivendo online, esse alguém pode dominar a moralidade do grupo e ficar hipnotizado pela perfeição física. A internet é “o grande executor da socialização do superego”.

Hoje não são poucas as oportunidades para fugir do autojulgamento desagradável e julgar os outros. Cancelando desconhecidos de maneiras altamente performativas, mostramos que não somos assim tão ruins. A vida online facilita isso. “Quando você aplica o superego ao mundo, sente um alívio temporário”, escreve Edmundson. “Você julga e julga e, por um momento, parece que seus pecados foram perdoados”. Ele não gasta muito tempo com o perdão e suas dificuldades na cultura contemporânea.

Sigmund Freud Foto:

Para isso talvez seja melhor ler, digamos, Wilfred M. McClay falando sobre os paradoxos de uma cultura de culpa que não oferece caminho para a redenção. Edmundson segue o rumo psicanalítico que procura nos deixar mais conscientes de nossos valores e desejos conflitantes, na esperança de que a consciência nos traga algum alívio e nos torne mais tolerantes com as outras pessoas.

A psicanálise ensina que nossos desejos sempre estarão em tensão uns com os outros e que, em vez de tentar resolver essas tensões – por meio da fé ou da obediência à autoridade, por exemplo – precisamos aprender a conviver com elas. Em vez de tentar apagar a tensão interna por meio da violência ou da submissão, devemos aprender a aceitar que somos criaturas imperfeitas, cujas necessidades não podem ser totalmente satisfeitas. “É uma bênção para o eu”, escreve Edmundson, “pensar em nós mesmos como sempre e para sempre inacabados. Nunca coincidiremos com a imagem brilhante e aprovada pelo superego”.

Depois de estabelecer uma moldura psicanalítica, The Age of Guilt passa à breve consideração de uma série de tópicos de interesse contemporâneo: psicofarmacologia, identidade, patriarcado, raça. Capítulos breves e desconexos pretendem mostrar como a cultura do “superego” produz modos de comportamento que acabam sendo contraproducentes – ou apenas mesquinhos e desagradáveis.

Para escapar do sentimento de culpa, atacamos os outros ou nos banhamos com aquilo que Freud chamou de “medidas paliativas”. Edmundson, que deve ser um professor talentoso, acredita que, ao conscientizar seus leitores e alunos sobre como nos perdemos, talvez possamos encontrar novos caminhos. Talvez possamos aprender a conviver com nossos conflitos internos e alcançar certa autonomia, sem tanto julgamento.

Infelizmente, a última seção de The Age of Guilt, intitulada “Abrace os ideais”, dá uma guinada muito estranha em relação ao esforço freudiano de aumentar a liberdade por meio de uma autocompreensão mais profunda, embora incompleta. Nas últimas páginas, Edmundson abandona a psicanálise para apresentar três ideais (o Heitor de Homero, o Sócrates de Platão e o Jesus do Evangelho) que podem “deslocar o superego (...) indo além dele”. Em outras palavras, Edmundson tem um super superego para nos oferecer.

Como advertiu Freud, porém, “os julgamentos de valor do homem seguem diretamente seus desejos de felicidade – que, portanto, são uma tentativa de sustentar suas ilusões com argumentos”. Em vez de tomar a lista de ideais de Edmundson como novas formas de consolo ou sementes de aspiração, os leitores talvez prefiram seguir com os eus inacabados e imperfeitos que ele descreve tão bem no restante de seu livro perspicaz.

The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World

  • Autor: Mark Edmundson
  • Editora: Yale University Press - 164 páginas - US$ 26 (sem edição brasileira)

Michael S. Roth é presidente da Wesleyan University. Entre seus livros recentes estão Safe Enough Spaces: A Pragmatist’s Approach to Inclusion, Free Speech and Political Correctness on College Campuses e The Student: A Short History. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Não é novidade que vivemos uma era repleta de crítica e julgamento. Houve um tempo em que críticos de direita, como o filósofo Allan Bloom, reclamavam do relativismo flácido dos progressistas que pregavam a tolerância como a maior das virtudes. Hoje em dia, esses críticos protestam contra a “Cultura Woke” e, em uma surpreendente reversão, pedem ao governo que controle o que é ensinado nas universidades ou lido nas bibliotecas.

Já os críticos de esquerda costumavam construir coalizões para melhorar o salário mínimo ou reduzir o desemprego, mas agora querem garantir que todas as pessoas usem a linguagem apropriada para se referir a indivíduos e grupos étnicos. A esquerda e a direita se acusam mutuamente de serem excessivamente julgadoras. Só concordam que as redes sociais estão piorando o problema. No entanto, mesmo que escolhamos culpar os algoritmos por acentuar os prazeres da indignação, precisamos lembrar que a genealogia da cultura do cancelamento é bem antiga: afinal, o bode expiatório tem raízes bíblicas.

Capa de 'The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World' Foto: Yale University Press /

Mark Edmundson examina as dimensões psicológicas da cultura de julgamento dos dias de hoje através de uma lente freudiana. Em seu livro anterior, The Death of Sigmund Freud, ele mostrou o quão resoluto e resolutamente secular Freud era em face da morte – fosse diante de ameaças nazistas ou de câncer terminal. Edmundson, professor de humanidades na Universidade da Virgínia, é um escritor cativante, seja falando sobre Freud, futebol, leitura, ensino ou, como parte de sua discussão neste último volume, a política de seus alunos. Seu tom é amigável, mas incisivo, mais coloquial que acadêmico.

Em The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World [algo como “A era da culpa: o superego no mundo online”, sem edição brasileira], ele se volta para o conceito psicanalítico do superego para entender por que tantas pessoas estão obcecadas em julgar a si mesmas e às outras. Segundo Freud, os seres humanos são fundamentalmente cindidos: somos criaturas ambivalentes que querem coisas que temos medo de querer. Freud introduziu a ideia de superego na década de 1920 para descrever como uma parte de nossa personalidade julga as outras partes.

O superego é uma autoridade internalizada que nos mantém em um padrão que somos incapazes de alcançar e, ao mesmo tempo, nos pune por nossas deficiências. Quando ficamos nos torturando com autorrecriminação ou simplesmente sentimos culpa por não corresponder às nossas aspirações, é o superego que está em ação. O mundo online oferece uma maneira de deslocar esse trabalho ao satisfazer o desejo de julgamento com a indignação das redes sociais. Em vez de punir a si mesmo, alguém pode compartilhar seus julgamentos e ser “curtido” por ter padrões elevados – ou, pelo menos, padrões aprovados pela multidão. Vivendo online, esse alguém pode dominar a moralidade do grupo e ficar hipnotizado pela perfeição física. A internet é “o grande executor da socialização do superego”.

Hoje não são poucas as oportunidades para fugir do autojulgamento desagradável e julgar os outros. Cancelando desconhecidos de maneiras altamente performativas, mostramos que não somos assim tão ruins. A vida online facilita isso. “Quando você aplica o superego ao mundo, sente um alívio temporário”, escreve Edmundson. “Você julga e julga e, por um momento, parece que seus pecados foram perdoados”. Ele não gasta muito tempo com o perdão e suas dificuldades na cultura contemporânea.

Sigmund Freud Foto:

Para isso talvez seja melhor ler, digamos, Wilfred M. McClay falando sobre os paradoxos de uma cultura de culpa que não oferece caminho para a redenção. Edmundson segue o rumo psicanalítico que procura nos deixar mais conscientes de nossos valores e desejos conflitantes, na esperança de que a consciência nos traga algum alívio e nos torne mais tolerantes com as outras pessoas.

A psicanálise ensina que nossos desejos sempre estarão em tensão uns com os outros e que, em vez de tentar resolver essas tensões – por meio da fé ou da obediência à autoridade, por exemplo – precisamos aprender a conviver com elas. Em vez de tentar apagar a tensão interna por meio da violência ou da submissão, devemos aprender a aceitar que somos criaturas imperfeitas, cujas necessidades não podem ser totalmente satisfeitas. “É uma bênção para o eu”, escreve Edmundson, “pensar em nós mesmos como sempre e para sempre inacabados. Nunca coincidiremos com a imagem brilhante e aprovada pelo superego”.

Depois de estabelecer uma moldura psicanalítica, The Age of Guilt passa à breve consideração de uma série de tópicos de interesse contemporâneo: psicofarmacologia, identidade, patriarcado, raça. Capítulos breves e desconexos pretendem mostrar como a cultura do “superego” produz modos de comportamento que acabam sendo contraproducentes – ou apenas mesquinhos e desagradáveis.

Para escapar do sentimento de culpa, atacamos os outros ou nos banhamos com aquilo que Freud chamou de “medidas paliativas”. Edmundson, que deve ser um professor talentoso, acredita que, ao conscientizar seus leitores e alunos sobre como nos perdemos, talvez possamos encontrar novos caminhos. Talvez possamos aprender a conviver com nossos conflitos internos e alcançar certa autonomia, sem tanto julgamento.

Infelizmente, a última seção de The Age of Guilt, intitulada “Abrace os ideais”, dá uma guinada muito estranha em relação ao esforço freudiano de aumentar a liberdade por meio de uma autocompreensão mais profunda, embora incompleta. Nas últimas páginas, Edmundson abandona a psicanálise para apresentar três ideais (o Heitor de Homero, o Sócrates de Platão e o Jesus do Evangelho) que podem “deslocar o superego (...) indo além dele”. Em outras palavras, Edmundson tem um super superego para nos oferecer.

Como advertiu Freud, porém, “os julgamentos de valor do homem seguem diretamente seus desejos de felicidade – que, portanto, são uma tentativa de sustentar suas ilusões com argumentos”. Em vez de tomar a lista de ideais de Edmundson como novas formas de consolo ou sementes de aspiração, os leitores talvez prefiram seguir com os eus inacabados e imperfeitos que ele descreve tão bem no restante de seu livro perspicaz.

The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World

  • Autor: Mark Edmundson
  • Editora: Yale University Press - 164 páginas - US$ 26 (sem edição brasileira)

Michael S. Roth é presidente da Wesleyan University. Entre seus livros recentes estão Safe Enough Spaces: A Pragmatist’s Approach to Inclusion, Free Speech and Political Correctness on College Campuses e The Student: A Short History. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Não é novidade que vivemos uma era repleta de crítica e julgamento. Houve um tempo em que críticos de direita, como o filósofo Allan Bloom, reclamavam do relativismo flácido dos progressistas que pregavam a tolerância como a maior das virtudes. Hoje em dia, esses críticos protestam contra a “Cultura Woke” e, em uma surpreendente reversão, pedem ao governo que controle o que é ensinado nas universidades ou lido nas bibliotecas.

Já os críticos de esquerda costumavam construir coalizões para melhorar o salário mínimo ou reduzir o desemprego, mas agora querem garantir que todas as pessoas usem a linguagem apropriada para se referir a indivíduos e grupos étnicos. A esquerda e a direita se acusam mutuamente de serem excessivamente julgadoras. Só concordam que as redes sociais estão piorando o problema. No entanto, mesmo que escolhamos culpar os algoritmos por acentuar os prazeres da indignação, precisamos lembrar que a genealogia da cultura do cancelamento é bem antiga: afinal, o bode expiatório tem raízes bíblicas.

Capa de 'The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World' Foto: Yale University Press /

Mark Edmundson examina as dimensões psicológicas da cultura de julgamento dos dias de hoje através de uma lente freudiana. Em seu livro anterior, The Death of Sigmund Freud, ele mostrou o quão resoluto e resolutamente secular Freud era em face da morte – fosse diante de ameaças nazistas ou de câncer terminal. Edmundson, professor de humanidades na Universidade da Virgínia, é um escritor cativante, seja falando sobre Freud, futebol, leitura, ensino ou, como parte de sua discussão neste último volume, a política de seus alunos. Seu tom é amigável, mas incisivo, mais coloquial que acadêmico.

Em The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World [algo como “A era da culpa: o superego no mundo online”, sem edição brasileira], ele se volta para o conceito psicanalítico do superego para entender por que tantas pessoas estão obcecadas em julgar a si mesmas e às outras. Segundo Freud, os seres humanos são fundamentalmente cindidos: somos criaturas ambivalentes que querem coisas que temos medo de querer. Freud introduziu a ideia de superego na década de 1920 para descrever como uma parte de nossa personalidade julga as outras partes.

O superego é uma autoridade internalizada que nos mantém em um padrão que somos incapazes de alcançar e, ao mesmo tempo, nos pune por nossas deficiências. Quando ficamos nos torturando com autorrecriminação ou simplesmente sentimos culpa por não corresponder às nossas aspirações, é o superego que está em ação. O mundo online oferece uma maneira de deslocar esse trabalho ao satisfazer o desejo de julgamento com a indignação das redes sociais. Em vez de punir a si mesmo, alguém pode compartilhar seus julgamentos e ser “curtido” por ter padrões elevados – ou, pelo menos, padrões aprovados pela multidão. Vivendo online, esse alguém pode dominar a moralidade do grupo e ficar hipnotizado pela perfeição física. A internet é “o grande executor da socialização do superego”.

Hoje não são poucas as oportunidades para fugir do autojulgamento desagradável e julgar os outros. Cancelando desconhecidos de maneiras altamente performativas, mostramos que não somos assim tão ruins. A vida online facilita isso. “Quando você aplica o superego ao mundo, sente um alívio temporário”, escreve Edmundson. “Você julga e julga e, por um momento, parece que seus pecados foram perdoados”. Ele não gasta muito tempo com o perdão e suas dificuldades na cultura contemporânea.

Sigmund Freud Foto:

Para isso talvez seja melhor ler, digamos, Wilfred M. McClay falando sobre os paradoxos de uma cultura de culpa que não oferece caminho para a redenção. Edmundson segue o rumo psicanalítico que procura nos deixar mais conscientes de nossos valores e desejos conflitantes, na esperança de que a consciência nos traga algum alívio e nos torne mais tolerantes com as outras pessoas.

A psicanálise ensina que nossos desejos sempre estarão em tensão uns com os outros e que, em vez de tentar resolver essas tensões – por meio da fé ou da obediência à autoridade, por exemplo – precisamos aprender a conviver com elas. Em vez de tentar apagar a tensão interna por meio da violência ou da submissão, devemos aprender a aceitar que somos criaturas imperfeitas, cujas necessidades não podem ser totalmente satisfeitas. “É uma bênção para o eu”, escreve Edmundson, “pensar em nós mesmos como sempre e para sempre inacabados. Nunca coincidiremos com a imagem brilhante e aprovada pelo superego”.

Depois de estabelecer uma moldura psicanalítica, The Age of Guilt passa à breve consideração de uma série de tópicos de interesse contemporâneo: psicofarmacologia, identidade, patriarcado, raça. Capítulos breves e desconexos pretendem mostrar como a cultura do “superego” produz modos de comportamento que acabam sendo contraproducentes – ou apenas mesquinhos e desagradáveis.

Para escapar do sentimento de culpa, atacamos os outros ou nos banhamos com aquilo que Freud chamou de “medidas paliativas”. Edmundson, que deve ser um professor talentoso, acredita que, ao conscientizar seus leitores e alunos sobre como nos perdemos, talvez possamos encontrar novos caminhos. Talvez possamos aprender a conviver com nossos conflitos internos e alcançar certa autonomia, sem tanto julgamento.

Infelizmente, a última seção de The Age of Guilt, intitulada “Abrace os ideais”, dá uma guinada muito estranha em relação ao esforço freudiano de aumentar a liberdade por meio de uma autocompreensão mais profunda, embora incompleta. Nas últimas páginas, Edmundson abandona a psicanálise para apresentar três ideais (o Heitor de Homero, o Sócrates de Platão e o Jesus do Evangelho) que podem “deslocar o superego (...) indo além dele”. Em outras palavras, Edmundson tem um super superego para nos oferecer.

Como advertiu Freud, porém, “os julgamentos de valor do homem seguem diretamente seus desejos de felicidade – que, portanto, são uma tentativa de sustentar suas ilusões com argumentos”. Em vez de tomar a lista de ideais de Edmundson como novas formas de consolo ou sementes de aspiração, os leitores talvez prefiram seguir com os eus inacabados e imperfeitos que ele descreve tão bem no restante de seu livro perspicaz.

The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World

  • Autor: Mark Edmundson
  • Editora: Yale University Press - 164 páginas - US$ 26 (sem edição brasileira)

Michael S. Roth é presidente da Wesleyan University. Entre seus livros recentes estão Safe Enough Spaces: A Pragmatist’s Approach to Inclusion, Free Speech and Political Correctness on College Campuses e The Student: A Short History. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - Não é novidade que vivemos uma era repleta de crítica e julgamento. Houve um tempo em que críticos de direita, como o filósofo Allan Bloom, reclamavam do relativismo flácido dos progressistas que pregavam a tolerância como a maior das virtudes. Hoje em dia, esses críticos protestam contra a “Cultura Woke” e, em uma surpreendente reversão, pedem ao governo que controle o que é ensinado nas universidades ou lido nas bibliotecas.

Já os críticos de esquerda costumavam construir coalizões para melhorar o salário mínimo ou reduzir o desemprego, mas agora querem garantir que todas as pessoas usem a linguagem apropriada para se referir a indivíduos e grupos étnicos. A esquerda e a direita se acusam mutuamente de serem excessivamente julgadoras. Só concordam que as redes sociais estão piorando o problema. No entanto, mesmo que escolhamos culpar os algoritmos por acentuar os prazeres da indignação, precisamos lembrar que a genealogia da cultura do cancelamento é bem antiga: afinal, o bode expiatório tem raízes bíblicas.

Capa de 'The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World' Foto: Yale University Press /

Mark Edmundson examina as dimensões psicológicas da cultura de julgamento dos dias de hoje através de uma lente freudiana. Em seu livro anterior, The Death of Sigmund Freud, ele mostrou o quão resoluto e resolutamente secular Freud era em face da morte – fosse diante de ameaças nazistas ou de câncer terminal. Edmundson, professor de humanidades na Universidade da Virgínia, é um escritor cativante, seja falando sobre Freud, futebol, leitura, ensino ou, como parte de sua discussão neste último volume, a política de seus alunos. Seu tom é amigável, mas incisivo, mais coloquial que acadêmico.

Em The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World [algo como “A era da culpa: o superego no mundo online”, sem edição brasileira], ele se volta para o conceito psicanalítico do superego para entender por que tantas pessoas estão obcecadas em julgar a si mesmas e às outras. Segundo Freud, os seres humanos são fundamentalmente cindidos: somos criaturas ambivalentes que querem coisas que temos medo de querer. Freud introduziu a ideia de superego na década de 1920 para descrever como uma parte de nossa personalidade julga as outras partes.

O superego é uma autoridade internalizada que nos mantém em um padrão que somos incapazes de alcançar e, ao mesmo tempo, nos pune por nossas deficiências. Quando ficamos nos torturando com autorrecriminação ou simplesmente sentimos culpa por não corresponder às nossas aspirações, é o superego que está em ação. O mundo online oferece uma maneira de deslocar esse trabalho ao satisfazer o desejo de julgamento com a indignação das redes sociais. Em vez de punir a si mesmo, alguém pode compartilhar seus julgamentos e ser “curtido” por ter padrões elevados – ou, pelo menos, padrões aprovados pela multidão. Vivendo online, esse alguém pode dominar a moralidade do grupo e ficar hipnotizado pela perfeição física. A internet é “o grande executor da socialização do superego”.

Hoje não são poucas as oportunidades para fugir do autojulgamento desagradável e julgar os outros. Cancelando desconhecidos de maneiras altamente performativas, mostramos que não somos assim tão ruins. A vida online facilita isso. “Quando você aplica o superego ao mundo, sente um alívio temporário”, escreve Edmundson. “Você julga e julga e, por um momento, parece que seus pecados foram perdoados”. Ele não gasta muito tempo com o perdão e suas dificuldades na cultura contemporânea.

Sigmund Freud Foto:

Para isso talvez seja melhor ler, digamos, Wilfred M. McClay falando sobre os paradoxos de uma cultura de culpa que não oferece caminho para a redenção. Edmundson segue o rumo psicanalítico que procura nos deixar mais conscientes de nossos valores e desejos conflitantes, na esperança de que a consciência nos traga algum alívio e nos torne mais tolerantes com as outras pessoas.

A psicanálise ensina que nossos desejos sempre estarão em tensão uns com os outros e que, em vez de tentar resolver essas tensões – por meio da fé ou da obediência à autoridade, por exemplo – precisamos aprender a conviver com elas. Em vez de tentar apagar a tensão interna por meio da violência ou da submissão, devemos aprender a aceitar que somos criaturas imperfeitas, cujas necessidades não podem ser totalmente satisfeitas. “É uma bênção para o eu”, escreve Edmundson, “pensar em nós mesmos como sempre e para sempre inacabados. Nunca coincidiremos com a imagem brilhante e aprovada pelo superego”.

Depois de estabelecer uma moldura psicanalítica, The Age of Guilt passa à breve consideração de uma série de tópicos de interesse contemporâneo: psicofarmacologia, identidade, patriarcado, raça. Capítulos breves e desconexos pretendem mostrar como a cultura do “superego” produz modos de comportamento que acabam sendo contraproducentes – ou apenas mesquinhos e desagradáveis.

Para escapar do sentimento de culpa, atacamos os outros ou nos banhamos com aquilo que Freud chamou de “medidas paliativas”. Edmundson, que deve ser um professor talentoso, acredita que, ao conscientizar seus leitores e alunos sobre como nos perdemos, talvez possamos encontrar novos caminhos. Talvez possamos aprender a conviver com nossos conflitos internos e alcançar certa autonomia, sem tanto julgamento.

Infelizmente, a última seção de The Age of Guilt, intitulada “Abrace os ideais”, dá uma guinada muito estranha em relação ao esforço freudiano de aumentar a liberdade por meio de uma autocompreensão mais profunda, embora incompleta. Nas últimas páginas, Edmundson abandona a psicanálise para apresentar três ideais (o Heitor de Homero, o Sócrates de Platão e o Jesus do Evangelho) que podem “deslocar o superego (...) indo além dele”. Em outras palavras, Edmundson tem um super superego para nos oferecer.

Como advertiu Freud, porém, “os julgamentos de valor do homem seguem diretamente seus desejos de felicidade – que, portanto, são uma tentativa de sustentar suas ilusões com argumentos”. Em vez de tomar a lista de ideais de Edmundson como novas formas de consolo ou sementes de aspiração, os leitores talvez prefiram seguir com os eus inacabados e imperfeitos que ele descreve tão bem no restante de seu livro perspicaz.

The Age of Guilt: The Super-Ego in the Online World

  • Autor: Mark Edmundson
  • Editora: Yale University Press - 164 páginas - US$ 26 (sem edição brasileira)

Michael S. Roth é presidente da Wesleyan University. Entre seus livros recentes estão Safe Enough Spaces: A Pragmatist’s Approach to Inclusion, Free Speech and Political Correctness on College Campuses e The Student: A Short History. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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